terça-feira, setembro 17, 2024

carne para canhão

O pregador estrito, de salmo na boca e Bíblia na mão, é um dos tipos característicos do género western. Morris, por exemplo, dedicou-lhe um dos últimos álbuns de Lucky Luke, e o nosso Vítor Péon congeminou uma curiosa figura de reverendo-pistoleiro que não terá passado dos esboços. No álbum desta semana, um desses espécimes é a personagem secundária tóxica da narrativa – à frente de um bando de sicários – e também agent provocateur ao serviço de interesses não muito pios. Em 1861, o Kansas, estado recente, tornara-se palco da luta entre esclavagistas do Missouri, a leste, e antiescalavagistas do Nebraska, a norte, uma vez que as autoridade estaduais dispunham do poder de optar por um dos sistemas, graças a uma lei de 1854, apontada como uma das causas da Guerra da Secessão, prestes a deflagrar. Markham, assim se chama a criatura, levanta as populações em comícios acalorados contra os malditos esclavagistas, “que recusam o progresso industrial e as novas leis alfandegárias (…), necessárias à recuperação financeira do nosso grande país”; ao mesmo tempo que, obcecado pelo pecado, e em especial com as mulheres “adúlteras”, corre as cidades para fazer “justiça” com as próprias mãos, sendo o companheiro abatido e a mulher levada para o celeiro onde é chicoteada até à morte, O pregador deixa a sua assinatura no local: uma folha das Escrituras com a parábola da mulher adúltera, presa por um crucifixo invertido e encimada por uma conveniente bandeira da Confederação. Esta criatura temível está, porém, marcada pela perseguição, de que vai tendo suspeitas: um cavaleiro misterioso de quem nada se sabe, vai na sua peugada, pelo rasto de crime que deixa. Ninguém sabe de quem se trata e nós, leitores, também não. Algumas reminiscências partilhadas dizem-nos que ainda criança se viu órfão após o massacre dos pais – que aparecendo num relance não tinham aspecto de colonos, antes citadinos. Criado pelos índios, o xamã ensinou-lhe a tirar partido das propriedades das plantas que afastam os espíritos malignos e o protegem do dom congénito, benção ou maldição: a capacidade de ver o passado de quantos se cruzam no seu caminho.

Lonesome, de Yves Swolfs (Bruxelas, 1955), autor também da série Durango (1980), com um traço soberbo e dotes de fisionomista, engendrou uma personagem fragmentada, à procura de si própria, Ágil com as armas e arguto, se há coisa de que desconfia é do bicho-homem, sentimento aligeirado quando se depara com uma prostituta honrada ou um jornalista destemido. Jornalista em cuja boca Yves Swolfs pôs a amarga visão que tem do poder político-finaceiro, sempre por detrás das catástrofes, a Guerra da Secessão, mas que assenta que nem uma luva na que está em curso na Europa: “Falo-lhe de uma casta que nunca sofrerá as consequências da guerra devastadoras que nos prepara... mas da qual, pelo contrário, tirará o melhor partido!...” Ao contrário da carne para canhão, que geralmente nem sabe o que lhe está a acontecer.

Lonesome – 1. A Pista do Pregador

texto e desenhos: Yves Swolfs

cor: Julie Swolfs

edição: Gradiva, Lisboa, 2021

(Maio, 2022)






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