«Para tomar o comboio em Lamares, que ficava a quinze quilómetros de distância, era-lhe preciso atravessar o aberto cenário onde tinha mourejado sonhadoramente: searas espessas de trigo a ondular, sobreirais pardos de tristeza e pousios de esteva florida, babada de mel e de mormaço.» Miguel Torga, O Senhor Ventura (1943)
«--Vi-o! / Também a senhora Emília, cada vez mais apagada e humilde, o espera com o olhar que revela um peso insuportável. / Sentada no lar, não tira os olhos de Fortunato. Vai-lhe falar? Não se atreve. Não bolem, ele negro e curvado, ela em frente com a boca sumida e as cinzas frias ao meio dos dois a separá-los. Amar não é nada. Amar na dor e na desgraça é que é a lei suprema da vida.» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931)
«Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso -- como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus.» Eça de Queirós, O Mandarim (1880)
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«Observo que também se reencarnam os santos, para mimo dos nossos olhos, que mais não seja, sem que se prejudique a sua canonicidade. Demais, "incorrupta veritas" acima de tudo. Bem certo que nos ensina Mestre Anatole que os homens prezam a ficção de preferência à verdade. Esta é, no geral, feia, malcriada, desmancha-prazeres, uma estafadora, em suma. A mentira, a honesta mentira que Le Dantec sagrou no altar da hipocrisia social, é incomparavelmente mais humana, misericordiosa e conforme com as nossas necessidades de quietude e ilusão.»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões-Fabuloso*Verdadeiro". Ensaio (1950)
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