segunda-feira, fevereiro 03, 2025

o que está a acontecer,

«O polícia, que vinha sentado junto do motorista, chupou, quatro vezes seguidas, a ponta mungida do cigarro, atirou-a fora -- e desceu. Sentindo os olhares despejados lá de cima, que davam maior vaidade ao seus gestos, ladeou a furgoneta e, atrás, abriu a porta, que era chapeada e sólida como a de um cofre.» Ferreira de Castro, A Experiência (1954) 

domingo, fevereiro 02, 2025

o que aconteceu

«À saída da aldeia, recuou estarrecido. Vira um fantasma branco a destacar das trevas, e agachado na raiz dum castanheiro. / -- Ó Zé da Mónica, és tu? -- perguntou o suspeito fantasma. / -- Sou eu, tia Brites -- respondeu o rapaz suspirando ofegante. / Credo! Que medo você me fez!» Camilo Castelo Branco, Maria Moisés (1876-77) 

diários

[14/8/1961] .../... «À procura da resposta, desci esta manhã a vertente triunfal dos Campos Elísios e, acotovelando-me entre os perfis erectos da mulher parisiense e o cosmopolitismo berrante dos visitantes estivais, cheguei ao fim da perspectiva, a belíssima Praça da Concórdia -- primitiva Place Neuve e depois Praça da Revolução, onde, no cesto da guilhotina, caíram as cabeças de Maria Antonieta e de Carlota Corday.» António de Cértima, Doce França (1963)

«Para machucar meu coração» (Ney Matogrosso & Leo Gandelman)

o que está a acontecer

«A furgoneta deteve-se. Era nova, blindada, de um escuro brilhante, quase negro. A banda esquerda dir-se-ia feita de uma só placa, inteiramente lisa; na outra havia um ralo, pequeno e redondo, que filtrava o ar de todas as más tentações, como os crivos, no fundo dos lavatórios, libertam a água suja de todos os elementos obstrutores.» Ferreira de Castro, A Experiência (1954)

«Alvas de neve e cuidadosamente dobradas, vão-se empilhando na mesa as peças dum minúsculo enxoval. / Duas mãos ternas e jeitosas, vermelhas e antes do tempo deformadas, passeiam as roupinhas húmidas do borrifo, alisam-nas, empunham de novo o ferro que muitos anos de uso poliram: são elas, em toda a casa, o único sinal de vida.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)

«O rapaz magro esteve um momento raspando o chão com a bengala -- e foi andando devagar ao comprido da plataforma. Reparara agora no rapaz do campo, que supunha ia a Lisboa embarcar para o Brasil: e, sensibilizado pela face tão desolada da velha, ia pensando que o Emigrante seria um motivo tocante de poesia social: daria quadros de cor rica -- os vastos azuis do mar contemplados duma amurada de paquete, as noites saudosas, longe, numa fazenda do Brasil, quando a lua é muito clara e os engenhos estão calados; e aqui no casebre da aldeia, os pais chorando à lareira e esperando os correios...» Eça de Queirós, A Capital (1877/1925)

sábado, fevereiro 01, 2025

estampanços


Frank Frazetta, Tarzan em Luta com Numa o Leão

 

sexta-feira, janeiro 31, 2025

fortes e fracos na política internacional: a propósito da futura Gronelândia americana

Ou seja: queiram ou não os dinamarqueses, se os americanos consideraram que a Gronelândia é um território essencial, por razões assumidas (a questão estratégica) e oculta(da)s, as riquezas que encerra, a Dinamarca pode dizer-lhe adeus.

Há que dizer o seguinte:  Mette Frederiksen, p-m dinamarquesa tem carradas de razão quando diz que a Gronelândia pertence aos gronelandeses, cuja população é, em mais de 90% esquimó. São estes que têm a legitimidade: mas território contíguo ao continente americano, não lhes resta outra alternativa que não a de entregarem-se ao vizinho colossal. 

O mundo não é perfeito, e muito menos os seres humanos que o habitam. O Direito Internacional é civilização, tentativa dessa perfeição, uma camada fina que procura conter os expansionismos e oferecer garantias aos mais fracos -- porém, como a natureza humana não muda desde o o tempo das cavernas, o poder está sempre do lado dos mais fortes -- a não ser que nos chamemos Gandhi ou Mandela. Mas mesmo estes estavam longe de ser fracos; ao contrário, houve alturas em que apenas eles e poucos mais viam a força que detinham. Depois, foi aproveitar a conjuntura (II Guerra Mundial; fim da Guerra Fria), no que foram eficazes, e felizes.

Nem a Índia nem a África do Sul eram, contudo, um território vasto e rico habitado por cinquenta mil esquimós. Quando o interesse (e a cobiça) desperta no estado vizinho, militarmente o mais poderosos do mundo, o destino está traçado.

4 versos de Fernando Namora

«Um dia a memória / Há-de falar-me desta chuva / e do que dentro da chuva foi / tédio   distância   pausa» 

«Calendário», Marketing (1969)

quinta-feira, janeiro 30, 2025

fragmentos

«Pela escrita levamos / a vida que temos.» Liberto Cruz, «Livro de registos», Última Colheita (2022)

«Importunamos os outros se lhes pedimos a respeito do que escrevemos a sua opinião; ofendemo-los se não lha pedirmos.» José Bacelar, Revisão 2 -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana (1936)

«Aprender a aceitar os limites da linguagem, aprender a alargar os limites da ideia. Ser sempre capaz de mais. A Beleza como dever, a coragem como único caminho para o futuro. Suave medo escuro.» Rui Chafes, «O perfume das buganvílias», Entre o Céu e a Terra (2012)

Crosby, Still, Nash & Young, «Woodstock»

2 versos de José Agostinho Baptista

«possivelmente terias seis anos / mas sempre me fascinaram o vermelho antigo dos lábios»

«Retrato» Deste Lado Onde (1976)

quarta-feira, janeiro 29, 2025

UE em hibernação

A Úrsula deve estar em hibernação numa qualquer caverna, talvez na Gronelândia-- tão vocal que ela era.

Scholz disse os mínimos; Macron mandou o ministro dizer por ele alguma coisinha mais.

Não é fácil passar de lacaio a algo que se dê ao respeito de um dia para o outro. Espera-se cambalhotas, pois mudanças de dirigentes só por incapacidade adveniente.

4 versos de António Salvado

«Invoco-te, esperança, / porque vejo que as árvores não floram / e um silêncio de outono a terra cobre / e as gentes transparecem em desânimo.» 

Poesia de António Salvado (2015)

por aí


Adelino Lyon de Castro

 

terça-feira, janeiro 28, 2025

o que está a acontecer

«Na mansarda, de outro modo silenciosa, paira uma inquietação. Só ali na cozinha brilha a luz amarela e tranquila, que o abajur de papelão concentra na mesa e na tábua de engomar. Ao lado, pelo respiradouro em ogiva do ferro, espreita um lume quase branco, de inferno em miniatura, que espalha o aroma e o calor reconfortantes do sobro queimado.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)

«-- É um horário absurdo o nosso. Quando estive emigrado em França e na Bélgica, é que dei conta disso. Nós desalinhamos a digestão da Europa, pois no momento em que os espanhóis começam a encher o estômago já os outros povos estão a esvaziar o deles...» Ferreira de Castro, A Curva da Estrada (1950)

«O chefe da estação, um gordo com os queixos amarrados num lenço de seda preta, o bonnet de galão sujo muito posto ao lado, apareceu então, à porta da sala das bagagens, de charuto nos dentes. O rapaz magro dirigiu-se timidamente para ele, disse: / -- Creio que o comboio vem atrasado... / O chefe afirmou silenciosamente com a cabeça; e depois duma fumaça: / -- Vem sempre atrasado aos sábados... É a demora em Espinho.» Eça de Queirós, A Capital (1877/1925)

Nat Adderley and the Big Sax Section, «Chordnation»

a visita do eunuco

Rutte aos papéis. Vir cá ou não vir, diga o que disser, neste momento não vale um caracol. Nem ele sabe o que se vai passar, estando os Estados Unidos e a Rússia a negociar a sua guerra na Ucrânia. Aliás, todos sabem que nada sabem, a começar por este tipo, que conseguiu num ápice ser pior do que o secretário-geral anterior. Montenegro, que é cágado, respondeu-lhe com um 'tá bem abelha, à espera  do que manda o dono disto tudo, que é Trump.

Os Açores, felizmente, ficam longe do Árctico, contudo convém portarmo-nos bem, não vá aparecer aí outra FLA, criada outra vez pelos americanos.

(Piadola: E a propósito do Árctico, irá a Dinamarca evocar o art,º 5.º do Tratado do Atlântico Norte?) 

6 versos de Dick Hard

«Cravaram a glosa / em minha pena / sexo, álcool, poesia // Preferia uma rasca prosa / ou talvez uma faena / de cornos, farpas e razia» 

«Sexo, álcool, poesia», De Boas Erecções Está o Inferno Cheio (2004)

segunda-feira, janeiro 27, 2025

Auschwitz e o 'antissionismo'

Não tenho ideia de maior ignomínia do que o inferno nazi. Auschwitz não foi apenas obra de uma mente doentia, mas de muitas mentes depravadas; e foi-o também de largos milhares de funcionários, civis e militares, que se "limitaram" a cumprir ordens. Não há desculpas para a separação de famílias, o assassínio programado de crianças (ou de quaisquer outras pessoas), o tratamento do ser humano como gado para abate. Há ordens que nunca se cumprem

Escrevem os jornais, preguiçosos, que o antissemitismo está a aumentar. Não sei. O antissionismo parece que sim, e ainda bem. Não terão os jornais mordido o isco do governo racista israelita, em que cada crítica que se lhe faz é desonestamente classificada como antissemita? (Se calhar sou demasiado objectivo, e não levo em conta que a maioria das pessoas mete tudo no mesmo saco.)

O que é trágico é os descendentes de muitos dos que estiveram internados nos campos de concentração estejam agora a dizimar um povo, não olhando a alvos -- ou seja, estes sionistas-racistas conspurcam a memória de todos os judeus que pereceram vítimas da besta nazi. 

E não se venha com a conversa estafada, porém verdadeira, de que o Hamas usa o povo como escudo, pois a partir do momento em que para abater dez guerrilheiros se sabe que cem civis vão ser eliminados, os executantes e os mandantes dessa acção estão moralmente equiparados aos que cometeram o acto terrorista de 7 de Outubro de 2023 sobre civis indefesos. Merecem-se, nada os distingue.

4 versos de Cesário Verde

«Agonizava o Sol gostosa e lentamente, / Um sino que tangia, austero e com vagar, / Vestia de tristeza esta paixão veemente, / Esta doença, enfim, que a morte há-de curar.» 

«Flores velhas», O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)

domingo, janeiro 26, 2025

Norman Granz Jam Sessions, «Ballad Medley»

correspondências

(António Cândido a João de Barros, 1907) .../... «O Conselho só conhece dos recursos da comissão quando eles têm por fundamento qualquer infracção por formalidades legais. / Doutros recursos só o Ministro conhece. / Como podia ter havido alguma irregularidade grave no julgamento da Comissão, escrevi a dois colegas meus. / Sou, com a maior consideração, e com verd.ª estima, // De V. Ex.ª / Adm.or e am.º certo e obgd.º // António Cândido // 20-8-907» Cartas Políticas a João de Barros ***

(Eugénio de Andrade a Jorge de Sena, 1955) .../... «Devo até dizer-lhes que o melhor de mim, passada a decepção que inicialmente tive, se alegrou com a notícia de o prémio ter sido atribuído a um livro do José Terra, com quem simpatizo imenso. Se tiver ocasião de falar com o Cochofel peço-lhe que lhe diga isto mesmo. / Pela vida fora terá o Jorge, com certeza, testemunho de que lhe digo rigorosamente a verdade» .../... Cartas de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena**

(José da Cunha Brochado a desconhecido, 1696) .../... «Viva V. Ex.ª para ilustre distinção do nosso reino, pois, se este invejou a outro a fortuna do nascimento de V. Ex.ª, outros lhe invejam agora a glória da sua adopção. Cante Lisboa os triunfos que por V. Ex.ª logra na corte de Viena, que, se outra pátria teve a fortuna de fazer seu a V. Ex.ª, ela granjeou o crédito de que V. Ex.ª a fizesse sua.» .../... Cartas*


*** Cartas Políticas a João de Barros (ed. Manuela de Azevedo, 1982)

** Cartas de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena (ed. António Oliveira, 2015)

* José da Cunha Brochado, Cartas (ed. António Álvaro Dória, 1944)

«I Saw Her Standing There» - Paul McCartney, David Gilmour & Ian Paice (Live at the Cavern Club - 1999)

sábado, janeiro 25, 2025

serviço público - o 'brutalista' e o 'indecente'

 As duas últimas crónicas de Viriato Soromenho Marques no Diário de Notícias: Trump e Biden.

sexta-feira, janeiro 24, 2025

King Oliver's Creole Jazz Band, feat, Louis Armstrong, «Mandy Lee Blues»

o que está a acontecer

«O vento mia e rabeia no telhado, abala a casa, parece que leva tudo pelos ares, engolfa-se a espaços pela chaminé abaixo, espevita o lume onde a chaleira canta, vai fazer oscilar a chama do candeeiro de petróleo e arranca-lhe um vèuzinho de fumo negro. Algures, uma porta mal engonçada bate no trinco, enfurecida, como se quisesse libertar-se e partir com o vento à grande aventura.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)

«Ramona não se justificou, mas, pelos seus modos, Soriano compreendeu que ela resmungava por dentro. E parecia que o silêncio e a imobilidade de Paco apoiavam e aumentavam a razão de Mercedes. / -- Em Espanha janta-se sempre tarde de mais -- disse Soriano, em tom conciliador, assim que a criada saiu, depois de ter servido o café.» Ferreira de Castro, A Curva da Estrada (1950)

«Na estação havia apenas um passageiro, esperando o comboio: era um mocetão do campo, que não se movia, encostado à parede, com as mãos nos bolsos, os olhos inchados de ter chorado duramente cravados no chão e ao lado sentadas sobre uma arca de pinho nova, estavam duas mulheres, uma velha, e uma rapariga grossa e sardenta, ambas muito desconsoladas, tendo aos pés entre si, um saco de chita e um pequeno farnel de onde saía o gargalo negro duma garrafa.» Eça de Queirós, A Capital! (1877/1925)

quinta-feira, janeiro 23, 2025

vária

«O exército ocupa tudo, tomou conta de tudo, instalou-se por toda a parte. É ele quem domina, porque é ele, afinal,  quem terá de arrancar das mãos dos alemães a terra sagrada que eles violaram e que há quase três anos geme sob a sua pata selvagem.» Adelino Mendes, «A cidade d'Albert» (A Capital, 29-III-1917), Repórteres e Reportagens de Primeira Página (s.d.)

«É o que eu digo do grosseiro pilriteiro campónio, o dos espinhos hirsutos, que, destinado a não ter filhos, provavelmente adoptou as deliciosas flores de que se veste. / Elas são bem singulares, na verdade!» Olhando-as, por vezes, sinto que uma reminiscência longínqua me turba, acordada não sei como, e vinda não sei donde, a qual se esgarça em brumas de legenda, reminiscência dalguém que amei num tempo, sob outra forma, noutras idades, países...» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)

«Proletários de todos os países, perdoai-nos!, lia-se na faixa conduzida pelos moscovitas na Praça Vermelha durante o desfile de um 7 de Novembro recente. / O que parecia definitivo se desintegra, deixa simplesmente de existir. A História acontece diante de nós, nos vídeos de televisão, transformações espantosas, mudanças inimagináveis, num ritmo tão rápido, tão absurdamente rápido que um dia vale anos, a semana tem a medida de um século.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1992)

ucraniana CCLXXVIII - ui, que medo...

A bardaimprensa ontem borbulhava de gozo com o que lhes mandaram escrever/dizer: Trump ameaça Putin com tarifas... O linguajar destes asnos...  Que obviamente não é inocente nem, quem sabe, inconsequente, por parte de quem manda falazar estas talking heads...

(E já agora: afinal o Trump não era uma marioneta do Putin?...) 

2 versos de Alberto de Lacerda

«Ignoram e sabem. São o vento / que orienta os caminhos verdadeiros» 

«Os poetas e os amantes», 77 Poemas (1955)

quarta-feira, janeiro 22, 2025

Dieter Fischer-Dieskau, «Es War Einmal Ein König» (Liszt)

4 versos de A. M. Pires Cabral

«Alguma coisa se há-de fazer quando / não há nada que fazer e o tempo se desdobra / até um ponto em que deixa de haver ontem / ou amanhã, e muito menos hoje.» 

«Carreiro de formigas», Caderneta de Lembranças (2021)

terça-feira, janeiro 21, 2025

'Tempos Interessantes'

Tempos Interessantes (2002) é o título da autobiografia de Eric Hobsbawm, à qual me lancei depois de ter arrastado penosamente a leitura duma porcaria de um livro, que era forçoso terminar. Como escrevia aqui o Jorge Amado, a propósito da implosão da União Soviética, é a História a desenrolar-se diante dos nossos olhos, desde ontem, com a tomada de posse de Donald Trump, a História a acelerar-se debaixo dos nossos narizes. A América assume o seu imperialismo (monroviano, para começar) e vai procurar, tant bien que mal, fazer as suas ententes com a China e com a Rússia.

A UE, a continuar com uma nulidade política como a Ursula -- espelhos doutras nulidades várias --, não sei como sairá daqui cinco anos, quando a senhora se reformar -- se é que ela se aguenta até lá. As outras flores da cúpula europeia são pau para toda a colher, fazem o que lhes mandam; como de costume, não contam. Porém, não estou a ver a UE aguentar-se na nova ordem mundial que se desenha sem uma profunda reformulação política e institucional, que será sempre impossível, creio, com a quantidade de estados que a compõem. A única solução para que a UE não acabe ou retroceda ao estádio de uma espécie de antiga CEE, é a do confederalismo (falo de algo sério, não de simulacros para inglês ver); mas os tempos não estão para isso. Ou estarão?... De qualquer modo, tratar-se-á de uma impossibilidade no actual quadro institucional.

No meio disto tudo, a grotesca vassalagem da Dinamarca (país tão estimável) diante da América, vai ter como paga a Gronelândia, a que de uma maneira ou de outra vai ter que dizer farewell (em dinamarquês). Mais uma vez: seria para rir, não fora trágico para a Europa, como se estava a ver desde o início, quando a UE aceitou subordinar-se à estratégia americana de confrontação com a Rússia -- estúpida estratégia delineada por estúpidos, com derrota certa.


4 versos de Antero Abreu

«A terra húmida cheira a maternidade / E um leite morno / Penetra suavemente / Nas artérias do que foi e já se muda.» 

«Térmite», Poesia Intermitente (1987)

segunda-feira, janeiro 20, 2025

Peter Gabriel c/ Melanie Gabriel, «Downside Up»

3 versos de José Pascoal

«Vem, nuvem de silêncio, transparente, / Água da primeira primavera, / Sobre a cabeça, lentamente, docemente.» 

«Nuvem de silêncio», Sob Este Título (2017)

o que está a acontecer

I. «A estação de Ovar, no caminho de ferro do Norte, estava muito silenciosa pelas seis horas, antes da chegada do comboio do Porto. / A uma extremidade da plataforma, um rapaz magro, de olhos grandes e melancólicos, a face toda branca da frialdade fina de Outubro, com uma das mãos metida no bolso dum velho paletot cor de pinhão, a outra vergando contra o chão uma bengalinha envernizada, examinava o céu da manhã  chovera; mas a tarde ia caindo clara, e pura; nas alturas laivos rosados estendiam-se como pinceladas de carmim muito diluído em água e, longe, sobre o mar, para além duma linha escura de pinheirais, por trás de grossas nuvens tocadas ao centro de tons de sanguínea e orladas de ouro vivo, subiam quatro fortes raios de sol, divergentes e decorativos -- que o rapaz magro, comparava às flechas ricamente dispostas dum troféu luminoso.» Eça de Queirós, A Capital! (1877/1925)

I. «Encontravam-se os três à mesa de jantar e o velho relógio de pêndulo marcava onze horas menos um quarto. Mercedes mostrava-se impaciente. / -- Ramona! -- gritou. -- Então o café? -- E dirigindo-se ao irmão e ao sobrinho: -- Esta mulher está cada vez pior! / Ouviam-se já os passos da criada no corredor e, logo que ela entrou na sala, Mercedes censurou-a: / -- Por mais que eu repita, há-de ser sempre isto! A comida nunca está pronta a horas! Jantamos sempre tarde. » Ferreira de Castro, A Curva da Estrada (1950)

«Ao fundo erguia-se, em decoração latríaca, um altar improvisado com o frontal de magnífica escultura de madeira, e um tríptico por cima, em ar de retábulo. / Próximo da escrivaninha descansava, aberta num atril, a obra de Louis Gonse, L'art gothique, e nos extremos da sala duas estantes de coro, que tinham recebido outrora os antifonários e sentido roçar nas suas fibras o desenrolamento grave do cantochão, acolhiam agora magnificências livrescas, piedosamente resguardadas por litúrgicos panos.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

domingo, janeiro 19, 2025

o que vai acontecer

«Casa sombria e nua. O mais alegre era um cravo., onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele... / Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)

«Definhavam as ovelhas do pastor pobre; engordavam a recato as do pastor rico. E mais sofria Melo Bichão: "Cala-te, Negra, cala-te, Nina..." A neve não parava no correr das semanas. Gemia o filho doido de Melo Bichão. Gemia, gemia. E secava-se o leite das fêmeas, morrendo os cordeiros.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1949)

«O Alfredo não era coxo. Fingia, para mendigar. Era uma vida horrível. Chegava ao fim do dia com uma perna dormente de tanto a ter dobrada, para ninguém a ver, e Alice tinha de lhe fazer massagens com vinagre. / Às vezes, quando aparecia bêbado, tirava a perna e dava com ela nas costas da pobre Alice. Foi por essa razão que ela, um dia, o abandonou.» Miguel Barbosa, «A dança», Retalhos da Vida (1955) 

«Ainda Estou Aqui», ou quem disse que ser pela família é ser de direita?

A banalidade do lugar-comum foi sempre algo a que tentei fugir. A família, como célula natural em que cada indivíduo é concebido, é (ou deveria ser) à partida o lugar do amor mais puro, do amor sem porquê. Obviamente que sei que nem sempre é assim -- e que pode ser, nos piores casos, um inferno. No entanto, estou convencido de que, em muitos casos que tiveram o azar de lhes calhar o pior possível, há a nostalgia do que poderia ter sido e não foi; e que alguns daqueles vão, por sua vez, tentar e dar aos seus o que não lhes coube. Porque a família é, ou deveria ser sempre, o lugar do amor, do amor sem porquê. Não faço ideia se isto esteve na cabeças os nas intenções de Walter Salles; mas "Ainda Estou Aqui", que mostra como a violência das ditaduras pode cair como um raio no seio familiar, é um hino de amor à família como primeiro e último reduto de amor, humanidade, felicidade e até alegria no vórtice do turbilhão da História, que se desenrola cega, sempre.
Fernanda Torres: já tudo foi dito. Ela, a mãe-de-família durante o terror da História, é o filme -- que é muito e intenso.


sexta-feira, janeiro 17, 2025

cheiro a pólvora

Ninguém sabe o que vai fazer o Trump; mas se houver um mínimo de coerência (e Trump não é só Trump, e o apêndice Musk, mas, por enquanto na sombra, também J. D. Vance, com outra densidade), viverá tranquilamente com consagração de facto das zonas de influência, ou seja "A América para os americanos", o Próximo Oriente e a Europa vizinha para os russos (embora não acredite que lhes entregue os Bálticos e muito menos a Polónia, o que equivaleria a Nato estar morta, o que não é o caso, pelo menos ainda); o Pacífico para quem o apanhar; África de novo uma espécie de self-service, para quem primeiro erigir padrão (estou a exagerar, embora Áfricas existam muitas); e a velha Europa submissa, condenada nos próximos cinco anos a esta mediocridade vassala, perdeu uma oportunidade para contar alguma coisa, harmonizando as diferentes sensibilidades; mas isso seria pedir muito; e ainda estamos longe de uma integração coerente, se é que alguma vez lá chegaremos.

A Inglaterra e a Ucrânia assinaram ontem um acordo para cem anos; a Rússia e o Irão estabeleceram hoje uma parceria estratégica. É o regresso às ententes que tão bons resultados deram, e uma complicação dos diabos. De qualquer modo, a Rússia já ganhou a guerra que lhe foi movida pelos americanos e proxys ucranianos e da UE. Esta estrebucha, até ser tomada por dentro, tornando-se outra coisa -- o que não tem que ser necessariamente mau. Péssimo é aquilo em que se tornou nos últimos anos.

3 versos de Fernando Jorge Fabião

«Tenho cabelos brancos / cor de prata / cor de pranto» 

Nascente da Sede (2000)

quinta-feira, janeiro 16, 2025

Abbey Lincoln, «When Love Was You and Me»

2 versos de José Agostinho Baptista

«para o fim de uma primavera de fome um velho cargueiro do Pacífico / trouxe-me, louco de dor, aos portos malditos da Península -- barcelona, cadiz, lisboa...»

«México», Deste Lado Onde (1976)

estampanços


Jorge Miguel, Leitora (2022)

 

quarta-feira, janeiro 15, 2025

4 versos de Alberto de Lacerda

«No firme azul do desdobrado céu / decantarei a límpida magia / das sensações mais puras, melodia / da minha infância, onde era apenas Eu.» 

«Imagem», 77 Poemas (1955)

o que está a acontecer

«Em mísulas e sobre os móveis -- uma credência gótica com baldaquino, um contador do século XVI, alguns tamboretes estofados, cadeiras de coiro lavrado e a escrivaninha de pau-santo -- pousavam gessos clássicos, marfins velhos, objectos de culto, cálices, cibórios, sanefas, paramentos, pequenos modelos de relicários e domos, de púlpitos e sarcófagos e, aos montes, desbordando dos móveis e arrastando-se nos tapetes, dispersos por toda a parte, em álbuns, cartões, portafólios, uma aluvião de cópias e reproduções, em todos os processos e formatos, dos quadros célebres dos museus, das obras-primas da arte de todos os tempos.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

«Também ali perto, por uma tarde fosca de Outubro, chegou um gaio voejando, de chaparro em chaparro, a grasnar mal-humorado como é próprio da raça. No saiote desbotado, as duas pinceladas de azul, azul retinto, fulguravam para que se soubesse que um gaio também é gente dos ares.» Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães (1957)

«Não alastro as páginas com dedicatórias: a meu pai, à minha mãe, aos meus parentes e amigos, vivos e finados, para que se não diga de mim o que por aqui se propalou a respeito do Brites, que encheu quatorze folhas da sua tese sobre "cryptococus xantogenico", com oferecimentos, envois e uma reclame a uma certa modista da rua d'Ajuda. / Outros livros virão, meu tio amado. // Afectuoso // Anselmo». Coelho Neto, A Capital Federal (1893)

terça-feira, janeiro 14, 2025

Bruce Springsteen, «The Ties that Bind»

6 versos de Fernando Namora

«Estava eu nisto e chegou-me da Marconi / um telegrama em cifra / vindo de uma masmorra abjecta com pingos de água sobre o crânio / e nele o preso me dizia  que não morrera que não morreria / que não falara que não falaria / pois acreditava na poesia.» 

«Divagação», Marketing (1969)

alhures

«Gracejei com Hemingway acerca da sua próxima novela e rimo-nos muito e divertimo-nos imenso, e depois calçámos umas luvas de boxe e ele partiu-me o nariz. / Naquele inverno Alice Toklas, Picasso e eu alugámos uma vivenda no Sul de França. Eu trabalhava então naquilo que  sentia ser uma grande novela americana, mas os caracteres da máquina eram muito pequenos e não consegui terminá-la.» Woody Allen, «Memórias dos Anos Vinte», Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura (1966)

«"Um moinho de vento e de farinha, sito no vale do Ródano, em pleno coração da Provença, numa encosta coberta de pinheiros e azinheiras; moinho que se encontra abandonado há mais de vinte anos e em estado impróprio para moer, como o demonstram as videiras bravas, o musgo, o alecrim e outras ervas parasitas que trepam por ele até à ponta das suas aspas;» Alphonse Daudet, «Prólogo», Cartas do Meu Moinho (1869) - trad. Fernanda Pinto Rodrigues

«Desde há uns tempos a esta parte eu estava a perder peso; não ao estilo dos amantes do século passado, porque aí havia um certo sentido. Eu, muito simplesmente, emagrecia porque as nuvens que me alimentavam andavam cada dia mais escassas. Eram umas nuvens que o vento de levante enviava expressamente para mim.» Félix Cucurull, «Carta de despedida», Antologia do Conto Moderno - trad. Manuel de Seabra

segunda-feira, janeiro 13, 2025

4 versos de Luísa Dacosta

«Da infinita e impossível distância / trago-te até mim. / respiro contigo a noite / e passeio a tua sombra à beira do mar.» 

«Respiração», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)

domingo, janeiro 12, 2025

uma risota em Moscovo, à custa da Dinamarca

A desconhecida primeira-ministra da Dinamarca (desconhecida para mim, que nem faço ideia a que partido pertence) foi das mais activas vassalas dos americanos, em particular da catastrófica administração cessante. E é esta a paga?... A Gronelândia?... 

A insuportável Ursula salva pela pneumonia, o não menos insuportável Costa -- o tal que falava em derrotar a Rússia... -- calado que nem um mudo. Eu bem achava que ele nos iria envergonhar a todos...

Os palermas dos governantes suecos (200 anos de neutralidade deitados para o lixo) e finlandeses (que prosperaram grandemente com a neutralidade em face da União Soviética, foram meter-se na boca do lobo.

Agora aguentem-se.

Gunar Letzbow / Ars Antiqua Austria, «Karneval in Kremsier - Intrada» (Biber)

Ella Fitzgerald, «Cheek to Cheek»

sábado, janeiro 11, 2025

por aí


Igor Stravinski, por Gjon Mili (1957)

 

sexta-feira, janeiro 10, 2025

sobre o aborto, é simples: sou radical

1. Qualquer mulher adulta que se veja confrontada com a necessidade de fazer um aborto, lamenta-o profundamente, o mesmo se passando com qualquer homem decente. Tal não sucedendo significa psicopatia ou atraso mental severo. Nenhuma mulher mentalmente sã faz um aborto -- é um lugar-comum, de tão verdadeiro.

2. Vivemos num estado laico, felizmente. E como Deus não existe -- a não ser em cabeças frágeis ou simples --, o papel das igrejas deve ser o que está reservado aos seus aderentes, e ponto final. Cada maluco com a sua mania. A Igreja Católica só tem valor para mim, enquanto instituição histórica que está na génese do estado e da nação portugueses, quanto ao resto, interessa-me tanto ou menos que o Benfica ou o ACP. Ter devotos a legislar e a interferir é uma aberração que nos põe ao nível dos aiatolas ou daqueles primitivos que matam e morrem em nome de "Deus".

3. A continuação ou interrupção de uma gravidez por parte de uma mulher adulta é uma questão que só a essa deve respeitar, e na qual nenhum homem deveria ter possibilidade de decisão, técnica, legislativa e muito menos referendária. Claro que defendo a objecção de consciência, que, constituindo-se em problema, cabe ao Estado resolver, respeitando a liberdade de todas as partes. mas não suporto ouvir para aí os beatos a referirem-se aos direitos da mulher, do feto, etc. Um assunto de mulheres é só com as mulheres. Estando em causa compromissos de um casal, não sendo respeitados, o casal separa-se. Nenhuma coerção sobre qualquer mulher e o seu corpo é aceitável. É tão simples.

(a propósito disto)

2 versos de Carlos Queirós

«Ouvir a tua voz, outrora, era o bastante / Para sentir, enfim, justificada, a vida;» 

«Uma história vulgar», Desaparecido (1935)

o que está a acontecer

«Pesadas tapeçarias mascaravam vãos de portas e janelas e das paredes pendiam, entre reproduções de baixos-relevos, de vias sacras, de crucifixos e painéis de azulejos, encarquilhadas telas de fundos negros, onde se salientavam, em luz de catacumba, macerações lívidas de ascetas ou vinolências cruas de mitrados.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

«Ofereço, porém, as minhas primeiras letras ao padre Coriolano, porque, sem ele, meu tio amado, eu seria ainda hoje tão bronco como o Venâncio Dias, do rancho de Santa Engrácia, ou como o José Taborda, da cordoaria. / Outros livros virão, nítidos e pensados; e, dentre eles, escolherei o mais digno dos vossos merecimentos.» Coelho Neto, A Capital Federal (1893)

«Poisou em cima duma fraga, ligeiro como um tira-olhos. Mas novo pé-de-vento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a aleta, tomando-se de imprevisto fôlego, arrebatou-o para mais longe. Foi cair numa mancheia de terra, removida de fresco pelos roçadores do mato, e ali permaneceu à espera que pancada de água ou calcanhar de homem o mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo não o avistasse e engolisse.» Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães (1957)

quinta-feira, janeiro 09, 2025

Crosby, Stills, Nash & Young, «Helpless»

diários

.../... «Na realidade, Benes, reflecte nesse livro -- testemunho viril duma época de renúncia e eclipse -- toda a evolução da vida europeia e da inteligência universal: primeiramente, o advento do pensamento democrático nos alvores helénicos e enciclopedistas, todo ele imbuído do puritanismo liberal; a seguir, as lutas pela consolidação orgânica dos anseios populares após a guerra de 14-18 e, finalmente, o panorama exacto da evolução dos princípios a caminho duma Democracia económica e social que não desprezasse o respeito e a dignificação da pessoa humana.» .../... Vasco da Gama Fernandes, Jornal (1955)

.../... «Subimos depois a escala da evolução urbana, paralela à escala da evolução social, e queremos fixarmo-nos no valor simbólico que dá tipo e localização a esta grande cidade do planeta. E de novo a pergunta ocorre às nossas conjecturas: -- Onde é, onde está Paris?» .../... António de Cértima, Doce França (1963)

.../... «Mesmo que não falemos de nós (é-me difícil falar de mim). Aliás como os outros, desconheço-me. Talvez, também porque me evito. A verdade é que quando me encontro bem pela frente, reconheço-me intragável. Mas enfim as virtudes são também desgostantes. De resto, sou pouco abonado.» .../... Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 1 - (1969-1976) (1980)

2 versos de Cesário Verde

«Os ares, o caminho, a luz reagem; / Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;» 

O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)

quarta-feira, janeiro 08, 2025

o triunfo do conselheiro Acácio

O Panteão Nacional é demasiado acanhado para Eça de Queirós. Sim, é verdade, estão alguns dos muito grandes, por exemplo génios como Aquilino Ribeiro e Amália Rodrigues, a quem os portugueses devem tanto como ao grande romancista, enorme cronista e incomparável estilista. No entanto, para além de faltarem por lá muitos, outros há que não se percebe por que lá repousam, para além das comezinhas circunstâncias políticas, que, a propósito, o mesmo Eça detestava -- para não falar das comezainas dos novos-ricos hi-tech.

Mas nem é uma questão de companhias: quando Camilo passar ao Panteão, o que a partir de agora se torna obrigatório, ou Júlio Dinis -- e assim lá estarão reunidos os três grandes romancistas portugueses do século XIX --, não serei eu quem irá contestar a decisão. Mas os autores de Amor de Perdição  e A Morgadinha dos Canaviais são outra loiça, e por sinal bem diferente entre si, felizmente -- e viva a diversidade...

O problema é que trasladar Eça de Queirós para o Panteão, além de ser ridículo, depois de há pouco mais de trinta anos os restos mortais estarem por um triz destinados à vala comum -- não fora o alerta da imprensa --, o seu espírito crítico e com pouca paciência para os arrivismos protagonizados pelo pessoal político, a politicalha monárquica ou a jacobinagem republicana, obrigaria a que se usasse de parcimónia no estadulho deputo-ministerial que se vai empoleirar no frágil esqueleto. Que parte da família em sequer o tenha percebido é quase grotesco, mas também não é de admirar -- refrão: "Como és belo, meu Portugal", canta, irónico e sarcástico, Luís Cília... 

Há pessoas, há espíritos, há intelectos, há sensibilidades incompatíveis com tanto conselheirismo. Antero de Quental é outro caso de incompatibilidade com o Panteão (ainda por cima com o Teófilo por perto, o parvónio, como lhe chamava...) Ponham lá o Cesário Verde e o António Nobre, ainda maiores poetas do que o divinalmente furibundo Antero, que jaz em paz em Ponta Delgada. 

Ou o José Afonso, outro para quem o edifício de Santa Engrácia seria como se jazesse no gavetão das luminárias nacionais. Como se poderia fazer do homem que revolucionou a nossa música, miscigenando-a, ele próprio um revolucionário limpo, num berloque da pátria? 

Antes a vala comum, para onde deixaram ir o Bocage -- sabendo-se nessa altura quem  e o que era Bocage, destino de que Eça se salvou, por um triz. ( refrão: "Como és belo, etc.)

Mas o povo fica feliz -- excepto os bairristas de Baião (ai o turismo...) -- e os acácios impantes, com o assuntozinho despachado, e ala que se faz tarde para a açorda. 

2 versos de Armando Taborda

«mas é de sons / que a escrita é feita.» 

Palavras, Músicas e Blasfémias que Envelheço na Cidade (1986)

terça-feira, janeiro 07, 2025

4 versos de Camões

«E enquanto eu estes canto, e a vós não posso, / Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, / Tomais as rédeas vós do Reino vosso: / Dareis matéria a nunca ouvido canto.» 

Os Lusíadas, I-15 (1572)

segunda-feira, janeiro 06, 2025

Nat Adderley, «The Folks Who Live on the Hill»

2 versos de José Régio

«A culpa é toda minha, / Se a vida não é bela!» 

«O fértil desespero», As Encruzilhadas de Deus (1936)

o que está a acontecer

«Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista! // Precipitado tão de alto do pinheiro solitário, balançou-se num instante e ensaiou um voo oblíquo. A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral.» Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães (1957)

«Entretanto, Luciano, arrancando-se à enlevada adoração, despegou-se da janela e foi sentar-se a uma antiga escrivaninha, remexendo febrilmente pastas repletas de papéis. / O recinto revelava, na verdade, extravagante interior de artista.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

«Meu tio, // Há neste livro páginas que vos pertencem, porque eu nunca as teria escrito se a minha Boa Sorte me não tivesse guiado para o retiro de ascetismo voluptuoso onde viveis, em beato sossego, praticando a moral divina de Epicuro e cuidando flores; outras há, e profusas, derivadas da sabedoria fecunda do dr. Gomes, de quem guardo saudades e conceitos; outras, finalmente, que seriam dedicadas à Jesuína se o escrúpulo não existisse na moral privada.» Coelho Neto, A Capital Federal (1893)

domingo, janeiro 05, 2025

estampanços


Francesco Francavilla

 

o que aconteceu

«Para tomar o comboio em Lamares, que ficava a quinze quilómetros de distância, era-lhe preciso atravessar o aberto cenário onde tinha mourejado sonhadoramente: searas espessas de trigo a ondular, sobreirais pardos de tristeza e pousios de esteva florida, babada de mel e de mormaço.» Miguel Torga, O Senhor Ventura (1943)

«--Vi-o! / Também a senhora Emília, cada vez mais apagada e humilde, o espera com o olhar que revela um peso insuportável. / Sentada no lar, não tira os olhos de Fortunato. Vai-lhe falar? Não se atreve. Não bolem, ele negro e curvado, ela em frente com a boca sumida e as cinzas frias ao meio dos dois a separá-los. Amar não é nada. Amar na dor e na desgraça é que é a lei suprema da vida.» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931)

«Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso -- como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus.» Eça de Queirós, O Mandarim (1880)

"Entre Aspas, «Gin»

sábado, janeiro 04, 2025

o que está a acontecer

«1. O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Voltou a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se.» Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães (1957)

«Ao Revm. padre Ambrósio Coriolano d'Anunciação Lousada, vigário em Tamanduá, como humilde testemunho de gratidão, pelos severos conselhos com que fortaleceu o meu espírito e pelos cascudos com que me abriu a cabeça para que nela entrassem as regras de concordância e os versos de Virgílio, ofereço este livro. // Tamanduá, em Minas -- Janeiro, 93» Coelho Neto, A Capital Federal (1893)

«Dia de calor. Paz à nossa volta. Encontrámo-nos ali sem combinar, um daqueles hábitos que nunca se sabe bem porque começam, talvez por acaso ou pelas razões ocultas que umas vezes nos levam a buscar companhia e doutras nos empurram para a solidão.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003)

sexta-feira, janeiro 03, 2025

Norman Granz Jam Sessions, «Jam Blues»

fragmentos

«A tarefa do crítico é facilitada quando não se trata já duma primeira obra. Uma frase resolve tudo: "É pior que a anterior".» José Bacelar, Revisão 2 -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana (1936)

«Ibsen diz-nos em Brandt ou Solness, não me recordo bem: "O que és, deves sê-lo em cheio". És um carpinteiro, um negociante, um pianista ou mesmo um trampolineiro? Sê-o em cheio, completamente. O que tem estragado a vida a muita gente, é o não terem sido nada, a valer. Sempre amadores em tudo, na mesquinha preocupação das almas fracas, de quererem equilibrar, contemporizar, contentar D. Quixote e Sancho Pança, nunca se atrevendo a ser um ou outro e a viver plenamente dentro do caminho traçado. Assim deslizam pela vida, ora recuando de Quichote para Sancho, ora avançando deste para aquele, sempre a procurarem-se sem nunca se encontrarem, sempre a procurarem ser e nunca conseguindo senão parecerEmílio Costa, «A esmo», Filosofia Caseira (1947)

«Luz e trevas são a mesma coisa, em ambas reside a mesma energia. Quem possui ouro no seu âmago tem de aprender a trabalhar com ele, para que as outras pessoas consigam ver que, por trás da aparente escuridão, existe um ser de luz, um ser luminoso. A luz vem das trevas, pois é aí que nasce a luz.» Rui Chafes, «O perfume das buganvílias»Entre o Céu e a Terra (2012)

4 versos de Carlos Queirós

«Um violino geme / Em um barco, singrando / No meu sonho, tão brando / Como a curva do leme.»

«Barcarola», Desaparecido (1935)

ucraniana CCLXXVII - o major-general chama-lhes ignorantes e, por outras palavras, estúpidos; eu acrescento: impostores, vigaristas, farsantes e um longo etc.

 Carlos Branco: "Actos de ignorância e intransigência cognitiva".

quinta-feira, janeiro 02, 2025

1 verso de José Régio

«Ter de mais que dizer... ah, que maçada e que agonia!»

«O papão», As Encruzilhadas de Deus (1936)

"Seja muito bem-vindo Presidente Xi!". disse então Marcelo

Estou perplexo com a mensagem de Ano Novo do Presidente da República, no que respeita à  política externa (deposi, confesso que perdia a atenção). Ver o chefe do estado apontar a China como ameaça, assim às claras, fazendo todos os fretes a países estrangeiros e dizendo nada ao interesse nacional, lembrou-me a calorosa recepção há uns anos a Xi Jinping. Interessava, porque estávamos de mão estendida? É para um tipo sentir-se envergonhado.

Para não falar da questão Russa, como se alguém tivesse perguntado alguma coisa ao PR -- e se alguém perguntou, não foram decerto os portugueses. Finalmente, no que respeita ao interesse nacional e às nossas boas relações com os Estados Unidos, que dada a vizinhança atlântica são do nosso interesse, o Presidente deve ter-se esquecido que a presidência mudou, embora não mude o desejo de vassalagem. Se Trump tirar o tapete a Zelensky, o que dirá Marcelo? Não será difícil tentar adivinhar.

Tudo isto é revelador de uma falta de dimensão e de sentido de estado que não nos deve admirar que outros políticos, entretanto guindados a funções internacionais, não passem de anões funcionais. 

quarta-feira, janeiro 01, 2025

King Oliver's Creole Jazz Band, feat. Louis Armstrong, «Canal Street Blues»

2 versos de José Pascoal

«Os meus desígnios são insondáveis. / É a minha única parecença com Deus.» 

«Imagem e semelhança», Sob Este Título (2017)

começar o ano a ver comer gelados com a testa - a propósito da Geórgia

Chegado a casa, ligo para RTP2, está a falar João Oliveira, no programa "Eurodeputados". João Oliveira, recorde-se, em quem gratamente votei nas últimas Europeias, não sendo do PCP, longe disso -- sou sempre libérrimo para votar como e em quem me apetece. 

E que refrescante foi ouvi-lo, não só em resposta às perguntas inquinadas da simpática Fernanda Gabriel, mas nos comentários aos jovens colegas do PS e do PSD, estes munidos de toda a prosápia bebida nas escolas das juventudes partidárias, mas ignorantinhos (não têm idade para ignorantões), a debitar a sebenta com mais ou menos fluência, e a dizer asneiras, quer sobre a pretérita "invasão" russa -- que mais não foi que uma resposta à de facto invasão georgiana, decorria a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, lembro-me bem --, quer agora sobre as eleições no país, reconhecidas como válidas pela OSCE. 

Bom, nada disto é novidade, nem a inexistência neste debate de Catarina Martins, que quer ser muito anti-nato, mas quando é para retirar todas as consequências, dá uma no cravo e outra na ferradura, outra coisa não seria de esperar. Nisto como em muitas coisas o Bloco não serve para nada -- ou então serve para tirar fotografias de grupo com o Chega à ilharga no meio do Santos Silva, que deus tem.

Uma das coisas de que gosto em João Oliveira é que, sem perder nunca a compostura, chama os bois pelos nomes todos, cheio de determinação, o que obriga os contendores a enterrarem-se mais na asneira ou então a proferirem frases vazias de tão lindas, como as de Catarina Martins. 

Meu rico voto, tão bem empregue -- até limpa a alma, caralho!...

Vale a pena ver aqui.