I. «A estação de Ovar, no caminho de ferro do Norte, estava muito silenciosa pelas seis horas, antes da chegada do comboio do Porto. / A uma extremidade da plataforma, um rapaz magro, de olhos grandes e melancólicos, a face toda branca da frialdade fina de Outubro, com uma das mãos metida no bolso dum velho paletot cor de pinhão, a outra vergando contra o chão uma bengalinha envernizada, examinava o céu da manhã chovera; mas a tarde ia caindo clara, e pura; nas alturas laivos rosados estendiam-se como pinceladas de carmim muito diluído em água e, longe, sobre o mar, para além duma linha escura de pinheirais, por trás de grossas nuvens tocadas ao centro de tons de sanguínea e orladas de ouro vivo, subiam quatro fortes raios de sol, divergentes e decorativos -- que o rapaz magro, comparava às flechas ricamente dispostas dum troféu luminoso.» Eça de Queirós, A Capital! (1877/1925)
I. «Encontravam-se os três à mesa de jantar e o velho relógio de pêndulo marcava onze horas menos um quarto. Mercedes mostrava-se impaciente. / -- Ramona! -- gritou. -- Então o café? -- E dirigindo-se ao irmão e ao sobrinho: -- Esta mulher está cada vez pior! / Ouviam-se já os passos da criada no corredor e, logo que ela entrou na sala, Mercedes censurou-a: / -- Por mais que eu repita, há-de ser sempre isto! A comida nunca está pronta a horas! Jantamos sempre tarde. » Ferreira de Castro, A Curva da Estrada (1950)
«Ao fundo erguia-se, em decoração latríaca, um altar improvisado com o frontal de magnífica escultura de madeira, e um tríptico por cima, em ar de retábulo. / Próximo da escrivaninha descansava, aberta num atril, a obra de Louis Gonse, L'art gothique, e nos extremos da sala duas estantes de coro, que tinham recebido outrora os antifonários e sentido roçar nas suas fibras o desenrolamento grave do cantochão, acolhiam agora magnificências livrescas, piedosamente resguardadas por litúrgicos panos.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)
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«Se Luís de Camões era tão colaço com os grandes do Reino, segundo pretendem Teófilo e o Dr. José Maria Rodrigues, como é que o desampararam no Tronco, a prisão ignominiosa, por um caso de lana-caprina, que até a data, que se saiba, jamais levara filho de boa mãe a semelhante lugar? Sim, porque o desampararam, a ponto que, se quis ver-se dali para fora, teve de alistar-se como soldado raso nas forças do Oriente e obter como viático necessário a tal recurso o perdão da sua vítima? Uma vez na Índia, como é que lhe não deram qualquer prebenda, o comando de uma simples fusta ou uma das infinitas melgueiras que no Oriente se reservavam a todos os depenados e fidalgotes de Portugal? Porque teve de recorrer a mesteres humildes, e segunda e terceira vez foi parar ao Tronco, em Goa, umas geenas, instrui o 'Oriente Conquistado', que escaparam à fantasia de Dante?»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões-Fabuloso*Verdadeiro". Ensaio (1950)
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