domingo, novembro 29, 2020

Johann Sebastian Bach ((1685-1750) Magnificat BWV 243 (1733) . II Et exsultavit spiritus meus




20 romances portugueses do século XX (+6)

Há quem faça renda ou bricolage para se distrair, invente cozinhados ou ande à volta de motores; eu gosto de conviver com os livros que me fizeram feliz ou muito feliz, até.

Andei aqui uns meses às voltas com o Eurico, e foi giro. Apetece-me agora aumentar a empreitada e escolher 20 romances 20 portugueses do século XX e andar aqui às voltas com eles.

Mas como só o XX não me chega, complemento com cinco do XIX e um do XXI -- a deficiência é minha, certamente, mas até agora apenas um me encheu as medidas neste século.

O critério não me dá facilidades: um por cada autor, tendo de deixar de fora vários, e tantos títulos tão bons -- além dos que esperam por uma primeira leitura. Como não me atenho ao romance, passeio-me também por todos os géneros aqui.

A lista:

Século XIX. 1- Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett (1846); 2- A Filha do Arcediago, de Camilo Castelo Branco (1854); 3- A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis (1868); 4- O Primo Basílio, de Eça de Queirós (1878); 5- O Barão de Lavos, de Abel Botelho (1891). 

Século XX. 1- Húmus, de Raul Brandão (1917); 2- A Catedral, de Manuel Ribeiro (1920); 3 Andam Faunos pelos Bosques, de Aquilino Ribeiro (1926);4 4- Emigrantes, de Ferreira de Castro (1928); 5- Jogo da Cabra Cega, de José Régio (1934); 6- Ana Paula, de Joaquim Paço d'Arcos (1938); 7- Cerromaior, de Manuel da Fonseca (1943); 8- Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio (1944); 9- Servidão, de Assis Esperança (1946); 10- A Toca do Lobo, de Tomaz de Figueiredo (1947); 11- Cárcere Invisível, de Francisco Costa (1949); 12- Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira (1953); 13-: A Sibila, de Agustina Bessa Luís (1954); 14: Barranco de Cegos, de Alves Redol (1961); 15- A Torre da Barbela, de Ruben A. (1964);  16- O que Diz Molero, de Dinis Machado (1977); 17- Sinais de Fogo, de Jorge de Sena (1979-póstumo); 18: O Rio Triste, de Fernando Namora (1982); 19- Para Sempre, de Vergílio Ferreira (1983); 20- Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago (1995).

Século XXI. 2013: As Primeiras Coisas, de Bruno Vieira Amaral.




Béla Bartók (1881-1945), Concerto para violeta (1945), Sz 120 - II. Adagio religioso




quadrinhos


 Didier Conrad 
Astérix -- A Filha de Vercingétorix
Jean-Ives Ferri

sábado, novembro 28, 2020

Isaac Albéniz (1860-1909), Concerto #1 para piano e orquestra ("Concerto Fantástico") (1887), Op. 78 - II. 'Rêverie et scherzo. Andante-Presto




a arte de começar

 «A noite se antecipou. Os homens ainda não a esperavam quando ela desabou sobre a cidade em nuvens carregadas. Ainda não estavam acesas as luzes do cais, no Farol das Estrelas não brilhavam ainda as lâmpadas pobres que iluminavam os copos de cachaça, muitos saveiros ainda cortavam as águas do mar, quando o vento trouxe a noite de nuvens pretas.» 

Jorge Amado (1912-2001), Mar Morto (1936)

Arvo Pärt (1935), Für Alina (1976)






quarta-feira, novembro 25, 2020

a arte de começar

«O edifício, velho e longo, muito longo e de um só piso, parecia querer mostrar que a sua missão, justamente por ser celeste, devia agarrar-se à terra, estender-se bem na terra, para extrair a alma dos homens que nela viviam. No telhado antigo, com o pó dos tempos fixado em crostas esverdeadas que nenhuma chuva conseguia lavar, os pardais faziam o ninho na Primavera. Em baixo, entre as paredes e as covitas que as goteiras, em horas pluviosas, abriam no solo, vicejavam lírios, roseiras trepadoras e tenros pés de salsa que o irmão hortelão  não se dispensava de cultivar. Ao fundo, com uma árvore em frente, tão ramalhuda que quase a ocultava, erguia-se a capela, que, ligada embora ao edifício, avançava sobre o jardim, dando ao todo a forma de um grande L.»

Ferreira de Castro, (1898-1974), A Missão (1954)

«Só Sabi»

quadrinhos

Edgar Vasques, O Gênio Gabiru (1998)

 

«Leitor de BD»


Zardo, por Tiziano Sclavi e Emiliano Mammucari

segunda-feira, novembro 23, 2020

o verbo manejado

 «Bendito Aquele que tem o reino dos céus e da Terra, que comanda a imensidão do Espaço, que conhece o Tempo…» Alcorão, XLIII, 85 (epígrafe em O Meu Coração É Árabe, de Adalberto Alves)

(dou explicações)

quadrinhos


 Zé Nuno Fraga, A Assembleia de Mulheres (2019)
texto de Aristófanes

50 discos: 6. MONEY JUNGLE (1962) - #9 «A Little Max (Parfait)»




domingo, novembro 22, 2020

Béla Bartók (1881-1945), Concerto para violeta (1945), Sz 120 - I. Moderato




a arte de começar

 «Bernardo tinha-lhes estragado a noite, que eles planeavam esticar até de madrugada pelas sociedades recreativas e as fogueiras que voltavam a acender-se não em pátios, como os pais contavam que no tempo deles se fazia em Lisboa, mas nos jardins dos amigos. Festejar os santos populares era a última das modas no social da Linha. Sem alcachofras nem descantes, mas com acompanhamento de churrascadas nas barbecues, e de muito gin  e whisky.»

Júlia Nery (1939), Valéria, Valéria (1998) 

Luís de Freitas Branco (1890-1855): Antero de Quental (Poema Sinfónico) (1907)




Tony Banks (1950) - Seis Peças para Orquestra (2012) - #1 Siren




sábado, novembro 21, 2020

a arte de começar

«Essa história de amor -- por curiosa coincidência, como diria D. Arminda -- começou no mesmo dia claro, de sol primaveril, em que o fazendeiro Jesuíno Mendonça matou, a tiros de revólver, D. Sinhàzinha Guedes Mendonça, sua esposa, expoente da sociedade local, morena mais para gorda, muito dada às festas da Igreja, e o Dr. Osmundo Pimentel, cirurgião dentista chegado a Ilhéus há poucos meses, moço elegante, tirado a poeta. Pois naquela manhã, antes de a tragédia abalar a cidade, finalmente a velha Filomena cumpria a sua antiga ameaça, abandonara a cozinha do árabe Nacib e partira, pelo trem das oito, para Água Preta, onde prosperava seu filho.»

Jorge Amado (1912-2001), Gabriela, Cravo e Canela (1958)

Luís de Freitas Branco (1890-1955), Sinfonia #1 (1924): I. Adagio - Allegro molto. II. Andante. III. Allegro vivace




no LEFFest #4




sexta-feira, novembro 20, 2020

a arte de começar mais depressa

«Diálogo no tempo morto». «--Tudo seco!»

«Diálogo em torno da fogueira». «-- Ó nosso avô, ó mais velho da nossa aldeia, aqui estamos todos para ouvir a tua voz.»

«Diálogo dos bem casados». «-- Já apitou, Germano?»

«Diálogo dos homens na praia». «-- Oh! Boa tarde aí pessoal.»

«Diálogo dos pastores em transumância». «-- Ponhamos mais um pedacinho de lenha na fogueira, Tjivandja.»

«Diálogo dos emigrantes». «-- Andámos muito hoje, mano.»

«Diálogo na rua escura.» «-- Vês aquela rua escura?»

Henrique Abranches (1932-2006), Diálogo (1962) 

50 discos: 1. LOUIS ARMSTRONG PLAYS W. C. HANDY (1954) - #9 «Chantez-les Bas»




no LEFFest #3




quinta-feira, novembro 19, 2020

o Evangelho contra-ataca: «Eurico o Presbítero» (21)

 continuar: «A ventura das armas muçulmanas tinha chegado ao apogeu, e a sua declinação começava, finalmente.» Capítulo XIX, «Conclusão», pp. 276-282 da minha edição.

Herculano optou por fazer em capítulo próprio o remate da narrativa amorosa (provisório), bem como o da história militar. Neste caso, com a vitória de Covadonga, começa o que se chamou a Reconquista: o Cavaleiro Negro, Eurico justicia o Conde de Ceuta e o bispo de Sevilha, Opas e deixa-se imolar por Muguite, o comandante do exército invasor. Nem outra morte seria admissível: exterminar os traidores e deixar-se matar pelo primeiro dos soldados inimigos. Em nota, o autor diz que a morte daquelas duas personagens históricas era controversa quanto à ocasião da sua ocorrência, e, portanto, enquanto ficcionista o noutras ocasiões historiador tomou as suas liberdades, como é natural. A Hermengarda, que perde a razão, está reservado o

explicit. «A desgraçada tinha, de feito, enlouquecido.»

Eurico o Presbítero é um dos primeiros romances da literatura portuguesa por várias razões, e oportunamente, aqui ou noutro lado, falarei delas. Entre a circunstância de sê-lo literalmente -- foi publicado em 1844 -- é-o também graças ao génio de Alexandre Herculano, um escritor totalmente do seu tempo como são os grandes, e ainda um estilista extraordinário, um verdadeiro escritor.  

50 discos: 12. YES (1969) - #8 «Survival»




no LEFFest #2

terça-feira, novembro 17, 2020

domingo, novembro 15, 2020

amor de perdição: «Eurico o Presbítero» (20)

começar: «Apenas Pelágio transpôs o escuro portal da gruta, Eurico alevantou-se.»  Capítulo XVIII, «Impossível!», pp. 256-275 da minha edição.

Finalmente desvendada a identidade de Eurico, é agora que a questão do celibato dos padres como absurdo e atentado à integridade humana que é posto em toda a aspereza do deu dano. Com Hermengarda ao lado, o padre luta com o homem dentro de si; mas uma vez que sobre a existência «deixara cair a campa de bronze do sacerdócio», imagem fortíssima. O protagonista remói, dilacera-se, à entrada da gruta, sobre o vale. E o que temos é uma espécie de tela de Friedrich, por palavras:

«Eurico deu alguns passos e encostou-se à boca da gruta; porque os membros exaustos lhe fraqueavam, apesar de que nem um momento o abandonasse a força da alma enérgica. A brisa frigidíssima da madrugada consolava-o, como ao febricitante a aragem de um sol posto do outono. A seus pés estavam as trevas do vale, sobre a sua cabeça as solidões profundas e serenas do céu semeado dos pontos rutilantes das estrelas mal desbotado do ocidente pela última claridade da lua minguante que desaparecia. Era a imagem da sua vida. Serena e esperançosa, como o crepúsculo do luar fugitivo lhe fora da juventude. Desde que um amor desditoso o fizera alevantar uma barreira entre si e o ruído do mundo; [...]».  

Todo o texto, aliás, está repleto de formulações extraordinárias de incompreensão pela falta de humanidade que impõe a amputação da dimensão amorosa. Alexandre Herculano é um extraordinário escritor, e a sua prosa envelheceu bem.


Johann Sebastian Bach ((1685-1750) Magnificat BWV 243 (1733) . I. Magnificat




sábado, novembro 14, 2020

John Barry (1933-2011) Out of Africa - Banda sonora (1985) 1«I Had A Farm In Africa»






a arte de começar

«Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas,tem hoje quarenta e nove anos, por ter nascido em 1815, na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda.»

Camilo Castelo Branco (1825-1890), A Queda dum Anjo (1865) 

Isaac Albéniz, Concerto #1 para piano e orquestra ("Concerto Fantástico") (1887) (1860-1909), Op. 78 - I. Allegro ma non troppo




quinta-feira, novembro 12, 2020

ó Ventura, diz lá aos pobrezinhos de espírito quanto custam os teus outdoors e quem é que tos paga

 Nas tintas para o fascismo de ocasião do Ventura; ele é tudo e o seu contrário, tão fascista quanto eu sou do Sporting O que me chateia é ver continuamente a cara deste gajo na rua. Quem lhe paga os outdoors? Os nomes dos apoiantes estão aqui neste artigo de António Garcia Pereira. Eu, na verdade, quero que o Ventura se foda. Mas não me apetece deixar passar em branco a aldrabice e, pelo menos, contribuir para alertar os pobres diabos que lhe vão na cantiga. Sempre é uma questão de higiene. É espalhar...

50 discos: 10. THE DOORS (1967) - #8 «I Looked At You»




quarta-feira, novembro 11, 2020

o pintor poeta, o cronista e o tradicionalista visionário

 Dizer que em três dias o país ficou mais pobre é um grande cliché? Então eu digo: em três dias o país ficou muito mais pobre.

Artur do Cruzeiro Seixas (n. 1920) só pelo que representava como um dos surrealistas iniciais assumidos enquanto tal -- o Grupo Surrealista de Lisboa, que em 1949 perguntava até quando o medo num país guardado pela pide, coisa muito de se arrecear, pergunta que exigia tomates volumosos, ou não estivesse isto tudo salpicado de bufos e legionários. A sua pintura deixa-me frio, devo dizer, ao contrário de algumas assemblagens. mas a sua poesia límpida, publicada em bloco tardiamente, organizada por Isabel Meyrelles, foi a revelação de um autor excepcional. Morreu no dia 8.

Artur Portela, Filho (n.1937), um publicista fulgurante, uma mistura de Camilo e Eça, entre o escárnio e e a ironia, era devastador. Os volumes de A Funda, sete, aí estão para o comprovar, e são testemunho do período de transição do Estado Novo para a democracia. O jornalismo político passa por ele. Não li nenhum dos seus romances. Morreu ontem, dia 10.

Hoje, Gonçalo Ribeiro Telles (n. 1922), monárquico, oposicionista, porta da paisagem, porta da ecologia. Quem deambula nos jardins da Gulbenkian na canícula estival sabe-o. Tradicionalista e progressista no melhor sentido, municipalista, comunalista, fundou o PPM, com Henrique Barrilaro Ruas, medievalista e camonista de grande relevo. Teve o cargo político mais extraordinário que já existiu num governo, o de ministro da Qualidade de Vida.



«Leitor de BD»

 

Carl T. Anderson, John Liney, Henry

50 discos: 49. AS IS NOW (2005) - #8 «From The Floorboards Up»




terça-feira, novembro 10, 2020

a arte de começar

«A multidão se levantou como se fora uma só pessoa. E conservou um silêncio religioso. O juiz contou:»

Jorge Amado (1912-2001), Jubiabá (1935) 

50 discos: 14. LIVE AT LEEDS (1970) - #8 «I'm A Boy»




segunda-feira, novembro 09, 2020

a organização da espera: «Eurico o Presbítero» (19)

 Continuar: «O espectáculo que oferecia a caverna de Covadonga na noite imediata àquela que se despediu com os sucessos das margens do Sália era mui semelhante ao dessa outra noite em que Pelágio recebera a nova do cativeiro de Hermengarda; -- espectáculo semelhante, mas personagens, em parte diversas.» Capítulko XVII, «A aurora da redenção», pp. 241-245 da minha edição.

Capítulo que se organiza em torno da táctica de enfrentamento das forças muçulmanas e aliados visigodos. Recordemos que a invasão de 711 ocorre no âmbito de uma guerra civil no reino visigótico, com os árabes e berberes chamados por uma das partes. Covadonga está situada nos Picos da Europa, lugar azado para emboscadas, como, séculos antes, os Montes Hermínios, a Serra da Estrela, os lusitanos iam massacrando os romanos. (Herculano faz reaparecer Gustislo, semi-selvagem e mais lusitanos -- «Os quase selvagens filhos do Munda, vestidos de peles de alimárias [...]», que se preparam para a espera na companhia dos cântabros, que também custaram a Roma um preço elevado).

Enquanto a febril Hermengarda repousa sob o efeito dos curativos do monge Baquiário, junto dos quais Eurico permanece, docemente intimado pelo irmão daquela, Pelágio, que organiza, mais do que a resistência, a cilada no âmago daquelas montanhas, enftrenta protesto dos seus guerreiros, nomeadamente Sanción, pela falta de nobreza no enfrntamento do inimigo, numa galhardia guerreira talvez extemporânea.



50 discos: 22. BURNIN' (1973) - #8 «Duppy Conqueror»




domingo, novembro 08, 2020

a arte de começar

 «Ao cair de uma tarde de Dezembro, de sincero e genuíno Dezembro, chuvoso, frio, açoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera, subiam dois viandantes a encosta dr um monte por a estreita e sinuosa vereda, que pretensiosamente gozava das honras de estrada, à falta de competidora, em que melhor coubessem.»

Júlio Dinis (1839-1871), A Morgadinha dos Canaviais (1868)

sábado, novembro 07, 2020

sexta-feira, novembro 06, 2020

50 discos: 8. RUBBER SOUL (1965) - #8 «What Goes On»




a arte de começar

 «Vadinho, o primeiro marido de Dona Flor, morreu num domingo de Carnaval, pela manhã, fantasiado de baiana, sambava num bloco, na maior animação, no largo 2 de Julho, não longe de sua casa. Não pertencia ao bloco, acabara de nele misturar-se, em companhia de mais quatro amigos, todos em traje de baiana,  e vinham dum bar no Cabeça, onde o whisky  correra farto  à custa de um certo Moysés Alves, fazendeiro de cacau, rico e perdulário.»

Jorge Amado (1912-2001), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966)

quarta-feira, novembro 04, 2020

segunda-feira, novembro 02, 2020

a arte de começar

 «Logo que as cabras e as ovelhas entestaram à corte, o "Piloto" deu por findo o seu trabalho. E antes mesmo de o pastor, que lhe aproveitava os serviços, se dirigir a casa, ele meteu ao extremo da vila. Rabo entre as pernas, focinho quase raspando a terra, ia triste, cismático, como perro vadio de estrada, descoroçoado da vida. Subitamente, porém, sorveu no ar algo que lhe era conhecido. A cauda ergueu-se num ápice, formando volta que nem cabo de guarda-chuva; a cabeça levantou-se também e nela luziram os olhitos até aí amortecidos. "Piloto" estugou o passo. O caminho estava cheio de tentações, de paragens obrigatórias, estabelecidas por todos os cães que passaram ali desde que Manteigas existia, desde há muitos séculos. Forçado a deter-se, ele regava, à esquerda e à direita, rudes pedras, velhos castanheiros, velhos cunhais, mas fazia-o alegremente e com o visível modo de quem leva pressa. Em seguida, voltava a correr no faro do seu dono. Cada vez o sentia mais perto e cada vez era maior o seu alvoroço. Por fim, lobrigou-o. Horácio estava junto de Idalina, também conhecida de "Piloto"; estavam sentados num dorso de rocha que emergia da terra, ao cabo das decrépitas e negrentas casas do Eiró, no cimo da vila. E tão atarefado parecia Horácio com as palavras que ia dizendo à rapariga, que não deu, sequer, pela chegada do cão. Vendo-o assim, "Piloto" hesitou um instante, enquanto agitava mais a cauda e tremuras de alegria lhe percorriam o corpo. Logo se decidiu. E, humilde, foi colocar o focinho sobre a coxa do amo, como era seu costume quando este o chamava, à hora da comida, nos dias em que os dois andavam pastoreando o gado, lá nos picarotos da serra. Só então o amo deu por aquela presença. Ele regressara nessa tarde do serviço militar e, no entusiasmo de ver pai e mãe, os vizinhos, e, sobretudo, Idalina, não se havia lembrado ainda do seu antigo companheiro. Agora, porém, afagava-lhe a cabeça e metia, enternecido, um parêntesis na narrativa que estava fazendo:»

Ferreira de Castro (1898-1974), A Lã e a Neve (1947)

50 discos: 23. CRIME OF THE CENTURY (1974) - #8 «Crime Of The Century»




domingo, novembro 01, 2020

"o rei dos bosques" - «Eurico o Presbítero» (18)

 continuar: «A hora de amanhecer aproximava-se: o crepúsculo matutino alumiava frouxamente as margens do rio mal-assombrado, que corria turvo e caudal com as torrentes do inverno.» Cap. XVI, «O castro romano», pp. 219-240 da minha edição.

Capítulo onde nada e tudo acontece nas extremidades de um grosso tronco, ponte e passagem únicos sobre um precipício, no meio do qual corre o rio Sália; em que, febril e à beira da exaustão, Hermengarda, sente a atracção do abismo, o suicídio, essa «espécie de encanto fatal». Muito boas as passagens a propósito. Capítulo, ainda, em que o Cavaleiro Negro se desvela, Eurico, para ainda mais forte comoção da irmã de Pelágio.

Uma nota para o modo como o autor põe o discurso directo mas personagens populares: os guerreiros ou o barqueiro, analfabetos e rudes, falam como Eurico, uma linguagem articulada como se fossem instruídos; e nós, leitores do século XXI, aceitamo-lo com bonomia... E, claro, o que conta é o estilo impecável e vigoroso do grande Herculano. Eis um tronco, que será passagem e salvação:

«A ponte romana, porém, se outrora aí existira, haviam-na consumido as injúrias das estações. Em lugar dela, os habitantes daqueles desvios tinham tombado através do Sália um roble gigante, que nos seus dias seculares fora enredando as raízes nos seios da pedra, até irem beber no leito do rio. A árvore monstruosa derrubada por cima da corrente, caíra sobre o alcantil fronteiro e vivia de uma vegetação moribunda, que mal podia conservar através do cepo, arrancado quase inteiramente do solo. Calva e musgosa, apenas alguma vergôntea, que lhe rompia da enrugada epiderme na primavera para morrer no estio, dava sinal de que o rei dos bosques ainda não era inteiramente cadáver. Mas essa pouca vida bastava para que a obra rude dos bárbaros montanheses durasse por mais anos que a edificação dos antigos metatores ou engenheiros das legiões romanas.  [...]»


«Cala-te e Dança»

«Railroad Worksong»