segunda-feira, setembro 16, 2024

tempo de romance - Ferreira de Castro

«A pega, infatigável, ora procurando na terra, ora alçando-se à copa eleita, continuava a construir o ninho. Era já uma grande mancha, um grosso volume de pauzitos, seguro entre os últimos ramos do pinheiro. / Estendido onde a sombra lhe parecera mais agradável, Manuel da Bouça seguia o trabalho da ave e recordava o tempo da infância, já distante, em que vasculhava veigas e montes à busca de ninhos, só pelo prazer de os descobrir e disso se vangloriar ante o rapazio do lugarejo.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

as declarações (parcialmente) acertadas de Nuno Melo, o portuguesismo de cu para o ar e uma sugestão de borla

Nuno Melo esteva formalmente correctíssimo sobre a pergunta que lhe fizeram a propósito da vila alentejana de Olivença. Aliás, nunca poderia ter dito outra coisa, algo que os jornalistas, patriotas de cu para o ar, além de indigentes (um truísmo), criticaram, pois a Espanha --, oh a Espanha, que passa a vida a falar de Gibraltar, embora ocupe Ceuta e Melilha, além de Olivença, sem esquecer a questão das autonomias, pode ficar melindrada. O respeitinho é tão bonito.

Embora formalmente o ministro tenha razão, a posição de Portugal poderia e deveria ser outra, para além deste formalismo bocejante. Se o Direito diz que Olivença é portuguesa, e a força diz que é espanhola, a posição do mais fraco -- um pouco como sucedeu a propósito de Timor-Leste em relação à Indonésia -- (a posição de Portugal) deveria ser a de defender um referendo naquele concelho, comprometendo-se os dois estados a respeitar a decisão do povo. Chama-se autodeterminação e é a única forma democrática e aceitável de resolver diferendos desta natureza. Seja em Olivença, nas países ocupados pelo estado espanhol, no Donbass e na Transnístria, no Saara Ocidental, no Tibete ou nas Falkland / Malvinas. Porque, como dizia o Trovador, o povo é quem mais ordena. Não é? Claro que a Espanha nunca o aceitará, mas isso já se sabe.

domingo, setembro 15, 2024

o que vai acontecer - Mário Braga

«O gado é a vida da gente de Sequeiros; a lã, o seu trigo e o seu pão. Só nos escassos meses de veraneio a terra fica nua e pode gerar. No Inverno veste-se de branco e adormece. Pastores e rebanhos pernoitam no quente dos currais, e o dia é da serra, na pista do verde.. Semanas e semanas, o gado no coberto, por culpa dos nevões, sem poder emigrar para o vale.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1949)

Cat Stevens, «On the Road to Find Out»

tempo de novela

«O "bagatelle" deixou a lata, pousou uma das mãos sujas sobre a escada e olhou para o beiral: / -- Vou pintar a palavra "Missão" no telhado, por causa dos bombardeamentos... / -- Muito bem. É preciso -- apoiou Mounier, sempre com um tom descuidado e já a afastar-se.» Ferreira de Castro, A Missão (1954) § «Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga. Todas as semanas contavam dias de guarda e, por cada dia de guarda, armava-se o saricoté dos terreiros. Não andaria Nosso Senhor de terra em terra -- eu cá nunca me avistei com ele -- mas a verdade é que a neve vinha com os Santos e as cerejas quando largam do ovo os perdigotos.» Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas (1922)

sábado, setembro 14, 2024

tempo de romance

«O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho. O pároco tinha um grande respeito pelo chantre, homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio -- que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas.» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80) § «De três bicas, manando de rosáceas num pano de gracioso corte, com o entablamento coroado por pirâmides e um frontão em que se vazava uma guarita de santinho, apenas uma escorria no tempo da seca. Se pelos meses de águas vivas todas três brotavam, na tristeza das horas sem luz, à borda do silêncio revessado pelo convento, seu gorgolão era grave como uma salmodia de monges.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918) § «Quantas noites não pregara olho a traçar planos para os canteiros da ponta de baixo que pareciam avessos a receber frescura? Então, erguia-se da esteira para percorrer o arrozal, levando as estrelas por camaradas mais a endecha da água e o zangarreio das rãs.» Alves Redol, Gaibéus (1939) § «As leis dos césares, pelas quais se regiam os vencidos, misturaram-se com as singelas e rudes instituições visigóticas, e já um código único, escrito na língua latina, regulava os direitos e deveres comuns quando o arianismo, que os Godos tinham abraçado abraçando o Evangelho, se declarou vencido pelo catolicismo, a que pertencia a raça romana.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)

sexta-feira, setembro 13, 2024

ucraniana CCLXIII: o que vale é que os nossos generais-falcões estão aí para nos sossegar. E se os russos responderem?

1. Não sei o que se irá passar quando Starmer se encontrar com Biden. Sempre receei este momento: perante a possibilidade de Trump ganhar as próximas eleições, os neocons que funcionam com democratas e republicanos arriscarem, em desespero, subir a parada. Os ingleses, cães-de-fila dos americanos.

2. Entretanto um dos maiores criminosos de guerra vivos, Dick Cheney, declarou apoio a Kamala Harris, como se houvesse dúvidas sobre o que é o partido democrata. Aterroriza-me mais a influência deste facínora e doutros do mesmo jaez, que o aldrabão do Trump, com a sua campanha dirigida ao gado eleitoral, a propósito da dieta alimentar dos imigrantes.

3. Quando foi eleito, Zelensky, que não era o candidato dos americanos, prometeu trazer a paz à Ucrânia. E trouxe: a paz dos cemitérios.

4. Cenários para o cumprimento da ameaça: ainda consigo achar graça às ameaças de Medvedev. Claro que, subindo a parada, os russos não atacarão a Grã-Bretanha, nesta fase. Prevejo, nesse caso, duas possibilidades, para além de cenas malucas no ciberespaço, o pão-nosso-de-cada-dia: uma ameixa nuclear táctica em solo ucraniano, com um alvo muito bem escolhido (Lviv, quem sabe? Seria uma mortandade...); ou uma acção contra a Inglaterra directamente proporcional à sabotagem dos Nordstream. Acredito mais nesta possibilidade.

5.  O que vale é os nossos generais-falcões, Isidro e Arnaut, nos garantirem de que isto é tudo paleio dos russos, ou seja, vão comer e calar, ou ladrar e não morder. Não sei. Parece que os russos já têm dinheiro para comprar botas, e aumentaram as importações das máquinas de lavar...

Frank Sinatra, «She's Funny That Way»

quarta-feira, setembro 11, 2024

vária

«Viajáramos a Nova Iorque para participar do Congresso Internacional do Pen Club, não comparecemos a nenhuma sessão, tampouco às festividades, não ouvimos um único discurso, relatório, comunicação, não soubemos dos debates. O que, na opinião de nosso compadre João Ubaldo Ribeiro, também ele convidado e presente ao Congresso, foi vantagem que tirámos da dupla pneumonia. Vantagem e das boas -- afirmou o romancista ao nos visitar.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1990) § «Tomamos  pela grande estrada d'Albert, uma recta sem fim, que corta uma planície vastíssima, por onde as searas, nos distantes tempos da paz, espalhavam com volúpia a alegria sussurrante das espigas gradas, fontes de felicidade e de fartura.» Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, 29-III-1917, Repórters e Reportagens de Primeira Página, II § «A esta hora, por esses campos, nem vocês imaginam o que os melros dizem de alegres e o que as borboletas vivem de contentes.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)

tempo de romance

«Primeiro, de bandeirolas a tirar miras para o erguer das travessas e a mandar homens na rebaixa, até os tabuleiros poderem receber uma lâmina de água para a sementeira; depois, a dirigir aquele caudal que todos os dias entrava Lezíria dentro, pela regadeira mestra, não fossem afogar-se os pés de arroz ou morrer alguns por míngua.» Alves Redol, Gaibéus (1939) § «Depois de ter corrido a cidade, recomeçava: Preferia os becos, as sombras, os cantos e as escadinhas escusas. E envolvia no mesmo ódio furibundo as luzes dos cafés e os raros transeuntes normais que recolhiam. Era pela antemanhã que o meu delírio atingia o auge.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934) § «-- Lá está! -- grita uma voz, louca de alegria. Era certo. Pela proa, um pouco aberto por bombordo, despontava de facto no horizonte um pequeno recorte de costa, ilhota perdida ou cimo de monte, cume de serra afinal.» Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933) § «À esquerda, para lá ainda da falda do outeiro, esbranquiçava, por entre a ramagem estática, o casario da aldeia. Desse lado, certamente de debicar os brincos vermelhos das cerejas, um gaio vinha, de quando em quando, esconder no pinhal o cromatismo da sua plumagem. "Chuá! Chuá!" E era o único grito que quebrava o silêncio, também volátil, das velhas árvores em êxtase.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928) § «O destoante casario campeava, porém, já fora da catedral e formava, com o seu largo abraço saindo-lhe discretamente dos flancos, uma como que cintura defensiva lançada à roda da venerável cabeceira do templo, onde resplendia ainda o diadema estilhaçado das capelas góticas.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

terça-feira, setembro 10, 2024

Thelonious Monk Trio, «Trinkle Tinkle»

o que vai acontecer - Machado de Assis

«Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada.» machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)

segunda-feira, setembro 09, 2024

o menino Ferreira de Castro

As terras têm o seu património, natural, etnográfico, arquitectónico. O legado literário em geral dá-lhes, porém, mais densidade. Amarante, com Pascoais, Vila do Conde tem Régio e o irmão Júlio/Saul Dias, Rio Maior e Ruy Belo, a Vila Franca de Xira de Alves Redol. Oliveira de Azeméis tem Ferreira de Castro, e a autarquia editou, no ano seguinte ao centenário do seu nascimento, uma BD para as crianças, da autoria do conterrâneo Manuel Matos Barbosa (1935), um nome do cinema de animação e do documentalismo.

Castro tem excesso de biografia: aos 12 anos emigrou sozinho para o Brasil, sendo enviado para um seringal na Amazónia. Dessas experiências extrairá matéria para dois extraordinários livros, que irão renovar o romance português, abrindo portas ao neo-realismo: Emigrantes (1928) e A Selva (1930). Porém, verdadeiro escritor, não se ficaria por aqui: Eternidade (1933) encerra um fundo existencialista numa narrativa de cunho social; A Lã e a Neve (1947), friso romanesco que é talvez o seu romance mais perfeito; ou A Missão (1954), uma novela que é uma jóia de problematização psicológica.

Como se fosse pouco, este autodidacta, foi durante décadas o escritor português mais traduzido, duas vezes proposto para o Nobel da Literatura, entre muitos outros factos que aqui não cabem. Mas o cerne dessa vocação está na primeira infância, na aldeia natal de Ossela, e Matos Barbosa, com um traço límpido e tons suaves, foi feliz em mostrá-lo.

O José Vai à Escola

texto e desenhos: Matos Barbosa

edição: Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis, 1999

(Novembro, 2019)




tempo de reportagem

«Com seu sorriso sardónico e o olhar enviesado, não hesitou em responder-me: / -- Eu cá só lá vi pedras, carros, automóveis, cavalgaduras e gente!» Avelino de Almeida, «Como o sol bailou ao meio-dia em Fátima», O Século, 15-IV-1917 § «Sinto-me perdido num cortejo de sombras. Stelio, Foscarina, Francesca de Rimini, as virgens, a Gioconda, aglomeram-se, à minha volta, em multidão. Sinto em mim, de mãos postas, todas as imagens do poeta. Esta hora silenciosa é, para mim, a cidade morta de Gabriel... / Abre-se uma porta.» António Ferro, «O"Século" ouve Gabriel D'Annunzio», O Século, 7-XII-1920 § «Levanto-me, envergo pela primeira vez o meu uniforme de soldado português e em menos de meia hora fico pronto para a primeira viagem ao front. Toma-se à pressa uma pequena refeição matutina. Depois, é a abalada rápida, sob a chuva miúda e fria que não deixa de cair, para o campo de batalha do Somme -- esse cemitério imenso onde foram sepultadas pela artilharia britânica vilas e aldeias, das quais não existe nada hoje, absolutamente nada.»  Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, 29-III-1917

domingo, setembro 08, 2024

serviço público: Viriato Soromenho Marques, o jornalismo analfabeto e a liberdade de procriar

"Quem tem medo de Sarah Wengeknecht?" 

Nas vésperas da eleições alemãs, li, no inevitável Público -- a partilhar estupidezes sobre a guerra da Ucrânia com os também fatais Expresso, DN, etc. -- uma pèrolazinha dum qualquer jornalista analfabeto como a que segue: aquilo a que chamaram populistas de esquerda, nomeadamente ao partido que ficou em terceiro lugar nas duas eleições de há uma semana, caracterizava-se por aqueles serem "mais ou menos" de esquerda em matérias económicas e sociais; e "mais ou menos" de direita por posições anti-Nato (sic!), contra a venda de armas à Ucrânia, supostamente anti-emigração (VSMarques explica), etc.

Com que então, ser anti-Nato agora é ser-se de direita?! A criatividade involuntária do analfabeto compete com a do putedo comunicacional que trabalha para o Trump, ao transformarem a campanha antiaborto, numa causa pela "liberdade de procriar"... 

O manicómio não é apenas woke, atinge também a beataria e os lunáticos evangélicos, pasto de votos para Trump e seus espertalhões.

o que vai acontecer

«A Alice lavara toneladas de camisas, uma pequena montanha de cuecas e sabia segredos curiosos: as ceroulas do presidente eram cor de rosa com uma fitinha preta e podia provar que, quando se dera a revolta para mudar o regime, S. Ex.ª, apesar do calmo sorriso que ostentava, tinha-se assustado.» Miguel Barbosa, «A dança», Retalhos da Vida (1955) § «O lugar de Sequeiros planta-se no alto da Serra de Queiró, arriba de Zebrais. É terra de pastores, encravada entre penedos. Os homens vivem ali, esquecidos dos outros homens, a cuidar dos rebanhos e a ver crescer os pastos.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1948) § «Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)

serviço público: "Conhecimento e liberdade"

"Porque não é livre quem não sabe distinguir o verdadeiro do falso." Paulo Guinote concluía assim a crónica da passada segunda-feira no DN, a propósito de um exemplo prático, num telejornal qualquer, de equiparação entre ciência e pseudociência, entre a razão e estados de espírito, "sensibilidades", tendências, inclusões que levam a oclusões, mas das cerebrais, de efeitos semelhantes às outras.

vária

«Janeiro de 1918 / Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo; não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida.» Raul Brandão, Memórias I (1919) § «Estava no Funchal havia quinze dias. Levara um encargo fácil. Entrevistar Norton de Matos, que vinha pela primeira vez à metrópole depois de ter exercido o cargo de Alto Comissário de Angola. O antigo ministro da União Sagrada era, nesse tempo, uma figura discutidíssima.» Artur Portela, «Como se perde uma "reportagem"», Uma Hora de Jornalismo (1928) § «Regressado do Brasil pela quinta vez, aqui trago de novo o meu testemunho de observador imparcial mas, tanto quanto sei e posso, compreensivo, perante o incansável ritmo de progresso que a esse grande país deu a sua posição hegemónica na América do Sul.» João de Barros, «Brasil de hoje», Diário de Lisboa, 21-VI-1946, Adeus ao Brasil (póst.) § «Eu bem na sinto! Eu bem na sinto!, apesar das fuligens do céu mal-humorado e da ventania que me apupa, através das frinchas das janelas. Uma pulsação vigora as alamedas, nas ascendências inexauríveis da seiva, rebentando em folhagens de contextura fina, por forma que já não é ficção o caso do homem que ouvia crescer erva nos campos, visto que eu há quinze dias ouço, no recanto onde vivo, sob uma umbela vermelha de paisagista, o burburinho da natureza que se revigora e emplumesce, numa dessas orgias de cor que faziam rir o olho azul de Rousseau e punham emoções na palidez fatigada de Huet, o paisagista da ilha verde de Seguin.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893) § «As notas que compõem esta navegação de cabotagem (ai quão breve a navegação dos curtos anos de vida!), à proporção que me vinham à memória, começaram a ser postas no papel a partir de Janeiro de 1986. Zélia e eu nos encontrávamos num quarto de hotel em Nova Iorque, ambos com pneumonia -- os dois, parece incrível --, febre alta, ameaça de hospital.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1990)

sábado, setembro 07, 2024

Duke Ellington, «Plucked Again»

tempo de romance

«Esta evocação do meu mestre acudia-me ao espírito sempre que, nos dias de sol, me era grata a frescura daquele remanso, à beira do mosteiro. Sobre o tanque, que se vedava para a rega, noite dia a fonte antiga levava a chorar. A água vinha de longe por uma caleira de pedra, e era sua uma toada tão leda e inquebrantável, que parecia mesmo a pulsação do silêncio.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918) § «Que Stendhal confessasse haver escrito um dos seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) § «Era miguelista -- e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no de uma cólera irracionável: / -- Cacete! Cacete! -- exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho. / Nos últimos anos tomara hábitos sedentários e vivia isolado -- com uma criada velha e um cão, o "Joli".» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80) § «Ali por fins de Agosto era um tal entrar de carros de milho pelas portas do quinteiro dentro! S. Miguel mais farto poucos se gabavam de o ter. Que abundância por aquela casa! Ninguém era pobre com ele; louvado Deus!» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867) § «Desde essa época, a distinção das duas raças, a conquistadora ou goda e a romana ou conquistada, quase desaparecera, e os homens do norte haviam-se confundido jurìdicamente com os do meio-dia em uma só nação, para cuja grandeza contribuíra aquela com as virtudes ásperas da Germânia, esta com as tradições da cultura e polícia romanas.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)

sexta-feira, setembro 06, 2024

Misha Maisky, Giuseppe Sinopoli, Concerto para violoncelo em Mi menor (Elgar)

Augusto M. Seabra, Carl Barks e eu

Muito já se escreveu e disse, e continuará a escrever e dizer-se sobre o impressionante Augusto M. Seabra o crítico por antonomásia, que ontem morreu. Tudo o que já li sobre ele faz jus ao que sempre li dele, muito intermitentemente, uma vez que nunca fui muito à bola com os jornais em escrevia, Expresso e Público, mesmo que se trate das duas grandes referências do jornalismo das últimas décadas, hoje uma sombra do que em tempos foram, e o que foram foram-no por causa de um (grande) jornalista, Vicente Jorge Silva. Eu, sempre antigo, era mais Diário de Lisboa (o extraordinário quotidiano, de Joaquim Manso a Mário Mesquita). 

Adiante.

Com familiares comuns, estive uma vez em sua casa, há cinquenta e dois anos. Quase duas décadas mais velho que eu, era um tipo muito simpático. Presenteou-me com uma revista Tio Patinhas que trazia (e traz, porque ainda a tenho) uma daquelas histórias do Carl Barks que faziam sonhar todas as crianças e jovens, e tantas vocações aventureiras despertou -- cientistas, antropólogos, arqueólogos, líricos, viajantes, sonhadores...  -- eu na última categoria, modestamente espero: «O segredo da Atlântida».

Aqui fica, em sua memória, que é também minha.



tempo de novela

«E o Manco teima e diz, com a ponta do cigarro requeimado ao canto da boca: / -- Jesus Cristo há-de voltar para nos dar a terra. / -- Voltar?! / -- Os pobres hão-de ser sempre pobres. / E o Fortunato: / -- Sempre. Sem pobres acabava-se o mundo. / -- O mundo é dos probes!» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931) § «Eu então, enternecido, dizia à deleitosa senhora: / -- Ai D. Augusta, que anjo que é! / Ela ria; chamava-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalizar. "Enguiço" era com efeito o nome que me davam na casa -- por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter à cabeceira da cama uma litografia de Nossa Senhora das Dores que pertencera à mamã, e corcovar.» Eça de Queirós, O Mandarim (1880) § «Era por 1813, meado de Agosto, quando o pastor chorava encolhido, a um canto do curral, e pedia ao padre Santo António com muitas lágrimas que lhe deparasse a cabra perdida. / João da Lage, o amo, assomou à porta da corte, e bradou: / Perdeste alguma rês?» Camilo Castelo Branco, Maria Moisés (1876-77)

quinta-feira, setembro 05, 2024

ucraniana CCLXII: paulatinamente, eles tornam aceitável, não a guerra, mas a ideia de que estamos em guerra e da sua inevitabilidade

Eles há muitos, alguns são até militares. Hoje ouvi duas dessas duas personalidades. 

O comandante João Fonseca Ribeiro, na RTP3, dizendo basicamente isto: o próximo ano será de grandes decisões, e não é altura para líderes políticos "medrosos", uma vez que há que esperar que a Rússia ataque o ocidente europeu; ou então prevenir esse ataque. (Subjacente está a lengalenga de que a Rússia se prepara, mais cedo ou mais tarde para atacar países Nato, o que nem as criancinhas ou mesmo a minha cadela acreditam, por muito teatro que faça Trump.) Suponho que, para devem os países europeus (hoje citados por Zelensky) já autorizar o emprego do armamento ocidental no ataque, esquecendo-se de dizer que muito desse armamento é operado não por ucranianos, mas por militares ocidentais -- algo que um imbecil como o Borrell nem se preocupa em elucidar os cidadãos da UE. Presumo também que para Fonseca Ribeiro os medrosos sejam: Biden, Scholz, Starmer e Macron; e que os exemplos a seguir sejam as formigas aterrorizadas do Báltico ou quem sabe o insigne Boris Johnson, estrénuo representante dos nossos valores democráticos e liberais.

A segunda personalidade ouvida, desta vez na cnn-Portugal, Diana Soller (tinha de ser) disse que a China por enquanto não é um perigo militar perceptível, ao contrário da Rússia, que está em guerra contra os europeus. -- Como se sabe, foi a Rússia que se expandiu e não os Estados Unidos, via Nato. O mundo de pernas para o ar...

E por aqui me fico, reforçando que o propósito destes comentadores, ou pelo menos parte deles, é a de que vamos lentamente assimilando a necessidade do sacrifício. Em que grau, cada um saberá (saberá?).

Isto é inaceitável, e deve ser contraditado por todos quantos acham que há mais a fazer do que sermos joguetes dos americanos. E não digo isto por "pacifismo"; se há coisa que os portugueses fazem bem é a guerra, apesar de bisonhos. Da Guerra Colonial, em que éramos ocupantes seculares, recuando à Lusitânia que resistiu a Roma por mais de um século, se há coisa que este povo sabe fazer é bater-se -- mas, por favor, fazê-lo em nome dos interesses de outros por causa dos anões políticos que temos tido, vai um passo que só a inépcia e -- agora sim -- o medo, comandante Fonseca Ribeiro -- explicam.

quarta-feira, setembro 04, 2024

Bob Seger, «Betty Lou's Gettin' Out Tonight»

ucraniana CCLXI: Mongólia, Poltava e UE

O enorme prestígio do TPI saiu grandemente reforçado com a decisão mongol de ignorar a farsa e os farsantes. Como eles se devem rir. Eu rio-me. Mesmo quando oiço o nosso general Isidro a falar em mais um atentado às democracias, ou às ideias liberais, ou lá o que fosse o que ele queria dizer. Até porque o suprassumo do "liberalismo", os Estados Unidos, não só não pertencem ao TPI como trataram de acautelar os seus cidadãos: nenhum americano está sob a alçada do TPI, já nem me lembro que que administração tal foi decidido. USA! USA! Democracy for ever!

Na Batalha de Poltava de 1709, o exército da Suécia imperial de Carlos XII foi destroçado pelo da Rússia imperial de Pedro o Grande. Há algumas horas, dois mísseis Iskander russos rebentaram com uma academia militar ucraniana. Na versão oficial, 50 mortos e mais de 200 feridos; na versão russa (ouvi-a há pouco ao coronel Mendes Dias, pois o que nos servem não é jornalismo, mas propaganda que já nem consegue disfarçar), 200 mortos e mais de 500 feridos. Acontece que nesse instituto estariam a dar formação vários oficiais suecos, preparando a tropa ucraniana para manobrar os aviões para recolha de informações que a Suécia irá ceder à Ucrânia. Bingo! Não há-de a vigarista da ministra dos estrangeiros alemã, essa fraude que lidera os Verdes e que já despareceu dos parlamentos estaduais que foram a eleições no Domingo -- não há-de esta fraude clamar contra Putin... 

Vamos rir-nos um pouco mais:

Annalena Baerbock (a fraude verde): "brutalidade de [Vladimir] Putin (Presidente russo) não conhece limites", criticou a ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock, na sua conta da rede social X (antigo Twitter), acrescentando que ele "tem de ser responsabilizado". ("Notícias ao Minuto")

O almirante Kirby, o tipo que chorava frente às câmaras quando os russos bombardeavam a Ucrânia: "É um terrível lembrete da brutalidade [de Putin]", considerou hoje o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Kirby." (idem)

E ainda o pateta substituo inglês, agora do Labour: "O chefe da diplomacia britânica, David Lamy, condenou também na rede social X o ataque mortífero russo àquela cidade ucraniana, afirmando tratar-se do "mais recente ato de agressão doentio da guerra hedionda e ilegal travada por Putin na Ucrânia"." (ibidem)

Entretanto a desavergonhada UE, em roda livre, sem ninguém que ponha a mão na Úrsula e no seu Borrell, "lamenta" que a Mongólia não tenha detido Putin. Desculpem, mas para além do abuso de poder destes primatas da comissão, estaremos nós em guerra com a Rússia e ainda não nos disseram? Recuso-me a acreditar que esta estrutura tão liberal, democrática e transparente tome determinadas decisões nas costas do povo europeu. 

domingo, setembro 01, 2024

um duro coração de manteiga

Na vinheta inicial, sob um sol de canícula, um abutre de longas asas estendidas voa com a cabeça inclinada para o solo; a seguir, em grande plano, vemo-lo a fixar o olhar em algo; depois, a carcaça de um cavalo sendo devorada por um bando de aves; no quarto quadradinho, com o mosquedo a voltear, a carniça é arrancada pelos fortes bicos concebidos para retalhar. A partir da segunda vinheta, filacteras sem o apêndice característico transmitem-nos as reflexões de alguém: «As pessoas não gostam de nós. / Há quem diga que é porque passamos o nosso tempo no meio de cadáveres. / Transmitimos a morte como outros transmitem bexigas. / Também consta que cheiramos mal e que podemos dar azar. / Vá-se lá saber onde foram buscar isso! / A verdade é que as pessoas não gostam de nós. / E ainda bem.» Quinta e última vinheta da primeira prancha: um homem ainda novo, de barba cerrada, vestido de escuro, sentado de caneca na mão e cigarrilha na boca, encostado à carreta que lhe pertence, completa agora o seu pensamento: «Também não gosto delas.» É Jonas Crow – um gato-pingado, um cangalheiro – o herói desta série. Acompanham-no “Jed”, um abutre de asa embriada que Jonas não teve coragem de matar, e os dois cavalos da carroça funerária: “Zephyr” e “Cobalt”.

Pela amostra deste primeiro álbum, publicado originalmente pela Dargaud Benelux, em 2015, a saga de Jonas Crow tem tudo, autores e assunto, para vingar. O texto é de Xavier Dorison e o desenho de Ralph Meyer, ambos parisienses de 1971. O primeiro é argumentista exímio (O Terceiro Testamento, sequelas de XIII e Thorgal); Meyer, tem um lápis ágil e espectacular, além de abundantes recursos expressivos. Diga-se, a propósito, que a semelhança fisionómica com Mike T. Blueberry é, mais do que intencional; é um elo que os autores criam – por razões que nesta fase não são claras – à melhor BD western. A cada um a possibilidade de especular...

Crow é uma personagem, é a personagem: solitário, misterioso (transporta uma história consigo), de mão leve com a artilharia e raiva interior que o tornam temível, além de um coração de manteiga, capaz dos gestos mais altruístas – e também divertidos, como aquela citação da “Epístola de São Paulo aos Californianos”… Se o Duke, de Hermann e Yves H., de quem já aqui falámos, é um pistoleiro que não gosta de armas, Jonas Crow é uma máquina de matar que odeia violência... Aliás, o que não falta é um conjunto de personagens fortes, que tornam este western intenso e áspero, embora a violência não seja gratuita, antes uma exigência da própria trama, dotada destas personagens específicas: um antigo garimpeiro às portas da morte, dono duma cidade, ganancioso e cruel, uma jovem governanta inglesa hierática e sensual, um criado de casa ressentido, uma velha chinesa perspicaz, um xerife venal, e por aí fora, em intriga estonteante.

Undertaker – 1. O Devorador de Ouro

argumento: Xavier Dorison

desenhos: Ralph Meyer

cor: R. Meyer e Caroline Delabie

edição: Ala dos Livros, Benavente, 2019

(Novembro, 2019)