sábado, agosto 31, 2024

"não é fácil o amor"

...melhor seria arrancar um braço”... canção de Janita Salomé que veio à cabeça ao relermos O Amor Infinito que Te Tenho (2011), de Paulo Monteiro (Vila Nova de Gaia, 1967). Com dez curtas narrativas (um índice daria jeito...), é poesia posta em quadradinhos, sem surpresa, pois o autor é também poeta, embora bissexto.

Histórias muito centradas nas suas circunstâncias pessoais, nem por isso deixam de interessar em várias latitudes – ou não fosse este um livro com várias traduções, e não fosse também o ser humano igual por toda a parte. Amor filial, amor paternal, amor conjugal, amor impossível, amor altruísta, amor egotista, amor que tem à espreita o seu próprio fim, pois que tudo desesperantemente acaba; BD ora solar ora de trevas, quanto mais negra mais carregadas as vinhetas, e mais limpas quanto mais jubilosa.

No fim, Monteiro incluiu excertos do diário da feitura do livro, motivo suplementar de interesse em que podemos acompanhar os itinerários de criação – os sucessos: «3h30 de trabalho. Hoje saiu-me tudo bem! E se eu desenhasse sempre assim? 3H30 e duas vinhetas!» (4.1.2009); os fracassos: «Parti a caneta com toda a força contra o estirador e saí para a rua desvairado e furioso comigo mesmo.» (22.10.2008); e os impasses: «É só um livro com meia dúzia de histórias. O importante é a vida. Vou ouvir a Amália. Os fados alegres, claro.» (16.2.2009).

O Amor Infinito que Te Tenho e Outras Histórias

texto e desenhos: Paulo Monteiro

2.ª edição, Polvo, Lisboa, 2012

(Novembro, 2019)



tempo de novela

«Entrelaço no desenho do seu nome quanto a imaginação me pede de distância e de perigo. Vivo nele. E, enquanto dura a memória dos seus passos, sinto-me tão verdadeiro que quase sou feliz.  // Começo sempre por vê-lo sair das berças, Penedono, no Alentejo, onde nasceu e se criou a guardar gado.» Miguel Torga, O Senhor Ventura (1943) § «Estava uma noite baça, húmida, morna e sem vento. Depois de se esgueirarem ao longo da vedação, para lá da qual se ouviu, no silêncio, o chocar metálico de dois vagões em manobras, André e o camarada que o ia apresentar desembocaram na via. Seguiram uns cem metros e pararam atentos.» Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites (1975) § «Nas tardes de feira, sentado da banda de fora do Guilhermino, ou num dos poiais de pedra, donde já tivessem erguido as belfurinhas, alegre do verdeal, descocava-se a desfiar a sua crónica perante escrivães da vila e manatas, e eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu.» Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas (1922)

tempo de romance

«O piedoso intuito não desculpava, porém, a teratologia arquitectónica daquela fachada de prédio burguês, hediondo alinhamento de caixilhos envidraçados, irreverentemente sobrepostos às admiráveis arcaturas inferiores com ogivas que brotavam de esbeltos colunelos geminados.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920) § «E sem dúvida falou e abendiçoou aos verdilhões, arquitetravós desses que aí andam na figueira a debicar os figos lampos. Quando para aqui vieres, que a tua mente esteja pura, Libório; este retiro -- sabes? S. Francisco de Assis foi Jesus que voltou ao mundo de pobrezinho -- é tão inspirado como o Horto das Oliveiras.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918) § «Porém essas noites não eram minhas. Estas começavam sempre mais tarde, exigiam-se só, e requeriam disposições extraordinárias. Eu andava então horas e horas entregue a uma espécie de devassidão -- não acho outra palavra -- durante a qual vivia, por assim dizer, todo o meu passado e todo o meu futuro.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934) § «-- S'o patrão não andasse de fogo no rabo por mor do rancho, seis dias de molho dava-lhe uns saquitos bem bons. Assim... ainda adrega uma seara como por aqui não há outra. / Andava por oito meses que corria aqueles combros de alto a baixo.» Alves Redol, Gaibéus (1939)

quinta-feira, agosto 29, 2024

resistir é vencer

Valério, arquitecto de meia-idade, passeia pelas ruas com um carrinho-de-mão carregado de tijolos. Em flashback, ficamos a saber que quando a Troika se instalou, a oficina de arquitectura onde trabalhava fechou portas, solidária à força com o empobrecimento geral do país, pobreza em que caíramos por entre esquemas de variegada proveniência, políticas de sentido único e prestidigitações financeiras. Nas mãos dos mercados, esse Shazam! da modernidade dos povos talhados para as alegrias do 5G, foi um ver-se-te-avias na degradação do nosso viver habitualmente. Os portugueses medianos, ingeridos sem esforço, tornaram-se bons nutrientes para a comilança da banca e a veniaga partidária; os pobrezinhos e sobrantes, alavancaram o elevador espiritual de muito bom praticante de banco alimentar, cujo Céu certamente foi ganho.

O desempregado Valério resolve então recuperar a casa que lhe ficara dos avós que, com espanto e indignação, descobre ocupada por gente sem-abrigo & outros desqualificados. Porém, à síncope que então o acometeu, seguida de internamento, sobreveio um outro olhar sobre o real, e tudo deixaria de ser como fora até aí: Valério passa a prestar atenção aos outros – «construir para resistir» torna-se uma divisa. E deste modo pretendeu edificar uma outra realidade, diferente da liquefação contemporânea sem horizontes para muitos, nem tecto ou chão, como se de um novo ajustamento se tratasse, desta vez o da decência, à margem da mercantilização da cidade e de quem nela vive.

Os portugueses, e os lisboetas em particular, passaram agora a andar ditosos com a procura turística. Não há cidade que aguente ou aeroporto que chegue para tanta oportunidade de fazer dinheiro Pelo meio desta “avidez da ganhuça” – para citar o escritor anarquista Assis Esperança (1892-1975) –, haverá sempre tipos estranhos que recolhem tijolos, para desdém dos empreendedores e desgosto dos presumíveis herdeiros.

Com uma composição dinâmica de cada prancha, em que a vinheta tradicional está implícita ou simplesmente não existe, a benefício da fluidez narrativa, Pedro Burgos (Lisboa, 1968), ilustrador e arquitecto que “gosta de desenhar histórias aos quadradinhos sem quadradinhos”, como reza a contracapa, dá-nos em O Coleccionador de Tijolos uma parábola dos tempos que correm.

A leitura lembrou-nos por vezes o Will Eisner do The Building, de que já falámos; outras, a poética do franco-grego Fred, criador do maravilhoso Philémon. A edição é cuidada, com atenção aos pormenores (por exemplo, a analepse impressa em papel doutra cor). Mestria na composição, solidez de ponto de vista, que não nos deixa indiferentes, humor e amor em doses comedidas – o que mais se pode querer de uma BD?

O Coleccionador de Tijolos

argumento e desenhos de Pedro Burgos

edição: Chili com Carne, Cascais, 2019

(Novembro, 2019)







terça-feira, agosto 27, 2024

um mundo à parte

Jeff Smith (The Rocks, Pensilvânia, 1960) integrou cedo a família de autores que criam o que gostariam de fruir, talvez farto da oferta corrente (mutantes e outras criaturas de várias cores em remultiplicação infinita). As influências são as dos velhos comics, de Walt Kelly (Pogo) a Carl Barks (Tio Patinhas), mas também Moebius. Will Eisner, entusiasmado, falou de Herriman (Krazy Kat); outros referiram-se a Schulz (Peanuts) – tudo gente de alto coturno, a que se juntam referências literárias (Mark Twain, Tolkien), para não falar do cinema (Star Wars). Daqui e do mais extraiu esta criação original que dá pelo nome de Bone, publicada entre 1991 e 2004.

Mundo à parte, em que o maravilhoso e o fantástico se conjugam, os Bones são criaturas alvas como um osso de BD. Três primos estão na base da série: Fone Bone, sensato e sensível, Phoney Bone, autoritário e ganancioso, Smiley Bone, um simplório. Execrado e expulso de Bonneville, Phoney leva consigo os dois parentes. Perdidos no meio dum deserto não assinalado nos mapas, são assaltados por uma nuvem de gafanhotos e dispersam-se. Fone Bone, a personagem principal, dá por si numa superfície escalavrada, avistando ao longe uma floresta – típico tópico de interdição e perigo – , com um vale no centro. Aí vive uma pré-adolescente por quem Fone se apaixona, chamada Thorne (‘Espinho’), com uma avó muito peculiar, e também afáveis criaturas do bosque, além de horrendas ratazanas do tipo pós-nuclear. Por todo o lado, um original dragão da guarda faz aparições inesperadas; e à medida que o enredo se intrinca, mais queremos entrar nesse estranho universo.


Fora de Boneville

texto e desenhos: Jeff Smith

edição: Via Lettera, São Paulo, 2002

(Novembro 2019)





tempo de novela

«Mas imediatamente ele se debruçou na portinhola e falou num tom mais íntimo: / -- Boa noite! Espero tornar a encontrá-la. Elvas não é assim tão longe de Portalegre! E terei muitíssimo prazer... / Pegando atrapalhadamente nas suas coisas, Rosa Maria afastou-se um pouco. Estava escuro e frio.» José Régio, Davam Grande Passeios aos Domingos (1941) § «Esta hora, sobretudo no Verão, era deliciosa: pelas janelas meio cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceição Nova e o arrulhar das rolas na varanda; a monótona sussurração das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véu nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicais; pouco a pouco o tenente, envolvido com um lençol como um ídolo no seu manto, ia adormecendo, sob a fricção mole das carinhosas mãos da D. Augusta; e ela, arrebitando o dedo mínimo branquinho e papudo, sulcava-lhe as repas lustrosas com o pentezinho dos bichos...» Eça de Queirós, O Mandarim (1880) § «Seja pelo que for, não gosto de viajar. Já pensei em pedir a demissão. Mas é difícil arranjar outro emprego equivalente a este nos vencimentos. Ganho dois mil escudos e tenho passe nos comboios, além das ajudas. Como vivo sòzinho, é suficiente para as minhas necessidades. Posso fazer algumas economias e, durante o mês de licença que o Ministério me dá todos os anos, poderia ir ao estrangeiro. Mas não vou. Não posso.» Branquinho da Fonseca, O Barão (1942)

tempo de romance

«E quando as beatas que lhe eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos, de visões, José Miguéis escandalizava-as, rosnando: / -- Ora histórias, santinha! Peça juízo a Deus. Mais miolo na bola! / As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no: / -- Coma-lhe e beba-lhe, -- costumava gritar -- coma-lhe e beba-lhe, criatura!» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80) § «Voltar! Voltar à pátria, à terra, à mãe, à noiva, ao sítio donde, em boa hora uns, em má hora outros, todos partiram um dia, cheios de ilusões e de sonhos, de energia e de vontade, tão depressa quebradas a mor das vezes! Voltar! Ao lar, à paz da sua aldeia, ao carinho dos seus, tão levianamente abandonados um dia, tão magoadamente recordados todos os dias, lá longe, na plaga ardente.» Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933) § «Diz-se que quem mais faz menos merece, e que mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga e não sei que mais; será assim; mas desta vez parecia que se desmentira o ditado ou pelo menos que o facto das madrugadas não excluíra o auxílio providencial, porque José das Dornas prosperava a olhos vistos.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867) § «Ao fundo, cortando o declive, estendia-se a linha avermelhada dum valado, que cedia terreno e entrincheirava a multidão cerrada dos pinheiros adolescentes e mui viçosos -- a prole que os velhos não quiseram cobrir com as suas asas seculares.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

segunda-feira, agosto 26, 2024

um pequeno malcriado

Titeuf, abreviatura de 'petit œuf '' ('pequeno ovo', por óbvias razões anatómicas), é uma personagem criada em 1993 pelo autor suíço Zep (Philippe Chappuis, Onex, Genebra, 1967), pseudónimo que é uma homenagem aos Led Zeppelin. À partida, ‘Ovinho’ seria uma tradução aceitável para o nome da personagem, não fora esta ser por vezes um bocadito alarve: com cerca de oito anos, e um topete que parece uma hipérbole do cabelo de Tintin, Titeuf é um reguila desabusado, por vezes malcriado, que quer dar nas vistas para parecer mais importante e mais crescido do que na verdade é – e também para que as miúdas reparem em si. Um rapazelho como muitos outros, portanto... Até hoje foram editados 18 álbuns, com claro sucesso de público e crítica: tiragem de milhões de exemplares, adaptação a cinema de animação e o merchandising habitual.

Em Petit Poésie des Saisons (de 2005, agora reeditado com nova capa) assistimos ao decorrer das estações do ano, tal como Titeuf e os amigos as vivem; e claro que a poética a que o título alude não pode deixar de ser irónica: a areia da praia intromete-se nos mais recônditos e incómodos interstícios; o salpico de neve que lhe cai em cheio na roupa está longe de ser alvo e imaculado. Quanto ao mais: a escola, o cair da folha e o obrigatório Halloween, no Outono; escola, bonecos de neve, frio e o Natal, no Inverno; escola, o despertar da Natureza e das paixões, as partidas do 1.º de Abril, na Primavera; no Verão, as férias grandes, as festas... e a escola, a começar no início de Setembro, em eterno retorno de trapalhadas, triunfos e desaires à escala minorca, sempre acolitado pela família, a inevitável professora velha e feia, os indispensáveis compinchas, e uma certa Nadia, a quem Titeuf arrasta a asa, quando distraído das suas actividades mais sérias, ou seja, pregar partidas e fazer que estuda.

Em 2001, Zep e Hélène Bruller, então sua mulher, criaram um livro extra-série, Le Guide du Zizi Sexuel (Aparelho Sexual & C.ª, na tradução brasileira), obra pedagógica destinada aos pré-adolescentes, que teve a duvidosa distinção de ser apresentada por Bolsonaro, como exemplo do alegado 'kit gay' e incitamento à pedofilia...

A fórmula do gag é clássica: exposição, desenvolvimento e remate, sempre cómico e/ou inesperado. Há um, porém, que foge a esse esquema, o dedicado às mentiras do 1.º de Abril: em seis vinhetas Titeuf prega partidas em casa e na escola, rindo-se a bandeiras despregadas; na sétima, ao fim do dia, será a vez da televisão pregar a sua mentira aos telespectadores (assim acreditava o rapaz): uma intervenção militar no Iraque, diz o pivot, fará milhares de vítimas. Titeuf não viu onde estava a graça. Os mentirosos eram outros, já então se sabia.


Titeuf – Petite Poésie des Saisons

texto e desenhos: Zep

edição: Glénat, Grenoble, 2019

(Outubro 2019)










domingo, agosto 25, 2024

América. votar em que manicómio?

Se fosse americano, provavelmente votaria em branco. 

Ou talvez em Kamala Harris, para evitar o manicómio evangélico, que apoia Trump, fanáticos e doidos varridos, na primeira linha contra o direito das mulheres a abortar, que ensinam livremente o criacionismo em escolas ("Deus criou o mundo em seis dias, e ao sétimo descansou."). Por outro lado, Trump tem a seu crédito duas coisas: a administração que liderou não iniciou nenhuma guerra (embora o Irão não tivesse sido atacado por uma unha negra...) e, como tenho dito, multimilionário, Trump pertence à categoria dos que compram presidentes; é suficientemente rico para ser comprado -- embora eu esteja convencido de que ele não tem vergonha nenhuma em beneficiar-se usando o lugar.

A sua política em relação à China foi brutalmente agressiva, mas não creio que vá muito mais além do da de Joe Biden; tal como, em relação à Israel e à Palestina, a sua política não difere em nada, a não ser que por Trump a coisa já estava feita, enquanto que com o actual presidente o massacre é mais lento, à mistura com declarações pias e humanistas. Lágrimas de crocodilo.

Em relação a Kamala, muito mais gira que Trump, é verdade e, supostamente, com uma sensibilidade social que Trump não tem. Mas fica-se por aqui. Não sei nada sobre a política interna americana, nem estou muito interessado. Sei que os democratas estão minados pela corrupção (não sei se mais se menos que os republicanos), que a vigarice interna é tal, que Sanders foi descaradamente roubado nas eleições internas há oito anos em benefício da geena Clinton. E isto sem falar no manicómio woke.

Mas como sou europeu, neste momento prefiro a vitória de Trump, com a esperança de que ele não seja um boneco do complexo militar-industrial americano, e se ponha fino com o Putin. Coisa que os imbecis desta administração não conseguiram, porque os neo-cons que lhes dão umas "lições" de geopolítica e os patrões da indústria de armamento, que lhes pagam, acharam que o Putin não era osso duro de roer, pobres estúpidos.

Putin fará o que quiser e ditará a paz nas suas condições, a não ser que o plano que está por detrás das acções do caquético Biden -- uma guerrazinha na Europa, quiçá, e com os anões do Velho Continente veneradores e obrigados, a servi-lo --, vá em frente com a vitória de Harris, o que também não é certo.

De resto, nada é certo nas eleições americanas; apenas Trump parece perceber que com a Rússia, e em especial com a Rússia de Putin, não se brinca. E, portanto, estou aqui para ver e aplaudir, assim o espero, mais uma derrota dos Estados Unidos -- que os patetas nos querem vender como fonte de virtudes democráticas, mas que, em política externa, não tem passado de coio ou palanque de vulgares bandidos e criminosos de guerra.  

sexta-feira, agosto 23, 2024

um exótico suave

 

Um mapa centrado no Indocuche, abre a primeira prancha de O Avião do Nanga (1987), de René Sterne (1952-2006). O nome desta cordilheira afegã tem uma sonoridade com o peso de séculos, tempo que lhe empresta uma aura de terra mítica ou inventada, uma Camelote, ou coisa assim. E no entanto, o Indocuche existe; e ao contrário doutros topónimos congéneres – Cartago, Bagdade, Samarcanda, Timbuctu... – , cujo prestígio lendário pretérito não aguenta o confronto com a realidade presente, o Indocuche, por onde passou um raio chamado Alexandre o Grande e hoje brotam talibãs como as papoilas autóctones, persiste em desinquietar-nos, como uma vinheta de Hermann para um argumento de Greg...

Nessas montanhas, nesse "inferno branco" de neve e solitude, despenha-se um monomotor pilotado por Adler von Berg, um ex-desertor da Luftwaffe (já estamos em 1948), como viremos a saber adiante. Ileso, porém sem rádio e poucos víveres.  Ao longe, um carreiro de formigas é uma caravana de camelos da Bactriana. Um tiro despedido por Adler ecoa por entre as fragas himalaicas. Se ouviram, não se sabe. A meio caminho entre duas cidades, Gilgit e Laore, Adler exclama: «Desta vez é o fim... Estou perdido!»

Com as cores frias inicias que lhe deu Chantal de Spiegeleer (Kinshasa, 1957), a mulher do autor que nos é sugerida pela bela irlandesa Hellen, a narrativa suspende-se nas paragens mais garridas e não menos perigosas do Mar da China.

De Terry e os Piratas a Corto Maltese a errância e o exótico foram sempre um ingrediente da BD, de aventuras e para além disso.



Adler – O Avião do Nanga

testo e desenho: René Sterne

edição: Edições Asa, Porto, 1990

(Outubro 2019)





tempo de novela

«Mounier parou: / -- Bom dia! Então qual é hoje o trabalho? / Ele vinha a rememorar a influência maléfica que uns quadris femininos podem ter, pelo facto de parecerem maiores do que efectivamente são quando o corpo está sentado, e perguntara aquilo distraìdamente, muito mais por hábito de cortesia do que por força de curiosidade.» Ferreira de Castro, A Missão (1954) § «A maioria, porém, pôs em evidência o facto psicológico, divulgando que o moleiro era homem de maus costumes, tinha sido soldado na guerra do Rossilhão, não se desobrigava anualmente no rol da igreja, nem constava que tivesse matado algum francês.» Camilo Castelo Branco, Maria Moisés (1876/7) § «Viram-no, e quem o vê fica atónito como o Manco, que anda desvairado pelo alto dos montes, a desafiar o vento com um pau e a pedir lume ao fogo dos relâmpagos. Viu-o o Senhor José, espesso como granito, que nunca pôde comunicar comigo. Viu-o e calou-se. Mas sei que viu o Pobre, porque se pôs a olhar para mim duma maneira singular...» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931)

quinta-feira, agosto 22, 2024

tempo de romance

«Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes. / Nunca fora querido das devotas: arrotava no confessionário, e tendo vivido sempre em freguesias da aldeia ou da serra, não compreendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao princípio, qause todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de lábia!» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80) § «Noites havia, sim, em que simplesmente apreciava a noite: O aspecto de mascaradas, ou desmascaradas, que certas casas têm a certas horas; o silêncio das ruas e a sonoridade das pedras; os vultos que se esgueiram, ou esperam às esquinas, ou se cosem às paredes, ou nos roçam o ombro, ou nos pedem lume, ou falam alto; e depois esboços de paisagens, ou transfigurações inesperadas de coisas que à luz do dia são banais.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934) § «Junto à amurada iam-se formando grupos, trocavam-se comentários, faziam-se previsões. / -- Às 9 horas estamos atracados. / -- Nem para lá do meio-dia. / Assestam-se os binóculos, perscruta-se o horizonte, levantam-se falsos alarmes -- um fumo de vapor rapidamente disperso, instantes tomados por nesga de terra -- não se abafa a paciência que de todos aqueles peitos transborda.» Joaquim Paço, d'Arcos, Herói Derradeiro (1933) § «E lançava vista sobre o manto de panículas aloiradas, que os camalhões percintavam e a aragem branda enrugava, como mareta em oceano de oiro. / Mais além e aqui, uma mancha ou outra de verde a denunciar o cromo que o sol lhe arrancava, indício de algum cabeço que as enxadas, no armar da terra, não haviam derrubado.» Alves Redol, Gaibéus (1939) 

serviço público, para destruir o manicómio: fui ver o horror, e penso em Angela Carini

Não liguei muito aos Jogos Olímpicos, nem aos seus escândalos, e como não estou nas redes sociais, chego sempre atrasado ao último frisson
Como me estou nas tintas para a ideologia de género woke, mas não ao seu controlo totalitário e fascizante, nem liguei às patacoadas que então foram escritas, por Fernanda Câncio, em tom poético de trazer por casa, enjoativo e foleiro. 
Por isso deixei passar a vergonha para o desporto que foi o episódio da presença duma pretensa boxeuse argelina (e um outra da Formosa), que na verdade é um homem. 
Na minha ignorância, até hoje, pensava que havia mulheres, como foi o caso da atleta sul-africana Caster Semenya, que tinha o azar (e em termos desportivos, a sorte) de o seu organismo produzir testosterona em excesso, o que lhes dava vantagens sobre as suas competidoras.
Afinal, não. Num corajoso artigo saído no Público  de quarta-feira, que muito recomendo, ilustrado, honra seja feita ao jornal, por uma fotografia arrepiante, Maria João Marques  revelou-me que Imane Khelif e outras pessoas, são portadores de um tipo de disfunção,  nascendo com os genitais recolhidos, e que só na puberdade se desenvolvem total ou parcialmente. São, por isso, percebidos como raparigas e socializados como tal, o que acontece com mais frequência nos países pobres, em que a medicina pré-natal e os meios de diagnóstico são muito deficientes. Só a partir dessa idade pré-adolescente é o homem que são que se revela fisicamente.
Fui ver o combate e fiquei enojado: um homem de 25 anos combate e derrota em 46 segundos uma boxeuse italiana. de seu nome Angela Carini, sobre a qual ninguém fala no manicómio merdiático. Sinta-se a sua revolta, de que teve de retratar-se, claro; sob pena de ser expulsa da modalidade. Enojado com o homem que passa por mulher e abarbata a medalha de ouro? Sim, claro; tem 25 anos, sabe muito bem o que anda a fazer; com o seu entourage?, decerto; com o COI e a sua cobardia?, sem dúvida. Mas mais que tudo, com os vigilantes do manicómio que nas nossas barbas querem forçar-nos a aceitar o inaceitável.

É preciso ver, para acreditar e nos perguntarmos como foi possível chegar até aqui...

ucraniana CCLX: "jornalismo" da treta

O Público é um jornal lido pelas elites e com pouquíssima influência no modo de ver da população -- uma razão mais para ter algum brio nas manchetes e no noticiário. Obviamente não tem; mas como por estes dias o tenho comprado, à falta do DN -- que não é muito melhor, mas irrita-me menos --, não deixo passar o estúpido título sobre a guerra da Ucrânia: "Ucrânia diz que invasão mostra que Rússia ameaça mas não reage", idiotice que casa muito bem com a patética comunicação ao corpo diplomático de Zelensky, em que indirectamente chama cobardes aos europeus, por oposição à valentia dos seus soldados. É preciso ter coragem, terá afirmado. Há porém um probleminha: ao contrário do que o Público  quer fazer crer (a quem? a que leitores, para além dos seus fiéis?), a ofensiva ucraniana é para inglês ver, prenunciando já o estertor. Os analistas militares de confiança dizem não só que a ofensiva foi travada, sem que os russos para lá deslocassem as tropas que combatem no Donbass, como estão a avançar em todas as frentes. Aliás, convenhamos: há ali muita carne para canhão: segundo o coronel Mendes Dias, ouvido há pouco, só hoje morreram 3200 soldados (dois mil ucranianos e mil e duzentos russos). Bravo! Só que os russos usam contratados, chechenos e mercenários e os ucranianos, além dos mercenários que ainda não foram mortos, os presos e os neo-nazis que apoiam o governo, resta-lhes os mobilizados que não conseguem fugir, duma guerra em que combatem pelos interesses dos americanos, como digo sempre desde o início. 

E, convenhamos, também e ainda, que era só os russos quererem a sério, e um piparote bastaria para arrumar a questão de Kursk. No entanto, contra todas as evidências, o Público faz-se de parvo. É lá com ele.



quarta-feira, agosto 21, 2024

ainda as "pessoas que menstruam" e a aversão às mulheres que não sejam camafeus assexuados, mas não só

Manicómio. O qualificativo é bom e é de João Maurício Brás. Não só o wokismo é uma atentado à liberdade individual, como transforma a sociedade num manicómio. Esta história das "pessoas que menstruam" em vez de utilizar a palavra devida, que é "mulheres" -- pois só as mulheres menstruam. --, é mais uma das muitas parvoíces de importação, para dizer o mínimo, com que os wokes se entretêm, e tentam obrigar todos a tragar. A ministra Margarida Balseiro Lopes acha muito bem. Ela tem as pastas da juventude e da modernização, talvez ache que colhe mais modernaçamente votos à juventude, mostrando-se quiçá cosmopolita e não provinciana. Mas a maior parte dos jovens tem mais que fazer do que pensar nestas questões de lana caprina. A maioria deles não gosta nem tolera que qualquer pessoa seja molestada ou discriminada por causa da orientação sexual. Mas isso também eu não gosto ou tolero. 

Mas gosto ainda menos que tomem as pessoas por parvas, impondo-lhes uma linguagem dita neutra, que é puro totalitarismo ideológico com laivos fascizantes. Para Balseiro Lopes, como para uma boa parte do minado PS, mais BE e Livre, e agora parece que também uma parte do PSD (para além dos votos que pretendem caçar neste mercado eleitoral), não se trata na de proteger, defender, acautelar, o que seja, as pessoas que sendo mulheres se sintam homens ou nem uma coisa nem outra, representem elas um conjunto de meia dúzia de cidadãos, dez ou cem mil. O que pretendem é impor à esmagadora maioria da sociedade, proibições baseadas em premissas falsas e imbecis. Querem ensinar os cidadãos a falar e a comportar-se, santo nome de deus!...

Leia-se esta pérola, emanada pelo gabinete da ministra: «O Governo reconhece a saúde menstrual como uma questão de saúde e direitos humanos, e não apenas como uma questão de higiene, e está consciente dos desafios que lhe estão associados,designadamente na conceção de políticas para pessoas que menstruam, onde se incluem as pessoas transgénero e não binárias, o que implica a disponibilização de infraestruturas e apoio adequados nas escolas e a utilização de linguagem neutra do ponto de vista do género para se referir aos produtos menstruais.»  

De acordo com todas estas criaturas, escrever a palavra mulher, pode ser atentatória dos direitos humanos dos não-binários (bocejo) e dos transexuais. Mas como? Onde é que uma mulher que interiormente se sinta homem (apesar de ser mulher) pode sentir-se atingida com um documento técnico-administratico com formulações gerais sobre a saúde das mulheres (ou dos homens)?... São muito sensíveis? E então os milhões de mulheres que se sentem orgulhosamente como tal, e lutaram (e lutam ainda) pela igualdade entre os dois sexos? E todos os homens que amam mulheres, veneram mulheres, desejam mulheres como parceiras sexuais, não estarão todos a ser violentamente condicionados por uma ideologia alegadamente científica, mas que não passa de um moralismo de sinal contrário?

É impressionante a aversão que esta gente tem às mulheres enquanto tal, enquanto ser maternal, enquanto ser sexual, especialmente se for alvo de desejo. Mas não só às mulheres. A sua aversão vai mais longe. Não é pela liberdade individual que lutam, nem pelo direito que cada um tem a não ser molestado pelas suas opções mais íntimas. O que eles querem não é nada mais do que impor a normalidade do que é anormal, ou seja que está fora da norma. Eles lá devem ter as suas razões mais profundas, mas não as impinjam a mulheres e homens que gostam de o ser, que são felizes de o ser e que, (não) por acaso, são a maioria. Não que ser-se maioria dê alguma razão à partida; mas aqui não é só razão: é biologia, verdadeira ciência, e atentar contra esta naturalidade, distorcendo línguagem conceitos, a língua de pau woke, isso sim, é uma questão de direitos humanos, que, esses sim, têm de ser respeitados.

terça-feira, agosto 20, 2024

mais olhos que barriga

Criado em 1991 pelo norte-americano Rob Liefeld e o argentino Fabian Nicieza, Deadpool é mais um elemento da parafernália de superentidades da Marvel: vilão mutante cujas características notórias são a capacidade de auto-regeneração dos órgãos e tecidos, alguma esquizofrenia, pois tanto combate como admira as grandes figuras mascaradas, e uma incontida tagarelice. A propensão para o cómico é evidente, facilitando a criação da série paralela intitulada Killogy, imaginada por Cullen Bunn e Matteo Lolli.

A ideia até é boa: depois de chacinar os heróis da Marvel (Deadpool Kills The Marvel Universe, 2011), com o fito altruísta de libertá-los dos caprichos dos seus criadores – mas na verdade manobrado por um qualquer génio do mal –, e antes de matar-se a si mesmo (Deadpool Kills Deadpool, 1913), o vilão é persuadido pela Brigada dos Cientistas Loucos a liquidar as maiores personagens da literatura, fonte de todos os super-heróis, e a única forma de acabar com eles definitivamente. Por exemplo, a morte da Sereiazinha inviabilizará Namor, o príncipe submarino, e o fim dos Três Mosqueteiros ou das Mulherzinhas impedirá a formação de futuras equipas de heróis e heroínas...

Boa a ideia, mas demasiado ambiciosa. Graças a um dispositivo de Reed Richards, do Quarteto Fantástico, Deadpool conseguirá viajar no espaço e no tempo. Da Odisseia à Metamorfose, do D. Quixote ao Sr. Scrooge, passando pelo Pinóquio (saído do interior de Moby Dick), contámos 23 referências, mais ou menos desenvolvidas, número certamente excessivo para as 80 páginas disponíveis. Podemos meter Gulliver ou Macbeth numa única vinheta, mas fazer o mesmo ou parecido com as sucessivas obras denota o propósito de citar o mais possível, em sacrifício da fluência narrativa. Além disso, a carnificina é sem descanso, como um videojogo para adolescentes retardados, em maçador acumular de pancadaria e larachas.

O trabalho de Lolli tem bons momentos: o massacre da tripulação do “Pequod”, a tareia das Mulherzinhas, Deadpool trespassado pelo chuço do Quixote. Mas o melhor mesmo está nas capas de Mike del Mundo.

Um dos aspectos mais desagradáveis dos comics é o imperativo de fazer dinheiro a todo o transe, sujeitando os pobres super-heróis a inenarráveis tratos de polé: matam-nos, ressuscitam-nos, casam-nos, mudam-lhes a fatiota, a cor da pele e até o sexo, criam séries paralelas em mundos alternativos, deixando à nora o desgraçado leitor que não seja um incondicional... Ao mesmo tempo, criam-se mais heróis e vilões, com as suas evoluções e especificidades, assim à maneira dos pokémons. O que importa é fazer render o peixe. O coitado do Homem-Aranha tem sido a principal vítima deste festival de ganância, o que não é de admirar, tratando-se a mais icónica e portanto a mais rentável marca da sua editora. É verdade que, por vezes, surgem pepitas, mas este não é o caso.


Deadpool Mata os Clássicos!

texto: Cullen Bunn

desenos: Matteo Lolli

edição: G. Floy Studio, 2019

(Outubro 2019)






segunda-feira, agosto 19, 2024

tempo de novela

«Mas, como sou homem de impossíveis, salvo-me como posso. Encho-me da lembrança mágica do senhor Ventura, que nenhuma razão impediu de correr as sete partidas que chamam em vão por cada um de nós. Na sua figura ponho a realidade do que sou e a saudade do que podia ser.» Miguel Torga, O Senhor Ventura (1943) § «-- E Jesus que não vem! / Já muitos o viram. É um pobre -- é um pobre de pedir --, é um fantasma. Ninguém sabe dizer como é esse vulto que desaparece na volta dos caminhos. Não traz sacola, e não passa talvez duma sombra. O seu silêncio mete medo.» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931) § «Aos domingos repousava: instalava-me então no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara de ovo a caspa do tenente Couceiro.» Eça de Queirós, O Mandarim (1880) 

ucraniana CCLIX - o milagre das pontes de Kursk

A forma como esta manobra de diversão dos ataques das forças de Zelensky é tratada pelos mérdia do costume seria para gargalhar, não fora um assunto que implica a morte de pessoas, algumas esturricadas dentro de blindados... Sobre o que efectivamente se passa, basta ouvir os militares de confiança (Branco, Costa e Dias). A mim, o que nauseia ou diverte, consoante o estado de espírito, é o despudor com que jornalistas de caracacá se prestam a fazer figuras de urso. Hoje na cnn-Portugal e no Público.

A última que me fez rir, pelo tratamento "noticioso" que lhe é dado, foi a das pontes de Kursk, rebentadas pela tropa do general Syrkyi (por acaso, um russo a trabalhar para Zelensky -- que é como quem diz, para os americanos): no sábado, três pontes haviam sido destruídas, segundo a cnn-Portugal, mostrando as imagens de uma estrutura a ser bombardeada; pois no domingo, na mesma estação, a notícia era a de que uma segunda ponte fora destruída, sendo mostradas as imagens do dia precedente. Quem sabe amanhã, o mesmo filme ilustre a notícia de que uma ponte foi bombardeada e destruída em Kursk; e, seguindo a lógica, na terça-feira, nenhuma ponte terá sido destruída, mesmo que apareçam de novo as imagens dos dias precedentes...

É o milagre da informação, a escorregar pelas goelas dos incautos. 

domingo, agosto 18, 2024

'very british'

A propósito de Raymond Macherot (1924-2008), um mestre da BD franco-belga, Hergé, que muito o admirava, foi um dia taxativo: «Macherot c'est Macherot...». Uma das suas personagens mais queridas, fruto do fascínio que sobre si exercia a Inglaterra, é o patusco Coronel Clifton – Harold Wilberforce Clifton, oficial reformado do MI5, detective amador, escoteiro graduado, com um fleumático bigode imperial, indumentária impecável, governanta previdente e um MG-Type Midget de fazer inveja, ideal para as deslocações entre Londres e a cidadezinha fictícia de Puddington, onde vive.

Macherot assinou apenas três álbuns – e com que sedutora simplicidade de linhas e eficácia narrativa. A transferência da revista Tintin para a rival Spirou obrigou-o a largar Clifton, bem como Clorofila, um rato do campo de quem oportunamente falaremos.

Em As Investigações do Coronel Clifton, publicadas em 1961, um emir das Arábias deposita o maior diamante do mundo no estabelecimento de dois honrados ourives da capital inglesa, para que estes lhe façam um exuberante anel. Assustados com o montante do seguro, optam por guardá-lo no cofre da casa, um impante «”Johnson” superblindado de tripla combinação», mas – estava-se mesmo a ver – no dia seguinte os honestos joalheiros darão de caras com o sítio... Para evitar o escândalo do assalto, recorrem aos serviços do famoso militar retirado.

As Investigações do Coronel Clifton

texto e desenhos: Raymond Macherot

edição: Editorial Íbis, Venda Nova, 1969

(Outubro, 2019)





tempo de novela

«Na velhice, o negócio tilintado através de gerações, as andanças de recoveiro, o ver e aturar o mundo, tinham-no provido de lábia muito pitoresca, levemente impregnada dum egoísmo pândego e glorioso.» Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas (1922) § «Entusiasmo-me com a beleza das paisagens, que valem como pessoas, e tive já uma grande curiosidade pelos tipos rácicos, pelos costumes, e pela diferença de mentalidade do povo de região para região. Num país tão pequeno, é estranhável tal diversidade. Porém não sou etnógrafo, nem folclorista, nem estudioso de nenhum desses aspectos e logo me desinteresso.» Branquinho da Fonseca, O Barão (1942) § «O povo atribuíra aquela morte ao capitão-mor de Santo Aleixo de além-Tâmega, por vingança de ciúmes, e propalava que a alma do homicida, de fraldas brancas e roçagantes, infestava aquelas serras. O moleiro das Poldras contrariava a opinião pública, asseverando que a aventesma não era alma, nem a tinha, porque era a égua branca do vigário.» Camilo Castelo Branco, Maria Moisés (1876-77)

sábado, agosto 17, 2024

tempo de romance

«Os caules nus, quase negros, assimétricos, eram colunas dum templo bárbaro, em cuja cúpula transparente o sol ia tecendo prateada e fantasiosa malha. Por vezes, o tecido incorpóreo esfarrapava-se e descia em fluidos caprichosos, até os galhos, formando pulseiras, ou até o chão, onde coagulava em jóias bizarras.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928) § «O sol encontrava-o sempre de pé, e em pé o deixava ao esconder-se. / Estas qualidades, juntas a uma longa experiência adquirida à custa de muito sol e muita chuva em campo descoberto, faziam dele um lavrador consumado, o que, diga-se a verdade, era confessado por todos, sem estorvo de malquerenças e murmurações.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867) § «Reza a história que o servo de Deus vinha trilhado do caminho e tinha sede; aqui lhe foi dado matá-la numa fontainha, que não era este chafariz formoso, talhado, mais parece, para os jardins do papa que para cerca de monges. Por certo que o suor lhe caía do rosto e o bebeu a terra onde pisamos.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918) § «A quadra, bastante vasta, pertencia a um segundo pavimento do claustro e suas capelas, que fora paço episcopal em épocas remotas da Igreja e depois albergaria de clérigos e fabriqueiros. Um dos últimos cabidos reedificara-o à moderna, para moradia do prior, do chantre, do mestre de capela e serventuários que à sombra da basílica ficavam tendo acolhimento e guarida certa.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920) 

sonata para clarinete e explosivos

Depois do universo franco-belga, a Itália é o segundo centro europeu de criação e produção de BD com projecção global. Vieram dali, entre muitos outros, Corto Maltese, Tex, Valentina… e o Superpato.

Dylan Dog, criado em 1986 por Tiziano Sclavi (Broni, Pavia, 1953), um escritor à procura de leitores, é uma personagem curiosa: antigo agente da Scotland Yard, passa a trabalhar por conta própria, deslindando casos em que o paranormal faz as suas aparições. Calmo (detesta armas) e morigerado (não bebe nem fuma), tem um fraco por mulheres, que se sucedem quase à cadência de uma por história. No mais, é um tipo reflexivo que gosta de ler e tocar clarinete, chegando a fazer um dueto com Woody Allen... Contudo, o seu tema preferido não está no dixieland mas na sonata Il Trillo del Diavolo, do compositor setecentista Giuseppe Tartini – ou melhor, da autoria do próprio Satanás, que em sonhos o visitou, executando a composição que ficaria também conhecida como a «Sonata do Diabo». Nada de admirar, para um detective do pesadelo. A acompanhar Dylan Dog, temos um auxiliar com cara, nome e chistes à Groucho Marx.

Apesar de ser um dos fumetti mais populares em Itália, com cada revista a atingir um milhão de exemplares de tiragem nos tempos áureos, entre nós Dylan Dog é pouco conhecido, como a generalidade da BD italiana, com as assinaláveis excepções.

Em Até que a Morte Vos Separe, de 1996, Sclavi desenvolveu uma ideia de Mauro Marcheselli, recuando aos tempos da polícia londrina e aos ataques e retaliações perpetrados pelo IRA na capital inglesa. Estava-se ainda a dois anos da assinatura do Acordo de Paz de Sexta-Feira Santa, e os atentados faziam vítimas, em especial entre os representantes do Estado, que por sua vez reprimia com condições carcerárias duríssimas, contra as quais se insurgiram Bobby Sands e outros prisioneiros independentistas irlandeses, numa greve de fome histórica e fatal. Dylan conhece Lillie Connolly, uma irlandesa do Ulster a viver em Londres, militante daquela força paramilitar, sob disfarce. No entanto, apesar das mortes e das prisões, o dramatismo é moderado q.b., não só porque a menina é assombrada por visões, o que opera uma quebra no realismo da narrativa, como há pormenores de série humorística – veja-se aquele ponto de interrogação desenhado sobre a cabeça dum rato, numa das cenas passadas nos esgotos da cidade. Os registos realista, onírico e humorístico interpenetram-se, o que não tem mal, desde que o leitor, como é de bom uso, estabeleça com os autores o pacto da suspensão voluntária da descrença.

Bruno Brindisi (Salerno, 1964), não obstante algum tradicionalismo na disposição das vinhetas – convém lembrar que Dylan Dog se destina, antes de mais, ao grande público –, é um desenhador de assinaláveis recursos, como se verifica, logo na capa, no trabalho sobre o véu da noiva.


Dylan Dog – Até que a Morte Vos Separe

texto: Mauro Marcheselli e Tiziano Sclavi

desenhos: Bruno Brindisi

edição: A Seita, 2019

(Outubro, 2019)







quinta-feira, agosto 15, 2024

tempo de novela

«Na disposição de espírito em que viera, não só a tinham importunado como quase assustado as insistentes atenções do cavalheiro amável. «Vêem uma rapariga só...» -- pensava ela com a sua psicologia de pouco afeita aos caminhos de ferro e aos desembaraços da mulher moderna. Agora, não havia perigo em compensar o seu aliás respeitoso admirador com esse olhar e um sorriso.» José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941) § «E logo preveniram: / -- O tipo tem já cadastro por desordens, facadas e, segundo parece, também por roubo. A solução é má, mas por nós não vemos outra. Decide tu. / André resolveu aceitar e foi apresentado ao homem. / O encontro teve lugar nas proximidades da estação de Campanhã, distante do centro da cidade, a horas mortas e num sítio deserto.» Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites (1975) § «Ao fundo, com uma árvore em frente, tão ramalhuda que quase a ocultava, erguia-se a capela, que, ligada embora ao edifício, avançava sobre o jardim, dando ao todo a forma dum grande L. / Ao entrar na cerca, Georges Mounier viu uma escada posta ao beiral. Junto dela, o "Bagatelle", homem de sete ofícios, pedreiro, pintor, até carpinteiro, se fosse preciso, uma vez por outra trabalhando na Missão, ia remexendo com o pincel a tinta branca coalhada no fundo de uma lata.» Ferreira de Castro, A Missão (1954)

quarta-feira, agosto 14, 2024

uma folha de papel

Com Winsor McCay (1867-1934), os quadradinhos atingem a maturidade gráfica. Little Nemo in Slumberland, a sua mais célebre criação estreou-se a 15 de Outubro de 1905, no New York Herald. Cada prancha é um prodígio de imaginação e cor, e nunca mais se foi tão longe na disposição de uma narrativa em imagens. Jean Giraud / Moebius foi um dos muitos que aqui vieram beber.

A página é encimada por uma vinheta a toda a largura, espécie de friso ao gosto Arte Nova, que dá o mote: Morfeus, rei do País dos Sonhos, envia emissários a Nemo; e lá vai ele, até acordar, por vezes no chão. Há ocasiões em que, em vez de quadradinhos estanques, o mesmo desenho se prolonga, dando a ilusão de vária vinhetas – por exemplo, entre os vãos dos pilares de uma ponte. Esta linguagem, hoje comum, era nova no dealbar do século XX. Aliás, como notam os críticos, o caminho fazia-se à medida que o caminhante vencia cada etapa. No álbum que temos em mãos, esse work in progress é particularmente visível: nas pranchas iniciais, McCay, embora recorresse à filactera (o ‘balão’), introduzia texto sob a vinheta, uma redundância que só atrapalhava a fruição da beleza dos desenhos, a riqueza da composição e a inventiva das histórias que pretendia contar. Ao fim de 20 pranchas, essa excrescência será eliminada, dando a margem indispensável ao leitor para seguir a narrativa sem outra condicionante que não fosse a materialidade sobre a qual se aplica uma história em quadradinhos: uma folha de papel.


O Pequeno Nemo no País dos Sonhos – vol. I:1905-1907

texto e desenhos: Winsor McCay

edição: Livros Horizonte, Lisboa, 1990

(Outubro, 2019)





terça-feira, agosto 13, 2024

tempo de romance

«Em seguida, acercando-se duma janela cujas portadas tinham ficado despreocupadamente abertas, descerrou, num gesto largo, as vidraças de par em par, e aspirou com delícia a onda do ar fresco, que inundou a casa, impregnado dos perfumes que do jardim, em baixo, se evolavam.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920) § «Em negócios de lavoura dava, como se costuma dizer, sota e ás ao mais pintado. Até o sr. Morais Soares teria que aprender com ele. Apesar dos seus sessenta anos, desafiava em robustez e actividade qualquer rapaz de vinte. Era-lhe familiar o canto matinal do galo, e o amanhecer já não tinha para ele segredos não revelados.» Júlio DinisAs Pupilas do Senhor Reitor (1867) § «De facto, o prazer de errar pela noite é comum a várias criaturas. Sempre desconfiei de misteriosas afinidades entre todas, por mais que as separem os gostos, os vícios, as aparências, a idade, a condição social. Não obstante tal desconfiança, que não posso bem corroborar com exemplos, eu julgava-me então único.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934) § «Extinguiam-se também à vante e à ré do barco, na ponte e na mastreação, os faróis que toda a noite haviam assinalado com a sua luz a marcha do gigante na escuridão do mar. / No tombadilho, ainda encharcado da baldeação, começavam surgindo os passageiros mais madrugadores, friorentos uns, ainda ensonados outros, todos na ânsia de primeiro descobrirem a terra pátria.» Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933)