sábado, dezembro 31, 2005

Correspondências #27 - Nicolau Kopke a Frei José Mayne

Illmo Snr Fr: Joze Mayne
Dezejo que nesta encontre a VS.ª de todo restabelecido das suas molestias, e que esteja gozando da mais perfeita saude acompanhada de todas as mais felicidades, assim como o meu sincero affecto lhe apeteçem.
Chegou a occaziaõ de poder remeter a VS.ª as coriozidades que me vieraõ da Russia, mandadas pello Primo Joze Severin, as quais vaõ em 3 Caixoens marcados K n.º 7, n.º 8, e n.º 9, carregados no Patacho Paquete do Porto Mestre Francisco Joze Vianna, que está promto a partir dezejando que cheguem bem acondicionadas, pª o que naõ deixei de fazer as devidas recommendaçoens ao dito Mestre p.ª que uzasse de toda a cautela com ellas, e bom será que VS.ª também mande uzar da mesma na descarga nessa, p.ª que os Caixoins naõ levem algum tombo, servindo p.ª governo de VS.ª que no Nº 7 vaõ Pasaros e Annimais Seccos, nº 8 vay a Colluna de Minerais do Monte Caucaze, e nº 9 com os Minerais da Siberia, como tudo milhor constará dos dous Catalogos que incluzos remeto a VS.ª que saõ os mesmos que me vieraõ da Russia, e dis o Primo Jozê que entre os Minerais, vem pedassos rarissimos segundo o parecer dos Proffesores da Estoria Natural que os viraõ e examinarao. E agora o que estimarey he que tudo seja do gosto e agrado de VS.ª, e mereça a sua aprobacaõ.
de toda a nossa Familia queira VS.ª aceitar, hua saudoza recomendacaõ, e pª tudo o que eu prestar, queira tambem comferirme as Suas ordems, que promtam.te executarey como sendo com todo o respeito.
De V. S.ria
Primo mto am.te do C. do Cr.do obrigmo
Porto em 21 de Mayo de 1788
Nicolau Cópque
In Rómulo de Carvalho, Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII

Frei José Mayne

sexta-feira, dezembro 30, 2005

estampa II

Visconde de Meneses, Retrato da Viscondessa de Meneses
Museu do Chiado

Antologia Improvável #89 - Tomaz Kim

2.º SOLILÓQUIO

Quem saberá o que vale a pena
Se os mortos se amortalham em segredo;
E o que dos astros vem nada diz,
E os vivos ignoram ou escondem,
Para além da curva do céu,
O que nem o tempo nem o amor
Pode sarar.

Ah, se a morte vale a pena,
Nem os mortos o dizem!
E mudos são o pranto e o luto
E a flor que dedos convencionais desfolham
No mausoléu impessoal e réplica d'outros.

E a Morte,
Como primavera de negro, dominando o pomar,
Ano após ano,
Nada responde.

Flora e Fauna
In Ana Hatherly, Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa

Estampa I

Giorgione, Festa Campestre
Museu do Louvre

quinta-feira, dezembro 29, 2005

Figuras de estilo #18 - Camilo Castelo Branco

Oh céus, onde estão os vossos raios que não caem sobre a cabeça deste infame, que pede a uma amante que mate sua mãe, para mais a salvamento gozar os seus escandalosos e torpes desejos! Oh céus! como quereis que um homem vos insulte tão claramente, atrevendo-se a proferir estas palavras: ó filha mata tua mãe!... Meu Deus, eu sou um fraco bichinho na terra, e atrevo-me a interrogar a vossa alta sabedoria! Perdoai-me, meu Deus!
Maria! Não me Mates que Mates que Sou Tua Mãe!

Camilo




















Era porreiro ter na algibeira uma nota de 100 paus.

Boas maneiras

Joe Cocker
Woodstock, 1969

quarta-feira, dezembro 28, 2005

«O desprestígio da República»

No Diário de Notícias, VGM no seu melhor.
http://dn.sapo.pt/2005/12/28/opiniao/o_desprestigio_republica.html

[Tentame]

As palavras são como as mulheres: há que saber pegar nelas da melhor maneira. O que nem sempre sucede.

terça-feira, dezembro 27, 2005

Antologia Improvável #88 - Alberto de Lacerda (4)

APARIÇÃO

Tem sobre a música certas vantagens
E nunca me dirigiu a palavra

Tem os dedos longos
Os olhos rasgados
Um perfil que transformou a sala onde eu estava
E nunca me dirigiu a palavra

Tem os cabelos louros
Angelicamente revoltos
E nunca me dirigiu a palavra

Tem dezoito anos
Ou dezassete anos
E nunca me dirigiu a palavra

Tem um olhar profundo e natural
De rio sem grandes acidentes
Tem o olhar directo
E nunca me dirigiu a palavra

Tem os gestos mais belos que eu sonhei
Antes de ver os seus gestos
Tem a graça da luz de Maio
Tem qualquer coisa de Maio que a Primavera esqueceu
Tem os ossos do rosto cinzelados
Duma forma que teria perturbado
Fídias e perturba certamente
Todos os dias o ar a luz a noite e o dia
E nunca me dirigiu a palavra

Agita quando anda
Os mantos do invisível
E nunca me dirigiu a palavra

Tem uma voz incomparável
Tem uma doçura de ave no olhar
E nunca lhe dirigirei uma palavra

25.5.62
Oferenda-I

segunda-feira, dezembro 26, 2005

Figuras de estilo #17 - Júlio Dantas

Viajar, -- que horror! O que é, às vezes, agradável e útil, é ter viajado. Os incómodos passam -- e as boas recordações ficam.

Páginas de Memórias

Dantas

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Antologia Improvável #87 - Natércia Freire

O SONHO SEM DESTINO

Se os caminhos são breves
e os dias tão compridos,
e as tuas mãos mais leves
que a espuma dos vestidos;

se é de ti que me ondeia
uma brisa subtil...
E a vaga diz: -- Sereia!
E o sonho diz: -- Abril!

Se cresces e dominas
os campos que acalento,
e inundas as colinas
de fontes que eu invento;

se tens na luz dos olhos
o misterioso apelo
das cidades de fogo,
das cidades de gelo;

se podes bem guardar
na tua mão fechada
o meu altivo Tudo
e o meu imenso Nada;

se cabe nos meus braços
a bruma que tu és,
e em algas e sargaços
te abraço nas marés;

se, puro, na presença
da nossa grande Casa,
pões na voz de horizonte
um lume de asa e brasa.

Não sei porque te sonho
na sombra matinal,
e ao meu lado te vejo,
real e irreal.

Sabeis -- adaga fria,
que ao meu peito cintilas --
onde se oculta o dia
das aragens tranquilas?

Se tudo sabes, mata
com dedos de oiro fino,
ou com gume de prata,
o sonho sem destino!

Anel de Sete Pedras

In Ana Hatherly, Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa

Natércia Freire

quinta-feira, dezembro 22, 2005

Flopbuster


Admito que o telefilme dos Beatles não tem pés nem cabeça, e que quarenta anos depois, ou quase, será só mais um testemunho da passagem dos fab-four por este mundo de Cristo. Mas isso é, quanto a mim, duma irrelevância a toda à prova, uma vez que o devaneio foi pretexto para que Lenon - a Morsa e McCartney - o Hipopótamo nos dessem temas como o «Magical Mystery Tour», «The Fool oh the Hill» e «I Am the Walrus», além de duas composições menores: uma de Harrison-o Coelho e outra assinada pelos quatro, Ringo vestindo aqui a pele do Galo.
Flop, um filme que deu 3 canções 3 que acrescentaram o património artístico ocidental?...
O lado B, já fora do filme, com «Strawberry Fields Forever», é superlativo.

A propósito:

e o que seria do filme de Michael Curtiz, Casablanca, sem As Time Goes By?

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Figuras de estilo #16 - Teixeira de Queirós

Tinha o ofício de alfaiate e trabalhava assiduamente. Excelente mestre; boa tesoura e um ponto para a eternidade.
«O Tio Agrela», Os Meus Primeiros Contos
In Comédia do Campo e Comédia Burguesa (Antologia)
(edição de Maria Saraiva de Jesus)

terça-feira, dezembro 20, 2005

Os 15 capítulos de Mário de Carvalho a favor de Alegre


A ler n'O Quadrado[ http://oquadrado.blogs.sapo.pt/]
um dos textos mais notáveis de campanha
de um dos grandes escritores portugueses dos nossos dias.

[não, não se trata dum comentador de meia-tigela, nem dum pivot da sic-notícias; é um texto de 15 pontos DO Mário de Carvalho (em português de lei) sobre O Manuel Alegre (um português de lei).

Antologia Improvável #86 - David Mourão-Ferreira (3)

NOCTURNO

Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava...

Era, no copo, além do gin, o gelo;
além do gelo, a roda de limão...
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.

Era, no gira-discos, o «Martírio
de São Sebastião», de Debussy...
Era, na jarra, de repente, um lírio!
Era a certeza de ficar sem ti.

Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança...

Infinito Pessoal / Antologia Poética

David

segunda-feira, dezembro 19, 2005

os dias passam por ele
sem que ele dê pelo passar dos dias por ele
adoece e não sabe que é o fim
abana a cauda e sucumbe
ao tiro no crânio
sem espanto
à injecção letal
em paz
27-I-2003

Toby

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domingo, dezembro 18, 2005

Caracteres móveis #54 - João Cabral de Melo Neto

O autor de hoje, e se poeta muito mais, fala sozinho de si mesmo, de suas coisas secretas, sem saber para quem escreve. Sem saber se o que escreve vai cair na sensibilidade de alguém com os mesmos segredos, capaz de percebê-los. Aliás, sabendo que poucos serão capazes de entender perfeitamente sua linguagem secreta, ele conta também com aqueles que serão capazes de mal-entendê-la. Isto é, com o leitor ativo, capaz de deduzir uma mensagem arbitrária do código que não pode decifrar.
Poesia e Composição

João Cabral

Boas maneiras

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Angus Young

sábado, dezembro 17, 2005

Herculano

Correspondências #26 - Alexandre Herculano a Joaquim Filipe de Soure

Amigo
Vale de Lobos, 24 de Maio [1867]
Estive em Lisboa poucos dias e disseram-me aí que o am.º fora p.ª Évora. Escrevo pois para Évora, a Deus e à ventura.
Quisera ter-lhe falado para lhe dizer uma resolução que tomei e que tomei fria e reflectidamente, porque era ao mesmo tempo um preceito da minha consciência, e uma necessidade para este modo de viver que adoptei para os anos, não serão muitos, que me restam de vida.
Tenho parentes e sou só. Os parentes tratam de si. Não tenho uma irmã, uma sobrinha, uma mulher que olhe por mim e pela casa que, apesar de pequena, tem que governar. Sabe, porque tem sido lavrador. A criada de campo que tenho é incapaz de me olhar por uma camisa ou por umas meias. A antiga criada de minha mãe, que em Belém me tratava dessas coisas, não pode deixar o marido com 84 anos para me seguir aqui. Na doença não tinha quem tratasse de mim; e eu já perdi a esperança de deixar de ser valetudinário. Amancebar-me aos 57 anos publicamente era ridículo e mau, e o resultado pouco seguro.
Resolvi casar. Tive aos 26 anos uma destas paixões que todos temos naquela idade, mas havia em mim outra mais poderosa, a das ambições literárias. Os meus amores foram com a irmã do Meira, D. Mariana Hermínia. A paixão literária venceu a outra. Tive a coragem de lhe sacrificar esta. Com a minha modesta fortuna não podia fazer filhos e livros ao mesmo tempo. Era necessário ser uma espécie de frade, menos o convento. Falei, pois com franqueza a minha actual mulher, que então era uma cabeça algum tanto romanesca. As mulheres são capazes de actos de abnegação que seriam para nós impossíveis. Já havia rejeitado por minha causa um casamento vantajoso que a família lhe arranjara com um primo, mas à vista das minhas declarações, foi mais longe: aceitou uma posição ambígua, sujeita a comentários e calúnias, sem soltar um queixume, sem a menor quebra durante trinta anos de uma dedicação e amizade ilimitadas. Confesso-lhe que, neste ponto, eu que me parece estar curado de todas as vaidades, ainda tenho vaidade nisto.
Aqui tem o meu amigo os elementos materiais e morais para avaliar o acto que pratiquei. Conheço-o bastante para saber que o há-de aprovar.
Estas explicações são apenas para meia dúzia de amigos íntimos. Para o resto do mundo a explicação é mais curta: casei porque tive vontade disso.
As coisas rústicas por aqui não vão bem. Os trigos são abaixo de medianos, vinho há pouco, e azeite pode-se dizer que nenhum.
Arranja-me uma pouca de mera, e diz-me aonde ma manda pôr em Lisboa?
Recomendações ao dr. António Miguel, que é um dos poucos carácteres deste terra que eu admiro.
Amigo
Herculano
In João Medina, Herculano e a Geração de 70
extraída de
Luís Silveira, Cartas Inéditas de Alexandre Herculano a Joaquim Filipe de Soure

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Antologia Improvável #85 - José Craveirinha

CAFÉ FRIO

Com ninguém reparto meus sentimentos.
Nas cacimbentas manhãs de Inverno
egocêntrico vou ingerindo
meu melancólico
café frio.

Maria

Craveirinha

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Nunca morrer,


sem ouvir e re-ouvir, muitas vezes, o álbum Louis Armstrong Plays W. C. Handy -- qualquer coisa como o pai do jazz a homenagear e tocar o pai dos blues, músicas que nenhum deles propriamente inventou mas que contribuíram decisivamente para fixar e standardizar. Handy foi também uma espécie de etnomusicólogo, recolhendo e anotando uma série de temas que músicos anónimos negros iam tocando itinerantemente pelo sul dos Estados Unidos, à guitarra e ao banjo, e por vezes ao piano, durante o século XIX e princípios do XX. Este disco é uma jóia, e claro que lá estão aquelas que Eric Hobsbawn (também um grande crítico de jazz) considerou como algumas das melhores composições de Handy: «St. Louis Blues», «Memphis Blues», «Yellow Dog Blues» e «Beale Street Blues», datadas de 1912-16. Armstrong (trompete e voz) está soberbo, acompanhado por Velma Middleton (voz), Trummy Young (trombone), Barney Bigard (clarinete), Billy Kyle (piano), Arvell Shaw (contrabaixo) e Barrett Deems (bateria). Nas preciosas notas da contracapa, George Avakian dá-nos este testemunho do «pai dos blues»: «"I never thought I'd hear my blues like this." W. C. Handy said again and again. "Truly wonderful! Truly wonderful! Nobody could have done it but my boy Louis!"»

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Antologia Improvável #84 - Carlos Nejar

CLARIDADE

O barulho de existir:
um cão
dentro de mim.

Atravesso
como a um pátio
o barulho de existir.

Árvore do Mundo / Antologia Poética

(edição de António Osório)

Carlos Nejar

Caracteres móveis #53 - Ferreira de Castro (4)

Stanley Tookie Williams

GOVERNADOR -- [...] neste momento, para ser justo, devo ser contra a justiça. Uma simples dúvida basta quando se trata duma vida humana. Parece-me que nada há no mundo que seja mais importante. E se já é absurdo castigar a morte dum homem matando outro, é horripilante a simples admissão de se matar um inocente!
Sim, Uma Dúvida Basta

terça-feira, dezembro 13, 2005

Boa malha

Graças ao Blog da Utopia vi alguns belos trabalhos gráficos de Iskandar Salim, de promoção ao próximo filme do «Homem de Aço», Superman Returns.
Entre eles a representação desta jovial Supergirl, personagem que nos anos cinquenta o pessoal da DC Comics desencantou para animar o solitário Superboy.
E aqui, não sei o que mais admire: se o talento de Iskandar Salim, se o seu portentoso nome.
Na época em que a Supergirl foi criada seria certamente essa a graça do vilão de serviço em qualquer aventura a desenrolar-se para as bandas do Oriente: o cruel e perverso (há que carregar bem nos clichés...) Iskandar Salim, salteador dos desfiladeiros do deserto, o terror das guarnições dos postos avançados do Ocidente em terra de infiéis, e outros enredos de «histórias para rapazes», como então por cá se dizia.
Hoje, a pura inverosimilhança comic-book Superman, conjugação do cientismo oitocentista com o genuíno kitsch n-americano do século passado, é-nos trazida por um criador gráfico que tem nome de turcomano, de cavaleiro da estepe.
Amazing...
De um lado, a assunção de uma vontade, quase de um destino; um pensamento sobre o país, em relação ao qual nos podemos sentir mais ou menos próximos; do outro, slogans, tacticismo, provocação(zinha), dissimulação, demagogia.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Boas maneiras

David Bowie

Figuras de estilo #15 - José Sesinando

O lied (plural, lieder) caracteriza-se por ser cantado por uma senhora de vestido de noite, encostada a um piano Bechstein.*
*Por vezes, dá a impressão de que o piano é que está apoiado na senhora. O piano é, então, um Steinbeck.
Obra Ântuma

domingo, dezembro 11, 2005

Leituras da noite









O Pinheirinho Mágico
(autor[es] não identificado[s])

Para o Vasco, Tó e Rui, que
deram este livro à Capitinha.

Antologia Improvável #83 - Ruy Belo (2)

A MISSÃO DAS FOLHAS

Naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento

Aquele Grande Rio Eufrates / Obra Poética I

Ruy Belo

sábado, dezembro 10, 2005

Imitamo-nos uns aos outros. Alguns têm o talento de tornar a cópia pessoal, quase tudo parecendo arrancado das entranhas. Há quem assuma a paráfrase reverencialmente, com bibliografia vasta e notas de rodapé; e também há os que produzem meras contrafacções. Aos mais afortunados reconhece-se-lhes um veio intertextual.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

Anto

Correspondências #25 - António Nobre a Xavier de Carvalho

Leça, 19 de Outubro de 1886

Xavier:
Já te mandei (vá «tu», pois assim o queres, o bilhete-postal «urgente» que me pediste. É Ellen, sabes?
Perguntas-me se tenho lido a Ilustração? Não. Um irmão meu que assinava já não vive em nossa casa, portanto não a leio. Às vezes, na Província, deparava com um ou outro número. Se não me engano, foi lá que li as «Américas» versos teus de que gostei muito. Agora é tarde. Não poderás enviar-me os números em que eu colaborei? Vê lá.
Muito em breve remeter-te-ei originais à farta, para deles fazeres o uso que quiseres... Quando sair a tua «Révue» manda-ma.
Falas-me em um curso excelente que há em Paris. Ah, quem me dera! Mas tu, -- bem no sabes, -- vivo ainda sob a asa paternal... Embora o desejasse, era impossível.
Meu pai destina-me, e, portanto, forçado sou a frequentar a «Universidade», o antro da estupidez «local»!
Quem me dera, querido Poeta, desdobrar as pequeninas asas de «rouxinol» e, atravessando espaços, ir poisar no dorso altivo duma águia-monstro -- a França.
Tu é que tiveste juízo... a tempo. Vais-te relacionar com essa gente e correspondes-te com ela. Pelo que vejo, os homens daí, são bem mais «humanos» que os de cá. Não têm orgulho. Protegem os novos. Em Portugal, afora um ou outro, os escritores medem-se, não pelos seus escritos, mas pela vaidade. Há um amigo dos rapazes: é o Junqueiro. Este sim. É a Bondade inteligente. Tem um segundo cérebro dentro do coração e um segundo coração dentro do cérebro!
Adeus, abraça-te o teu
António Nobre
Correspondência
(edição de Guilherme de Castilho)

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Boas maneiras

Eric Burdon

Caracteres móveis #52 - Saki

Os dois inimigos ficaram por um momento a olhar-se, espantados. Cada um tinha uma espingarda na mão e ódio no coração, e a ideia de assassínio dominava-lhes os pensamentos. Tinham, finalmente, oportunidade de dar largas às emoções de toda uma vida. Mas um homem, criado segundo princípios civilizados de contenção não pode, de ânimo leve, matar o seu vizinho, a sangue-frio e sem dizer palavra, excepto para punir uma ofensa feita contra o seu coração e honra.
«Os intrometidos», A Tela Humana
(tradução de Isabel Cisneiros)

Aliás, H. H. Munro

quarta-feira, dezembro 07, 2005

e pluribus unum

Antologia Improvável #82 - Alexandre O'Neill (2)

O BEIJO

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

No Reino da Dinamarca / Poesias Completas

O'Neill

Escrever na areia - Alegre vs. Cavaco (ou ontem o blogger devia estar entupido)

Posted by Picasa*tvi
É só para dizer que o debate ontem correu muito bem, a ambos. Sereno e elegante para com Cavaco, político na acepção mais elevada, Alegre tem à esquerda os seus reais adversários. Terá de arrumar com Soares, evidenciando como a candidatura deste é politicamente aberrante num estado moderno e europeu; provavelmente, até ao dia do debate o próprio Soares já terá percebido que o país há muito perdeu a pachorra para gramar outra vez a sua magistratura de influência. Chega. Alegre terá também que pôr Jerónimo no sítio e, se for preciso, perguntar-lhe onde estava antes do 25 de Abril, para ver se o diligente secretário-geral, que anda há um ano a pastorear o rebanho, encaixa; e finalmente mostrar que Louçã é um produto marginal e suburbano, uma espécie de irritação cutânea, por enquanto nada de muito sério que não passe com uma pomada bem aplicada. Uma palavra para Cavaco: terá sempre as suas insuficiências, como todos nós, mas em dez anos ganhou um estofo visível de estadista. Eu também dormirei tranquilo se Cavaco for eleito. Mas, para já, estou com o Manuel Alegre.

terça-feira, dezembro 06, 2005

Hoje há palhaços

Sacarrolha

Nesta quadra do Natal, era hábito irmos ao circo do Coliseu, e lá surgia a inevitável parelha de palhaço rico e palhaço pobre, com aquela fala arrevesada que os caracteriza(va) e que nunca me cativou. O palhaço de carne e osso que mais me deslumbrava, e de que guardo uma terna memória televisiva, era um (já então) velhote suíço que tocava guitarra e uivava para a lua. Foi aliás na televisão que me apareceram uns desenhos animados de um palhaço, desta vez sem sotaques postiços, mas estranhamente dobrado em francês, chamado Bozo le clown. Eu, que sempre gostei do francês e da sua sonoridade, perdia a paciência com estes cartoons de Hollywood, que alguém na RTP encomendara assim defeituosos. Mas o meu palhaço foi sempre o Sacarrolha, o maior (e único) clown do Grande Circo Kabum. Criação do italiano Primaggio Mantovi, desde criança radicado no Brasil, Sacarrolha chegou-me a casa um belo sábado ao fim da manhã, aí por 1971/72, pelas mãos da minha Mãe, numa revistinha brasileira de papel de jornal publicada pela Rio Gráfica Editora. Custava 3$00 e eu já mandei encadernar todos os exemplares. É pura magia infantil. Acho que o Brasil deveria redescobri-lo, e à sua troupe circense.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Caracteres móveis #51 - Guillaume Apollinaire

Ui, o signo do fogo! Ui, o fogo, asch! Ui, Adonai! Asch, que é o fogo em hebraico, dá Aschen, em alemão. Que são as cinzas, as cinzas dos mortos. Ui e haschich vem daí, verosimilmente. Que será o bom sono. Ui, o signo do fogo. Asch, Aschen, haschich e assassino que, já me esquecia, vem também daí. Ui, Ui! Asch, aschen, haschich, assassino, ui, Adonai, Adonai!
«A separação da sombra», O Rei Lua
(tradução de José Carlos Rodrigues)

Apollinaire

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domingo, dezembro 04, 2005

Antologia Improvável #81 - Manuel Alegre

OITAVO POEMA DO PESCADOR

Eu pescador que pesco por um instinto antigo
e procuro não sei se o peixe se o desconhecido
e lanço e recolho a linha e tantas vezes digo
sem o saber o nome proibido.

Eu que de cana em punho escrevo o inesperado
e leio na corrente o poema de Heraclito
ou talvez o segredo irrevelado
que nunca em nenhum livro será escrito.

Eu pescador que tantas vezes faço
a mim mesmo a pergunta de Elsenor
e quais águas que passam sei que passo
sem saber a resposta. Eu pescador.

Ou pecador que junto ao mar me purifico
lançando e recolhendo a linha e olhando alerta
o infinito e o finito e tantas vezes fico
como o último homem na praia deserta.

Eu pescador de cana e de caneta
que busco o peixe o verso o número revelador
e tantas vezes sou o último do planeta
de pé a perguntar. Eu pescador.

Eu pecador que nunca me confesso
senão pescando o que se vê e não se vê
e mais que peixe quero aquele verso
que me responda ao quando ao quem ao quê.

Eu pescador que trago em mim as tábuas
da lua e das marés e o último rumor
de um nome que alguém escreve sobre as águas
e nunca se repete. Eu pescador.

Lisboa, 26.12.96

Alegre






















Boas maneiras

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Chuck Berry

sábado, dezembro 03, 2005

Sebastião José

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Correspondências #24 - O Marquês de Pombal a seu irmão Francisco Xavier Mendonça Furtado, Secretário dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos

Meu Irmão do meu Coração.
Huma das grandes utilidades publicas que trazem comsigo as Companhias de Comercio he a de regularem as quantidades das mercadorias, que devem introduzir, de sorte que tenham huma respectiva proporção, com o consumo dos Paízes onde as taes mercadorias devem ser transportadas: Por que da falta desta justa proporção se segue necessariamente a ruina do Comercio dos Mercadores Nacionaes, e a do Reyno em beneficio dos Mercadores, e dos Paizes Estrangeiros.
A razão he por que, comprando os particulares nacionaes sem regra nem medida tudo quanto lhe querem fiar os Estrangeiros, introduzem de modo ordinario em hum anno Fazendas que necessitam de tres annos p.ª se consumirem. Ora como a esta redundancia se vão acomulando annualmente as outras fazendas, que transportam as Frotas, e os Navios de Licença: Daqui se segue por que não podem vender com lucro, antes lhe he precizo fazello com perda em tanta redundancia: E se segue pela outra parte que os Mercadores Estrangeiros engrossam m.to mais do que deviam engrossar; vendendo de mais aos Particulares todas as fazendas superfluas, que certamente não compra a Companhia; e exhaurindo o cabedal do Reyno em forma que se delle havião de extrahir Hum milhão em dinheiro para lhe venderem o necessario, extrahem mais Dous milhões do que vendem para ficar superfluo, empachando as Logens da America Portugueza.
Para se regular pois a Companhia que S. Mag.e acaba de estabelecer em forma que evite aquelles graves damnos, He o mesmo Senhor servido que mandeis franquear aos Caixas da mesma Companhia nas duas Alfandegas do Grão Pará, e Maranhão, todos os Livros de Abertura para delles tirarem as rellações das Fazendas q. foram para esse Estado pella ultima Frota fazendo tudo o que vos for possivel por que nas mesmas rellações se incluam por hum verosimil arbitrio todas as fazendas, que costumam entrar sem pagarem Direitos com a distinção das suas quantidades, e qualidades debaixo da proporção poco mais, ou menos.
Tambem S. Mag.e manda recomendarvos q o Avizo que deve levar esta seja reexpedido com toda a brevidade, que couber no possivel.
E Eu torno a offerecerme para servirvos com o mayor affecto.
Deus vos G.de m.tos an s
Belleem a. 4. de Agosto de 1755
Irmão m.to am.te vosso
Seb.m Jozeph
In Fritz Hoppe, A África Oriental Portuguesa no Tempo do Marquês de Pombal -- 1750-1777

sexta-feira, dezembro 02, 2005

escreves escreves escreves

escreves escreves escreves escreves
nada do que dizes rompe a superfície do papel
escreves escreves escreves escreves
entre o panache e a autocomiseração
o artifício e a louvaminha
o lacrimejar e a traição
escreves escreves escreves escreves
e tudo quanto escreves escreves escreves
escreves tem o selo de validade para hoje
promoção de último modelo
gravata de saldo
embuste de tablóide
passatempo de televisão

assim não foi assim é
assim será

30-X-2003

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Antologia Improvável #80 - José Afonso

A MEU IRMÃO

O homem voltou ao solar do amigo
O homem queimou um cigarro na testa
O homem voltou calculando o destino
Andou mais um passo e não viu

Matava ele o tempo numa outra azinhaga
E a voz era fraca ninguém o ouvia
A larva estendia e o sol abrasava
A marcha do tempo parou

Havia uma vala na rua comprida
E a porta travava ninguém o espera
O homem cavava uma cova na vida
Ali nem o céu se calou

Trazia uma ruga na cara comprida
Não vinha p'ra nada vinha por nada
E a rua era larga e a rua era fria
Andou mais um passo e tombou

Havia uma hora que havia uma vida
Que o homem andava que o homem corria
E a porta travava e um tiro partia
A marcha do tempo parou

O homem voltou ao solar do amigo
E a casa era escura e a porta batia
O homem queimou um cigarro na testa
Andou mais um passo e tombou

Na volta era a noite
Chupava-se a vida
Que há tempo e medida
Chupava-se a vida
O homem precisa é dum'outra cantiga
Agora que o frio voltou

José Afonso -- Antologia de Textos e Canções

(edição de José Viale Moutinho)

Zeca

quarta-feira, novembro 30, 2005

His holy modal majesty

Mike Bloomfield. Há blues branco? Pergunta disparatada. Basta ir às discotecas com a respectiva secção para vermos que nem todos os músicos têm a tez escura... Há blues branco, há blues europeu (de John Mayall a Rory Gallagher), há blues tão branco que até é tocado por albinos, como é o caso de Johnny Winter, colaborador de eleição de Muddy Waters... Bloomfield foi um judeu de Chicago -- cidade dos blues, portanto --, guitarrista de outro judeu importante, um Zimmermann mais conhecido por Dylan; enquanto tal, é seu o dedilhar (também) eléctrico no álbum Highway 61 Revisited e na mítica «Like a rolling stone». Viveu e morreu num tempo que se esteve razoavelmente nas tintas para os blues; e ele respondeu com a progressiva degradação artística (faria música para filmes porno), e física, até ser encontrado morto por overdose no seu automóvel, ainda não completara os 38 anos. A ouvir, oh a ouvir!

Mike Bloomfield

terça-feira, novembro 29, 2005

Caracteres móveis #50 - George Steiner

Somos bípedes capazes de sadismo indizível, ferocidade territorial, ganância, vulgaridade e todo o tipo de torpeza. A nossa inclinação para o massacre, para a superstição, para o materialismo e o egotismo carnívoro pouco se alterou durante a breve história da nossa estada na Terra. No entanto, este mamífero desgraçado e perigoso gerou três preocupações, vícios ou jogos de uma dignidade completamente transcendente. São eles a música, a matemática e o pensamento especulativo (no qual incluo a poesia, cuja melhor definição será a música do pensamento).
A Ideia de Europa
(tradução de Fátima St. Aubyn)

Steiner

segunda-feira, novembro 28, 2005

Antologia Improvável #79 - Mário Avelar (2)

HERBA SANTA

Associo melodias às estações,
a instantes mais ou
menos vagos na memória. O
Verão de oitenta e cinco, por exemplo.

Regressara nesse tempo da pátria
dos heróis. Os dias fluiam entre
a viagem de um amor vindo
de longe e um almoço fora de horas
num qualquer snack em Lisboa, cracking.

Com liberdade, livros, flores e
a lua, quem não pode ser feliz?

Sim, havia ainda os livros e
a música, o frágil encanto de
Suzanne Vega.

Cidades de Refúgio

JornaL

1) Hoje foi lançado no Centro Cultural de Cascais (Gandarinha) o livro de João Moreira dos Santos, Duarte Mendonça -- 30 Anos de Jazz em Portugal, editado pela Câmara Municipal de Cascais. Repositório essencialmente fotográfico, tem esse grande mérito de recordar uma história em que Cascais mais uma vez se destacou, graças ao sócio de Duarte Mendonça, Luís Villas-Boas. Pessoalmente, recordou-me o concerto mais recuado que a minha memória conseguiu alcançar: tinha 15 anos, e já se manifestava o pendor rocker: no Pavilhão do Dramático de Cascais -- que viria também a ser conhecido pela «Catedral do Rock», lembro-me duma tarde de blues, e da guitarra de Buddy Guy, (Buddy Guy / Junior Wells Blues Band), 11 de Novembro de 1979 (ver p. 90).
2) O jornalismo como grupo profissional sempre primou pela sua razoável indigência. A literatura tem-no referido abundantemente, basta uma referência à caricatura do Palma Cavalão, d'Os Maias. De Eça de Queirós a Fernando Pessoa, de Ferreira de Castro a José Régio, poucos terão sido os escritores de valor que não tenham de alguma maneira execrado, com verdadeiro nojo, a inanidade periodística. Também alguns plumitivos desassombrados o têm feito, como sucede com João César das Neves -- de quem normalmente discordo, mas cuja frontalidade não me desagrada. Neves, que traça um retrato negro dos media no DN de hoje, escreve o seguinte: «Ver o relato jornalístico de algo em que participámos é ficar, em geral, com a sensação de ouvir a única pessoa na sala que não percebeu nada do que ali aconteceu.» Ou como diria o Álvaro de Campos, com aquela qualidade chã dos algarvios: «Ora porra! / Então a imprensa portugueza é / que é a imprensa portugueza? / Então é esta merda que temos / que beber com os olhos? / Filhos da puta! / Não, que nem / ha puta que os parisse.»
3) A ler: José Fernandes Pereira (dir.), Dicionário de Escultura Portuguesa (dir.) (Caminho).
4) A ouvir: Rui Veloso, Espuma das Canções.

domingo, novembro 27, 2005

Boas maneiras

Posted by Picasa
Johnny Rotten e o seu modo peculiar de cantar inclinado,
como se sofresse dos rins,
depois muito imitado