domingo, março 23, 2025

o que está a acontecer

«A livraria, clara e larga, escaiolada de azul, com pesadas estantes de pau-preto onde repousavam, no pó e na gravidade das lombadas de carneira, grossos fólios de convento e de foro, respirava para o pomar por duas janelas, uma de peitoril e poiais de pedra almofadados de veludo, outra mais rasgada, de varanda, frescamente perfumada pela madressilva, que se enroscava nas grades.» Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires (1900)

«O negociante representava cinquenta e cinco anos, bem conservados. No olho direito tinha muita vida; o esquerdo, porém, nesta ocasião, tinha um terçollho, e inflamado,  de mais a mais, pelo calor. / Além do dito, o Sr. Silva estava sofrendo um segundo terçolho no espírito.» Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago (1854)

«A escuridão remexe. Não se sabe bem onde o sonho acaba e começa a matéria, se é uma cidade desconforme, sepulta em treva e lavada em lágrimas, ou meia dúzia de casebres e uma torre banal. Uma luzinha alumia um Cristo aflitivo na abóboda de pedra sustentada por quatro arcos ogivais.» Raul Brandão, A Farsa (1903)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

«Se definir ao presente o que seja um poeta é problema bicudo, pelo menos no que a função tem de idealista e vinca o indivíduo dentro da dinâmica social, muito mais o é quanto a uma época sobre que se adensou a escuridão da distância. Pode ter-se o poeta como uma potência do espírito, providencial e mundificadora, espécie de 'medium' do que há de recôndito ou de belo na vida transitória, ou não passa dum tropo, uma arbitrária e exsudada cegarrega de cigarra?!»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões - Fabuloso*Verdadeiro". Ensaio (1950)