quinta-feira, março 20, 2025

o que aconteceu

«Ecoam os passos na eira deserta, abre-se a porta da cozinha e o criado atura ao lume um braçado de poda: entre estalidos, a labareda ilumina as figuras atentas, o homem seco como as vides e a cabeça toda branca; a senhora Emília metida na sombra, calada como se não existisse; os filhos, o José que é ladrão, a Rosa que acabou nas vielas; e o criado, o Manco, sempre a cantar, como aqueles grilos a quem se tira uma perna para cantarem melhor.» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

«...Era integralmente um santo homem, convencido da fatuidade do bem e do mal, de quanto o esforço humano é vão, e de que tudo à superfície da terra, a começar pela ciência e a arte, é uma espuma falaz. No entanto a sua posição, sob o ponto de vista de cidadenia, era a de combatente duma barricada. Desde que o conheci, e foi durante uma década de anos, não dei conta que se arredasse do parapeito. Batia-se pelos desgraçados, pelos humildes, pelos tristes, pelos que tinham fome e sede de sol, de simpatia ou de pão, simbolizados na mulher da esfrega, na Candidinha malfadada; batia-se e sofria pelos próprios maus, vítimas duma sociedade iníqua e duma nefasta sina sem remissão. A sua gesta no livro, na palestra, era a dum revoltado.»
Aquilino Ribeiro, " Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais" "Perfil Breve de Raul Brandão" (1949)