A Catedral «E os escavadores de antiguidades, os paleontólogos da história, sondando os arcanos, esquadrinhando os recantos, esgravatando os relevos e encarniçando-se horas e horas sobre centímetros quadrados de pedra, na pista dum sinal e à cata da menor grafia, tinham atacado os latins gastos das inscrições, os góticos corroídos dos epitáfios, toda a linguagem enferrujada dos velhos tempos, desarticulada e posta a falar nas bárbaras sonâncias mortas.» Manuel Ribeiro (1920)
Andam Faunos pelos Bosques «Via-se luzir em volta o verniz das cadeiras de palhinha, e na gaiola de folha, preso pelo pé, o papagaio figurava numa daquelas suas melancólicas crises de proscrito, com a cabeça debaixo da asa, um novelo de lã verde mal dobada.» Aquilino Ribeiro (1926)
Emigrantes «Cuspiu a ponta do cigarro e, para não magoar o pé, desceu, com cuidado e vagares de homem da cidade, os três metros que o separavam do ínvio caminho.» Ferreira de Castro (1928)
2 comentários:
«Gemia um carro lá longe e parecia naquele gemer vibrar toda a melancólica languidez do crepúsculo. No velho caminho - olhando novamente para lá - nem pó avistou do ledo rancho que passara. Voluntariamente, parecia guardar a natureza religioso e grato silêncio. Ali perto, nada mais possessivo sob o céu de incríveis profundidades que os pinhais, negros de seiva e os campos de centeio, balofos de verde. Mas duas andorinhas desceram sobre o telhado defronte e, a papear primeiro, depois extáticas, peitoral branco a luzir, diziam na mudez espacial: cá estamos! Uma rola, ainda, rompeu para trás das casas na sua arieta magoada; milagre do ar puríssimo, ouviu-se o chocalho dos rebanhos badalejando longe; calou-se, volveu a ouvir-se; e, sincopado, figurou-lhe o doce solilóquio do ermo. Aborrecido com a lágrima poética que lhe empapava a alma, Jesuíno retirou os olhos do panorama encantado.»
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«Ao alvorecer daquele grande dia de Junho, nos cem e um campanários da serra tangeram os sinos a rebate. Pasmaram os passarinhos que já afinavam as vozes para cantar à madrugada, e em casas de soalho e choças de colmo o serrano pulou das mantas. Foram-se as estrelas apagando por miríades, por cachos, uma a uma, e a volata das torres continuou a percutir os ares com fragor tão cheio e empolado, que os anjinhos que moram por cima das nuvens, se bem mais leves que a penugem alva das pombas, deviam sofrer um bate-cu muito para causticar suas naturezas melindrosas.»
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«Com este aparato e sanha nunca vista dispararam cem povos, naquela dulcíssima manhã de Junho, em batida à serra, onde corria um génio, lúbrico e astuto como deus pagão, que uma a uma passava a donas as cachopas inocentes. Dessa entidade mistagógica, invisível à vista, inclassificável ao entendimento, o eco das façanhas toava longe. Com sobeja ou gratuita razão, às suas costas eram descarregados todos os insultos à pureza, muitas sendo as moças, depois da Micas Olaia, entre zagalas, boieiras, raparigas das jornas e morgadinhas, a chorar a desfeita temerosa.»
Aquilino Ribeiro - Andam Faunos Pelos Bosques (1926)
É maravilhoso...
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