«Mas quem é que Vos invoca se antes Vos não conhece? Esse, na sua ignorância, corre perigo de invocar a outrem -- Ou porventura, não sois antes invocado para depois serdes conhecido? "Mas como invocarão Aquele em quem não acreditaram? Ou como hão-de acreditar, sem alguém que lhes pregue?"» Santo Agostinho, Confissões (397-400) - trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina § «E quando eu era ainda um menino de oito anos, atribuíram ao meu pai certas sangrias mal feitas, nos sacos dos que vinham ali moer, pelo que foi preso, e confessou em vez de negar, e sofreu uma pena por justiça. Espero em Deus que esteja em glória, pis aos do género dele o Evangelho chama bem- aventurados.» Anónimo, Lazarilho de Tormes (1554) - trad. Ricardo Alberty
sábado, junho 21, 2025
sexta-feira, junho 20, 2025
2 versos de Fernando Namora
«Palavras foram o vinho / de uma sede inventada.»
«Palavras», Marketing (1969)
o que está a acontecer
«E fiz este assento, que assinei -- Filipe Moreira Dias. // À margem esquerda deste assento está escrito: // Foi para a Índia em 17 de Março, de 1807. // Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo de um moço de dezoito anos lhe há-de fazer dó.» Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição (1862)
quinta-feira, junho 19, 2025
zonas de conforto
José Régio: «Uma luz vermelhentada tosquenejava triste no escuro; e dir-se-ia que ninguém mais saíra nessa estação deserta e lúgubre, perdida em distâncias que a Rosa Maria nem pareciam Portugal.» Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941) § Augusto Casimiro: «Que o Amor da tua terra seja o Amor de toda a Terra, resumido mas purificado para realizar-se melhor.» O Livro dos Cavaleiros (1922) § Fialho de Almeida: «Pois estas analogias tão nebulosamente poéticas, este ar de família que as coisas brutas conservam das coisas vivas, não as pensem casuais ou fantasiosas: está provado que resultam duma ascendência logicamente propulsionada, com sua biografia, sua evolução, caracteres herdados, e mais ainda, vícios transmitidos.» O País das Uvas (1893) - «Pelos campos» § António de Cértima: «No entanto, no nosso espírito não deixa de tomar forma a ideia de que o verdadeiro Paris não vive aqui, apegado aos substratos das margens do Sena, mas sim espalhado por continentes e nações na pessoa de todos os artistas, de todos os intelectuais e de todos os sábios que se têm alimentado da sua cultura e das claridades do seu génio. / Paris, uma cidade? Não, uma expressão espiritual do orbe.» Doce França (1963) § Frei João Álvares aos monges do Paço de Sousa (24-XII-1467): .../... «E mal pecado, porque somos em tal ponto que os nossos rectores e os que nos hão-de governar mais atendem a nos trosquiar que nos aproveitar.» .../... in Andrée Rocha, A Epistolografia em Portugal (1965) § Machado de Assis: «Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada.» Histórias sem Data (1884) - «Cantiga de esponsais»
o que está a acontecer
«I-I - Quem, de longe, remire Alfamar, cada renque horizontal das suas casas brancas como a escalar os dois regaços do cerro intonso e altaneiro que um castelo de traça mourisca ainda hoje simula proteger -- ajuizará sobre o desafogo de vistas dessa vila algarvia, a várzea, que ostenta à ilharga, engalanada com a vegetação das hortas bem cultivadas e sortidas.» Assis Esperança, Pão Incerto (1964)
«1. Empurrados do interior, os povos buscavam o litoral na esperança de uma mandioquinha, de um caldinho de peixe, de um cana para chupar, ou de folhas verdes para mastigar. Qualquer coisa que lhes desse, ao menos, a ilusão de alimento. Mas nas povoações da beira-mar, mesmo nas terras maiores, os haveres tinham sido também arrasados pelos ventos da miséria.» Manuel Ferreira, Hora di Bai (1962)
«A SEARA - A festa -- 1. O vento arrastou as nuvens, a chuva cessou e sob o céu novamente limpo as crianças começaram a brincar. As aves de criação saíram dos seus refúgios e voltaram a ciscar no capim molhado. Um cheiro de terra, poderoso, invadia, tudo, entrava pelas casas, subia pelo ar.» Jorge Amado, Seara Vermelha (1944)
«Escolhera o mestre do barco aquela noite negra, para que a Lua não assistisse à largada. Também não compareceram as estrelas, com grande contentamento do velho João Frade, posto lhes quisesse muito, mas no alto, em plena derrota, para conversar com elas sobre coisas noutros tempos acontecidas, já que sem idade para sonhar com vida nova.» Joaquim Lagoeiro, Viúvas de Vivos (1947)
quarta-feira, junho 18, 2025
2 versos de Arnaldo Santos
«Não sei se as dálias eram sonhos / Crescendo por acaso no carreiro...»
«Passeio», Fuga (1960)
terça-feira, junho 17, 2025
o rei dos salamaleques
Nisto, ele está sempre a jogar em casa.
2 versos de José Agostinho Baptista
«entretanto alguma coisa se passou que ultrapassa a / excessiva solidão do poema.»
«A Maria C.», Deste Lado Onde (1976)
segunda-feira, junho 16, 2025
os meus desejos para esta guerra
Do que eu gostaria mesmo mesmo era que o Netanyahu levasse com um míssil nos cornos.
Depois, o regime dos aiatolas poderia cair, e o Irão tornar-se algo mais digno dos seus milénios, uma sociedade sem discriminação das mulheres -- muito acima da condição geral das mulheres árabes, apesar de tudo --;
e de preferência sem o descendente do pseudo-Xá, filho de um militar de baixa patente que através de um golpe de estado, apeou os verdadeiros reis da Pérsia e se entronizou a si próprio.
2 versos de Rui Knopfli
«Atiramos pedras pr'além do muro / e escutamos o som opaco da queda.»
«Tédio», O País dos Outros (1959)
domingo, junho 15, 2025
alhures
«Tanto eu como Gertrude Stein examinámos as últimas obras de Picasso cuidadosamente e Gertrude Stein foi de opinião que "a arte era mera expressão de algo". Picasso discordou e disse: "Deixem-me em paz. Estava a comer." Na minha opinião Picasso tinha razão. Estava mesmo a comer.» Woody Allen, Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura (1966) - «Memórias dos Anos Vinte» - trad. Jorge Leitão Ramos § «Os polícias transpiram, rosnam e praguejam. As matracas erguem-se e baixam-se sobre o homem sem liberdade. / Na cela há cinco polícias fortes e um preso. // Para principiar, torceram-lhe os braços até estalarem as articulações. Bateram-lhe na cabeça com as matracas. Depois, deram-lhe valentes pontapés, ao acaso.» Michael Gold, Para a Frente, América... -- «Cárcere» (trad. Manuel do Nascimento) § «Não me perguntes o que foi feito da rapariga porque perdi a sua morada. Não imaginas o tempo que já perdi à procura dela! Daqui vem a minha doença. Quando te conheci acabava de ler o último nome da lista dos telefones deste ano. De repente reparei que te parecias muito com a mocinha de atrás dos arbustos e perguntei-te:» Félix Cucurull, «Carta de despedida», Antologia do Conto Moderno - trad. Manuel de Seabra § «O meu pai, que Deus lhe perdoe, estava encarregado da moenda de uma azenha que fica à beira daquele rio, onde foi moleiro mais de quinze anos. E estando a minha mãe uma noite na azenha, pejada de mim, vieram-lhe as dores do parto e pariu-me ali mesmo. De maneira que posso em boa verdade dizer que nasci no rio.» Anónimo, Lazarilho de Tormes (1554) - trad. Ricardo Alberty. § «Todavia, esse homem, particulazinha da criação, deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto enquanto não repoisa em Vós. / Concedei, Senhor, que eu perfeitamente saiba, se primeiro Vos deva invocar ou encomiar, se, primeiro, Vos deva conhecer ou invocar.» Santo Agostinho, Confissões (396-400) - trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina
o que está a acontecer
«E lá ia, que remédio!, de balde ao ombro, a espreitar alguma maracha que precisasse de engravatada, por oscilação de terras, ou canteiro mais soberbo por desequilíbrio da gleba. Bem regara aquela maldita com o seu suor; longas horas de repouso tinha perdido à sua volta. Mas também a alegria de ver todo o arrozal farto de espigas o dava por bem pago no fim do contrato.» Alves Redol, Gaibéus (1939)
«Porque diabo este pacóvio largou tudo e abalou também? / E os outros, -- toda a malta da terceira, imunda, sórdida -- miseráveis, porque trocam a sua pobreza livre pela escravidão? E eu?» Joaquim Paço d'Arcos, Diário dum Emigrante (1936)
«Às quatro paredes brancas, seguiam-se a capoeira da criação e o quintal, mui cultivado, muito verde -- as couves gordas, os feijoeiros abraçados às estacas e as ervilhas cheias de garridice por terem flores como violetas.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)
sábado, junho 14, 2025
sexta-feira, junho 13, 2025
4 versos de Carlos Queirós
«Viver! -- O corpo nu, a saltar, a correr / Numa praia deserta, ou rolando na areia, / Rolando, até ao mar... (que importa o que a alma anseia)? / Isto sim, é viver!»
«Ode Pagã, Desaparecido (1935)
quinta-feira, junho 12, 2025
oscinco bateristas de Ian Paice
há 150 anos com as mãos nos bolsos
Faz hoje 150 anos que o genial Rafael Bordalo Pinheiro criou o Zé Povinho, caricatura do povo português, que ficou sem o que fazer depois da independência do Brasil. Gonçalo Mendes Ramires bem sugeriu África como remédio para a apatia, mas já era tarde. Bordalo pertencia a essa Geração de 70, a mais crítica da nossa contemporaneidade -- Santo Antero, papá Eça, avô Ramalho, tio Joaquim Pedro, philosophe...
Queriam-nos mais europeus, sem deixarmos de ser portugueses. Os mais expeditos, ambiciosos, aventureiros emigraram; os outros ficaram, agarrados à enxada. Salazar ajudou bastante, até que, faz hoje quarenta anos, Mário Soares assinou a nossa inevitável adesão à CEE, no claustro dos Jerónimos
Imagem magnífica a da cerimónia no vetusto monumento doutras eras, e também túmulo do venturoso Manuel I: o que éramos e o que queríamos ser. Numa geração, passámos da enxada ao 5G.
Como escreveu o Almada Negreiros, "Coragem portugueses", etc.
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Rui Ochôa |
2 versos de José Régio
«Quando eu me poupe a falar, / Aperta-me a garganta e obriga-me a gritar!»
«Invocação ao meu anjo», As Encruzilhadas de Deus (1936)
quarta-feira, junho 11, 2025
bandidos à solta
São pequenas aberrações, larvas para extermínio antes que se desenvolvam. A polícia deve saber onde param, nas claques dos futebóis, por exemplo, mas não só. Atacaram em grupo, como é timbre destes cobardes, que se dizem nacionalistas, mas aposto que cada-palavra-cada-erro. Nacionalistas, dizem-se, pobres diabos, que atacam o actor Adérito Lopes, que, n'A Barraca, sob a direcção de Maria do Céu Guerra, interpretava o papel de Camões no Dia de Camões. Nacionalistas de caricatura cujo grupo se autoidentifica com um nome inglês... Trinta anos depois de o pacato Alcindo Monteiro ser assassinado por criaturas destas.
"Remigração", parece que estava escrito nos papelotes que estes inúteis deixaram no local do crime. Compreende-se, têm medo que o RSI não dê para todos... "Remigração" é também uma palavra usada pela cúpula do Chega, o segundo partido da parvalheira. Les beaux esprits...
Grande admiração pela classe de Maria do Céu Guerra, enorme!, no modo como se refere ao sucedido; e elogio claro a Carlos Moedas, que logo se deslocou ao local, dizendo que "isto não pode acontecer"! (Estou-me nas tintas se estamos em pré-campanha.) Pois não pode... Isto não é caso de polícia, mas de contraterrorismo. Têm os meios, mexam-se!...
4 versos de Camões
«A noite se passou na lassa frota, / Com estranha alegria e não cuidada, / Por acharem, da terra tão remota, / Nova de tanto tempo desejada.»
Os Lusíadas, I, 57 (1572)
o que está a acontecer
«A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete.» Eça de Queirós, Os Maias (1888)
«I. Óbito do autor. Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
«Debalde muitos homens de génio revestidos da autoridade suprema tentaram evitar a ruína que viam no futuro: debalde o clero espanhol, incomparavelmente o mais alumiado da Europa naquelas eras tenebrosas e cuja influência nos negócios públicos era maior que a de todas as outras classes juntas, procurou nas severas leis dos concílios, que eram ao mesmo tempo tempo verdadeiros parlamentos políticos, reter a nação que se despenhava.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)
terça-feira, junho 10, 2025
2 versos de Florbela Espanca
«Desde que o meu bem partiu / Parecem outras as cousas:»
in «Trocando Olhares», Antologia Poética
o que está a acontecer
«Vendo-o assim, "Piloto" hesitou um instante, enquanto agitava mais a cauda e tremuras de alegria lhe percorriam o corpo. Logo se decidiu. E, humilde, foi colocar o focinho sobre a coxa do amo, como era seu costume, quando este o chamava, à hora da comida, nos dias em que os dois andavam pastoreando o gado, lá nos picarotos da serra.» Ferreira de Castro, A Lã e a Neve (1947)
«Quando o chefe voltou, depois do expediente e do sinal de partida, padre Dionísio, que aguardara solitário relanceando morosamente a vista, saiu-lhe ao encontro e inquiriu se não viera ao comboio qualquer pessoa da herdade dos Cardeais-» Manuel Ribeiro, A Planície Heróica (1927)
«Em 1875, nas vésperas de Santo António, uma desilusão de incomparável amargura abalou o meu ser; por esse tempo, minha tia D. Patrocínio das Neves mandou-me do Campo de Santana, onde morávamos, em romagem a Jerusalém: dentro dessas santas muralhas, num dia abrasado do mês de Nizam, sendo PONCIUS PILATUS procurador da Judeia, ELIUS LAMMA legado imperial da Síria e J.-KAIAFA Sumo Pontífice, testemunhei, miraculosamente, escandalosos sucessos: depois voltei -- e uma grande mudança se fez nos meus bens e na minha moral.» Eça de Queirós, A Relíquia (1887)
segunda-feira, junho 09, 2025
amanhã é feriado, vou perguntar ao Zelensky se está bom no Guincho
Nos canais de bardanotícias aqui da parvónia, o Zelensky continua a ser um Churchill -- como disse, certo dia, o Fareed Zakaria... pouco importa que tenha sido uma marioneta de americanos e britânicos contra os ucranianos e com isso tenha deitado o seu país a perder, em função dos interesses americanos e não só (lembremos o papel de duas abjecções como Joe Biden e Boris Johnson no prolongar da guerra, para esvair a Rússia -- o verdeiro objectivo -- quando da primeira tentativa de acordos de paz).
Não especulo sobre as intenções deste bicho, se vai morrer de armas na mão, como seria sua obrigação, depois do mal que tem feito, ou se há alguma ponta de verdade no que dizem os seus detractores, sobre um eventual e bem esportulado enriquecimento ilícito -- não vou por aí, não me interessa, nem sequer é preciso...
Basta dizer que à conta da criatura e de quem a sustenta, a Ucrânia está como está, e a caminhar para muito pior. Mas, não contente com isso, seguindo à risca o gizado pela trupe neo-con do lado de lá do Atlântico, tem procurado, desde o princípio, envolver-nos a todos na guerra -- o que só não conseguiu ainda, não por bom-senso das lideranças europeias (meu deus, a nulidade do Costa, parece que engenheiro de pontes, é presidente do Conselho Europeu...), mas porque ainda não puderam. Mas há quem não descanse enquanto tal não suceder, não só do lado de lá, como, pasme-se, do lado de cá do Atlântico. Que imbecis, que vigaristas...
Para as notícias dos bardacanais, e os zeros que os dirigem, Zelensky, em vez de a sua acção ser abordada segundo um prima jornalístico (chamam àquilo jornalismo, certo?) -- ou seja: um político apanhado em determinadas circunstâncias, reagindo melhor ou pior de acordo com elas, o que nos dão é uma caricatura de propaganda reles, em que cada espirro e cada flato que o homem emane equivale a um tratado de clarividente liderança; ele tudo sabe, tudo vê, é um predestinado, um Churchill.
2 versos de Cesário Verde
«Se eu não morresse, nunca! E eternamente / Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!»
«O sentimento dum Ocidental - IV. Horas mortas», O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)
sábado, junho 07, 2025
sexta-feira, junho 06, 2025
ucraniana CCCXCI - o jornalismo por e para atrasados mentais - e começa no título
É da prestimosa cnn-Portugal, e reza assim: "Rússia lança um dos maiores ataques aéreos de sempre contra civis depois do ataque da Ucrânia aos bombardeiros russos".
Vejamos: "Rússia lança um dos maiores ataques aéreos de sempre". O cidadão comum que se aflige com a guerra, embora tudo aquilo o ultrapasse (questões políticas, económicas, culturais, militares -- geoestratégicas, em suma), depois de sujeito à propaganda esmagadora que os do seu lado lhe impingiram, hecatombes russas, baixas sobre baixas, etc., fica de pulga atrás da orelha quando lê, ao fim de 18 pacotes de sanções, que a Rússia lança "um dos maiores ataques aéreos de sempre". Sente-se estúpido, enganado, não acredita no que vê e lê, e já desconfia das próprias imagens. Bravo, "jornalismo"!
E contra quem lança a Rússia este poderosos ataques aéreo: "contra civis", pois claro -- não há-de escapar um ataque com míssil hipersónico contra qualquer jardim infantil; há três anos e meio que os russos declararam guerra contra creches, hospitais, parques infantis, lares da terceira idade, canis, num genocídio atroz...
Vamos ler a "notícia" e quantas vítimas resultaram de "um dos maiores ataques de sempre contra civis"?: "pelo menos quatro mortos". Se eu fosse um palestino de Gaza, ou habitante do Rio de Janeiro, quereria rapidamente procurar refúgio na Ucrânia.
Palma-cavalinhos que não se enxergam; são tão estúpidos, ó valha-me deus!...
5 versos de Arnaldo Santos
«Cansados / Mansamente / Escondendo-se no crepúsculo de uma esquina. // Escondiam-se do mundo / E de si próprios.»
Fuga (1960)
quinta-feira, junho 05, 2025
não vejo retrocesso nenhum na Cultura
Ao contrário do que defende um pensador de alto coturno, não vejo retrocesso nenhum na pasta da Cultura. Onde antes estava uma nulidade política e um equívoco, está agora uma dirigente nacional do partido no poder. Claro que não tem a dimensão cultural de um David Mourão-Ferreira, de uma Gabriela Canavilhas, ou uma visão de largo espectro como Lucas Pires, Manuel Maria Carrilho ou Pedro Adão e Silva. Mas tem uma ou duas coisas que faltam a muitos: tem poder e não está confinada aos nichos da 'cultura'. Se tiver alguma substância (que até parece ter, independentemente de parecer deixar-se contaminar por wokismos saloios -- deve ser da idade), poderá fazer um lugar aceitável. Logo veremos se não será outro Santana Lopes, politicão e popularucho. O facto de ter acoplado o desporto e a juventude, no primeiro caso, um sec. de estado chega; no segundo, as grandes decisões nunca passam por ali.
a cobardia de Portugal -- que vergonha, que vergonha, como nos envergonham!
Nem se trata deste governo em particular. Depois de Espanha, Eslovénia e Irlanda terem reconhecido o Estado palestino (nem falo no Brasil, que o fez há anos, na primeira presidência de Lula, creio); nem com a prática de genocídio: a morte indiscriminada, a fome usada como arma aos olhos de todos, ninguém em lado algum se admiraria que Portugal fizesse o que é justo, com as facilidades que o criminoso Netanyahu e o seu governo fora-da-lei nos tem dado.. Mas não, os primeiros-ministros que temos tido só mostram medo -- medo de irritar os americanos, ou até os ingleses quem sabe (li algures que Malta, o país mais pequeno da UE se prepara para fazê-lo).
Venham cá falar do Putin, grandes vigaristas!...
Como é possível um país com a história de Portugal e com a sua cultura, descer tão baixo? Como é possível diminuirmo-nos assim? Como podem politcóides de meia-tigela que elegemos desbaratar a história que temos, os nossos recursos históricos e diplomáticos. Que voz não poderíamos ter no mundo. mas temos isto, claro. Governos cobardes, um povo amarfanhado, como convém.
Que vergonha olhar para isto tudo...
4 versos de Armando Taborda
«banco de jardim ao sol onde me sento / espero que a morte me leve / à velocidade da luz / para a explicação da vida»
Palavras, Músicas e Blasfémias que Envelheço na Cidade (1986)
quarta-feira, junho 04, 2025
3 versos de José Pascoal
«Sei de nomes e de rostos que conheço, / E daqueles, também, que desconheço, / E que tudo tem fim no seu começo.»
«Oração de sapiência», Sob Este Título (2017)
terça-feira, junho 03, 2025
2 versos de Carlos Queirós
«E escravo, como sempre me encontraste, / Do mais breve sorriso que tu esboces.»
«Frivolidade», Desaparecido (1935)
o que está a acontecer
«Decidi compor, nos vagares deste verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes de Lindoso), as memórias da minha Vida -- que neste século, tão consumido pelas incertezas da Inteligência e tão angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra, penso eu e pensa o meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte.» Eça de Queirós, A Relíquia (1887)
«Nenhum outro passageiro descera. Dois homens rústicos, tipos de guardadores de gado, de mantas e safões de pele de ovelha, ostentando militarmente cajados altos como armas em descanso, atentaram nele, curiosos, pasmados, mas sem quebrarem suas atitudes rígidas, indiferentes àquele estranho que chegava.» Manuel Ribeiro, A Planície Heróica (1927)
«Horácio estava junto de Idalina, também conhecida de "Piloto"; estavam sentados num dorso de rocha que emergia da terra, ao cabo das decrépitas e negrentas casas do Eiró, no cimo da vila. E tão atarefado parecia Horácio com as palavras que ia dizendo à rapariga, que não deu, sequer, pela chegada do cão.» Ferreira de Castro, A Lã e a Neve (1947)
segunda-feira, junho 02, 2025
debate sobre o controlo da comunicação e das mentes, a propósito da Guerra da Ucrânia -- é claro que vou!
Haverá uma jornalista a moderar, e ainda bem, pois jornalismo é coisa que raramente se viu até agora -- pelo contrário: impreparação, ignorância, desleixo, descaso, mediocridade crassa, enfim. No liceu, tive uma cadeira chamada 'Iniciação ao Jornalismo'. Aí aprendi que o jornalismo deve, por exemplo, reportar ambos os lados de um conflito. Alguém, com excepção de um free lancer, mandou uma equipa de jornalistas ao outro lado?, alguém ouviu os habitantes da Crimeia, do Donbass? A RTP, televisão do estado, é gritante: enviou para Kiev um lamentável pé de microfone da propaganda americana, chamado Cândida Pinto; correu com o rebarbativo Raul Cunha, demasiado inconveniente; convida Agostinho Costa quando o rei faz anos; foram preciso quase três anos de guerra para que uma das vozes mais cultas, críticas e lúcidas (o grande problema é mesmo ignorância e boçalidade cultural) do espaço público, como Viriato Soromenho-Marques, fosse dizer qualquer coisa à RTP, e primeiramente a propósito de outro assunto (as eleições americanas); Carlos matos Gomes, um militar que foi um intelectual esplêndido, além de romancista de alto coturno, nunca lá pôs os pés, que eu saiba (a não ser para falar sobre a Guerra Colonial); Pezarat Correia nunca aparece. Em geral, quem aparece são uns marrões que seguiram a carreira académica, atrasos de vida que lêem imensos papers, lixo igual ao que produzem, ou então não percebem nada do que lhes passa debaixo dos olhos. A generalidade das estações de notícias (a sic e a grotesca parelha Rogeiro-Milhazes, ou a falcoa Vaz Pinto), exceptuando a cnn-Portugal, valha-nos deus, apesar do humorista Botelho Moniz e da inefável Soller, entre tantas outras personagens da carnavalização do comentário geopolítico). Da imprensa escrita e radiofónica, nem se fala.
Por isso, vou fazer o sacrifício de pegar em mim e ir de Cascais a Lisboa -- talvez fique a perceber por que razão o que nos é vendido como jornalismo não passa da negação do próprio jornalismo.
5 versos de José Régio
«Aqui, sentado, / Sobre mim próprio dobrado, / Com livros ao lado, / Canetas e aparos, / Tinteiro e papel timbrado,»
«Caos», As Encruzilhadas de Deus (1936)
uma sociedade doente, desconjuntada e à beira do colapso
Bem pode o ministro do interior francês falar em minoria de bandidos que cometeram os desacatos sexta à noite, em Paris, após a vitória do PSG. O que mostram as imagens, mesmo que se trate de duas ou três ruas em cada cidade, é o mal-estar daquela sociedade, à beira de se desconjuntar. Quem tem andado por lá, pelas ruas, nos transportes, sente-o.
domingo, junho 01, 2025
sábado, maio 31, 2025
sexta-feira, maio 30, 2025
1 verso de Alberto de Lacerda
«Sou uma janela onde se debruçam todas as coisas da vida.»
«Janela», 77 Poemas (1955)
zonas de conforto
José Régio: «Quando já os soluços lhe subiam ao peito, um homem parou diante dela: / --...Camionette... / -- Sim... murmurou entregando maquinalmente as suas coisas. Acompanhando o homem, ladeou o comboio, achou-se em frente da estação.» Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941) § Augusto Casimiro: «O amor da Pátria é a cristalizada síntese do grande Amor humano. O altar mais próximo em que rezas a esse maior Amor para quem a Terra é um templo.» O Livro dos Cavaleiros (1922) § Fialho de Almeida: «Na agitação das populaças que respiram alto, pela noite, entre as flambagens do gás, nos gemidos que os arvoredos soltam, azorragados do nordeste, ou quando a vaga regouga, espadanando contra os granitos da riba, a mesma evocação misteriosa, confusa, mal sonhada, nos surpreende, de vozes que já antes tínhamos ouvido, e agora parecem despertar dentro de nós saudades de idílios extintos e de felicidades mortas em plena adolescência.» O País das Uvas (1893) -- «Pelos campos» § Frei João Álvares aos monges do Paço de Sousa, 24-XII-1467: .../... «Mas empero eu verdadeiramente conheço que de ignorância e de negligência me nom posso escusar porque, nom embargando que eu muito mais pudera fazer do que fiz,, nom sei como pudera ir com elo ata a fim. E às vezes melhor é de não começar homem a fazer alguas cousas quando nom vê como se possam acabar.» Andrée Rocha, A Epistolografias em Portugal (1965) § António de Cértima: .../... «E é aqui, certamente, que tudo o que há de cerebral, de luminoso e de fútil, na permanência dos seus valores e das suas sugestões, se encontra bem marcado, excitante e inamovível.» .../... Doce França (1963) § Machado de Assis: «A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela. Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma cousa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair.» Histórias sem Data (1884) - «Cantiga de esponsais»
quinta-feira, maio 29, 2025
o que está a acontecer
«Do alto daquela Torre. outrora de menagem, estendia-se um país inteiro, seiva virgem de uma nação. Toda a História se abria com a paisagem. Que importava que a Moutosa ficasse ali, riba acima, a vila de Serzedelo mesmo naquele rincão apetitoso de verdura e, lá em baixo, calão, e adormecido, o Lima.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
«I parte - A provação - I. O comboio do sul parou na pequena estação sòzinha, perdida no descampado, entre grandes searas verdes já espigadas. Padre Dionísio, moço e ágil, saltou da 3.ª classe, poisou no chão a leve mala de viagem e olhou em roda, à espera que alguém se lhe dirigisse.» Manuel Ribeiro, A Planície Heróica (1927)
«Forçado a deter-se, ele regava, à esquerda e à direita, rudes pedras, velhos castanheiros, velhos cunhais, mas fazia-o alegremente e com o visível modo de quem leva pressa. Em seguida, voltava a correr no faro do seu dono. Cada vez o sentia mais perto e cada vez era maior o seu alvoroço. Por fim, lobrigou-o.» Ferreira de Castro, A Lã e a Neve (1947)
2 versos de Rui Knopfli
«Os pássaros passam de largo / e recusam-se ao cimento e ao asfalto da cidade hostil.»
«Kwela para amanhã», O País dos Outros (1959)
quarta-feira, maio 28, 2025
ucraniana CCCXC - Trump a ladrar, e aí está Medvedev
Era até previsível. Trump não se contém, Medvedev, que diz o que Putin não deve dizer, manda-o para a casota.
Como ainda ontem escrevi, no que respeita à sua segurança e soberania, a Rússia marimba-se para a qualidade do presidente americano que tem pela frente. Assim é, assim continuará a ser -- até porque a Rússia continua com o fundamental apoio económico da China e da Índia, entre outros. Se estes lhe tirarem o tapete, admito que seja mais complicado, mas não estou a ver, por exemplo Xi Jinping a encetar este tipo de contabilidades com os Estados Unidos.
Meu deus, os russos (e os ucranianos com eles) enfrentaram os mongóis, os polacos, os suecos, os turcos, os franceses, os alemães estão agora a enfrentar praticamente todo o Ocidente. Querem mais? Eles têm.
2 versos de Fernando Grade
«O barulho que vier da terra pede fogo / é um sistema de lágrimas a vapor»
«Não apunhalem o sangue magnífico do cão», O Livro do Cão (1991)
terça-feira, maio 27, 2025
ucraniana CCLXXXIX - o sentido de humor de Peskov, numa perigosa fase de provocação da UE
Dmitri Peskov, que os bons me(r)dia televisivos levaram mais de dois anos a mostrar a mesma foto com expressão de alucinado, teve ontem uma saída muito boa a propósito do chilique de Trump, agradecendo o empenho dos Estados Unidos na resolução do problema (que eles próprios criaram, primeira boa piada); dizendo, paternalisticamente, que andamos todos com sobrecarga emocional...
O Trump, que não é estúpido como o destroço que o antecedeu, deve saber que para Putin e os russos em geral, tanto se lhes dá que o inimigo seja liderado por ele ou por Biden (supostamente).
Os americanos queriam a Ucrânia na sua esfera de influência e, ao mesmo tempo, fazer a Rússia arder em lume brando. Tudo lhes saiu furado, e, por desistência, são agora os incapazes dos europeus que se chegam à frente, o menino largado nos braços, na estúpida esperança de que os EUA acabem por envolver-se (outra vez e mais).
Enganados uma e outra vez, os russos já não vão em conversa fiada, e por essa razão as provocações no Báltico, das marinhas destes aterrorizados países, cujo medo irracional nos poderá fazer perder todos, as preocupações dos finlandeses com brigadas russas na fronteira (foi uma maçada a neutralidade durante o tempo da União Soviética, não foi?), a autorização, pelo ceo Merz, do uso de armas alemãs em território russo, fazem temer o pior, a começar para os próprios ucranianos. Os últimos ataques são uma resposta aos pseudo-ultimatos destes inúteis. Nem todos podem ser como o Robert Fico, um socialista a quem os criados da imprensa logo qualificaram como 'populista'... Os russo não querem os americanos nem os seus lacaios a sujar-lhes a porta
Aliás, quanto mais tempo de guerra, menos Ucrânia. Por muito imbecil, ignorante ou prostituída (riscar o que não interessa) que esta clique dirigente europeia seja, já deve ter percebido que o que foi tomado pela Rússia (e já agora bem tomado, pese o Direito Internacional), será para continuar na Rússia.
3 versos de Mário Máximo
«Habituei-me a levantar a persiana todas as manhãs / seguro de que era a ti / que a claridade emergente iria acordar.»
«Essência», Um Milhão de Anos (1986)
segunda-feira, maio 26, 2025
1 verso de Fernando Jorge Fabião
«Claridade, mansidão dos justos.»
Nascente da Sede (2000)
o príncipe e o parolo de maralago
Nos últimos anos do regime de apartheid, entre muitas outras, havia três vozes da resistência sul-africana em liberdade relativa que o mundo ouvia com particular atenção: Oliver Tambo, presidente do ANC no exílio, o bispo Desmond Tutu e o líder da confederação sindical do país, a COSATU, chamado Cyrill Ramaphosa.
O actual presidente sul-africano, político experimentado, respeitável e respeitado, esteve como um príncipe ao lado do americano, Trump, emblema do desprezível kitsch que não se enxerga.
É por isso que ele pode fazer momices, trafulhices & outras trumpices com uma marioneta como Zelensky, enganar porcarias como Macron e Starmer, desprezar e destratar a cúpula política da UE. Em relação a Putin e Xi Jinping, que já se esqueceram daquilo que Trump anda agora a aprender, a coisa fia mais fininha, como se está a ver.
Quando se depara com alguém com a densidade, a história e a categoria de Cyrill Ramaphosa, resulta isto, um parolo de maralago.
domingo, maio 25, 2025
sexta-feira, maio 23, 2025
2 versos de José Agostinho Baptista
«primeiro o sossego do teu corpo / e só depois as cidades abertas à multidão --»
«E as casas são brancas loucamente brancas e vermelhas», Deste Lugar Onde (1976)
quinta-feira, maio 22, 2025
2 versos de Cristóvão de Aguiar
«para ti o alarme de todas as ilhas / acordadas nos sinos do vento nordeste»
«O alarme das ilhas», Sonetos de Amor Ilhéu (1992)
quarta-feira, maio 21, 2025
2 versos de Florbela Espanca
«Para que quero eu os olhos / Se não servem pra te ver?»
in «Trocando Olhares», Antologia Poética
terça-feira, maio 20, 2025
alhures
«I. 1. "Sois grande, Senhor, e infinitamente digno de ser louvado". "É grande o vosso poder e incomensurávela vossa sabedoria". O homem, fragmentozinho da criação, quer louvar-Vos; -- o homem que publica a sua mortalidade, arrastando o testemunho do seu pecado e a prova de que Vós resistis aos soberbos.» Santo Agostinho, Confissões (397-400) - trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina § «I. Conta Lázaro a sua vida e de quem era filho. Pois saiba vossa mercê, antes de mais nada, que me chamam Lázaro de Tormes, que sou filho de Tomé González e de Antona Pérez, naturais da província de Salamanca, aldeia de Tejares. Nasci no rio Tormes, e daí me veio o apelido. E aqui tem.» Anónimo, Lazarilho de Tormes (1554) - trad. Ricardo Alberty § «Picasso era um homem baixo que tinha uma maneira cómica de andar, pondo um pé adiante do outro atá dar aquilo a que se chama "passos". Rimo-nos com as suas ideias deliciosas, mas pelos finais dos anos 30, com o fascismo no auge, havia muito poucas coisas de que nos ríssemos.» Woody Allen, Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura - «Memórias dos Anos Vinte» - trad. Jorge Leitão Ramos § «Nessa altura gostava muito da cozinha catalã; mas desde esse dia começaram a desfazer-se-me as gengivas e a apodrecer os dentes. Os médicos, unânimemente, declararam que o meu mal não tinha cura. Mandei deitar as cartas. Foi então que o curandeiro me receitou o regime de nuvens.» Félix Cucurull, Antologia do Conto Moderno - «Carta de despedida» - trad. Manuel de Seabra § «Na cela há cinco polícias fortes e um preso. Os polícias dispõem de meios que tudo alcançam e sabem que o obrigarão a confessar. / Como feras esfaimadas, atiram-se ao preso, às cegas, numa fúria. No fundo sentem-se mal, porque a cela é demasiado pequena para tanta gente. Além disso, os fatos pesados são um estorvo e os colarinhos duros incomodam terrivelmente.» Michael Gold, Para a Frente América... - «Cárcere» - trad. Manuel do Nascimento
2 versos de Luísa Dacosta
«No meu outono, agreste, / invento-te.»
«Solidão», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
o que está a acontecer
««Aquele veludo de musgo às camadas de cor carregada mostrava-se agora mais espaçado em débeis tentáculos acastanhados como filetes de caracóis. Quando se topava uma abertura na parede, as exclamações irrompiam: Upah! Uih! Deito os bofes pela boca! Valha-me minha Santa lá no Céu. Abrenúncio, Virgem Maria! Até parece promessa ao São Semedo. Vamos, mais um pouco. É chegar ao patamar, às alturas.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
«Começavam então a chegar à tasca os guardas encanecidos no mester de receber enterros, graves nos seus uniformes fatídicos, os coveiros angulosos e vesgos lançando de si um fétido deletério; e cada um, dando boas noites à tia Lauriana, ia sentar-se à banca, no seu lugar, chupando pontas de cigarro e pedindo decilitros.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
«A cauda ergueu-se num ápice, formando volta que nem cabo de guarda-chuva; a cabeça levantou-se também e nela luziram os olhitos até aí amortecidos. "Piloto" estugou o passo. O caminho estava cheio de tentações, de paragens obrigatórias, estabelecidas por todos os cães que passaram ali desde que Manteigas existia, desde há muitos séculos.» Ferreira de Castro, A Lã e a Neve (1947)
segunda-feira, maio 19, 2025
3 versos de A. M. Pires Cabral
«Contentes no seu charco, carregando nos erres, / rãs aos milhares erguem louvores / ao criador das libelinhas que voam por perto»
«As rãs e as libelinhas», Caderneta de Lembranças (2021)
bolas
Desta vez, para meu pesar, o voto não foi suficiente útil para ajudar a eleger António Filipe.
Quanto ao resto: vitória da AD: pode chefiar-se um governo e receber uma avenças por fora, ao domicílio familiar. Como se vê, é o um assunto que não interessa a ninguém, a maioria dos portugueses faria o mesmo, se pudesse.
PS: Pedro Nuno Santos foi vendido como radical... e os portugueses, manhosos como são, não gostam disso. É verdade que também há uma aversão bastante justificada ao partido do catastrófico António Costa, uma enguia de manobrismo. Quero lá saber do PS, ainda para mais gafado do tifo woke...
Chega: afinal, um partido bem português. Antes das eleições do ano passado, não acreditava que chegasse aos 10%; hoje já não digo nada. Pode ter-se um mentiroso e um demagogo como líder, que os eleitores estão-se nas tintas. "Coragem, portugueses," disse o Almada, que continuava...
BE e Livre: a bancada woke perde um deputado no conjunto. É bem.
IL: nada a acrescentar.
PCP: perde um deputado, e dos melhores.
PAN: também são terrivelmente woke, mas no meio desta hecatombe até gostei que Inês Sousa Real ficasse em Parlamento; dá-lhe um outro ar.
JPP: não sei bem o que é, mas Filipe Sousa tem um discurso civilizado, o que quer que isto signifique.
E pronto.
domingo, maio 18, 2025
sábado, maio 17, 2025
as 2-razões-2 por que vou voltar a votar no PCP/CDU este ano
Como sempre, continuo a votar onde e em quem me apetece; como no ano passado, volto a votar nos mesmos e pela mesmíssimas razões. São elas:
1. A posição do PCP em relação à Guerra da Ucrânia, entre a Rússia e (parece que ainda) os Estados Unidos. Posição moderadíssima, aliás, que tem a grande virtude de não tolerar que Portugal seja nesta questão mais um verbo de encher, ao contrário dos outros partidos todos com assento no Parlamento, do do "nacionalista" Ventura ao do sofista Tavares.
2. Gosto de votar e que o meu possa ter influência, o que várias vezes não sucede. Há uma ano votei na CDU para ajudar a eleger António Filipe, número dois por Lisboa. O último ano mostrou como a Assembleia da República se degradou com a eleição dos candidatos do Chega. Nunca como agora o Parlamento precisou tanto de bons parlamentares. E António Filipe é dos melhores.
E é isto
sexta-feira, maio 16, 2025
2 versos de Cristóvão de Aguiar
«velha pecha esta minha de mergulhar / nos confins do teu nome para te procurar»
«Na esquina do vento», Sonetos de Amor Ilhéu (1992)
Palestina, um crime nas nossas barbas
Se há nação e estado que nunca deveria ser agente, por acção ou omissão, do que se está a passar na faixa de Gaza (nem nos colonatos da Cisjordânia ocupada, já agora), esse seria o povo judeu e o estado israelita, com o perpetrar de um genocídio nas nossas barbas. Nunca como agora o velho cartoon do António foi tão actual, tão verdadeiro, e infelizmente também, cada vez menos exagerado, na sua função satírica.
(Infelizmente palavras como genocídio estão cada vez mais banalizadas, num tempo em que elas, as palavras, valem cada vez menos. Se chamamos genocida a um ladrão pindérico como o Bolsonaro, como designaremos agora Netanyahu: alguidar?, carburador?, pastel de nata?...)
A partir de agora a bandeira da Palestina vai estar na coluna direita. Perdi por Israel todo o respeito e admiração que em tempos tive. Restam os kibutz, as pequenas comunas que já existiam antes da criação do estado e que continuarão a existir depois dele.
Não se trata com isto, como sabem os que por aqui passam, de desculpar e muito menos "absolver" a barbárie do Hamas -- grupo armado independentista islâmico, e não terrorista na sua essência, mesmo que praticando abjectas acções terroristas, como o são quaisquer ataques a civis; mas o a abjecção do governo israelita traduz-se na multiplicação do terror infligido pelo Hamas. Se fosse a vingança bíblica que queriam, há muito que estavam vingados. Mas é mais que isso: é genocídio praticado por um povo que foi sempre perseguido, de Nabucodonosor a Hitler.
quinta-feira, maio 15, 2025
2 versos de Camões
«Tão brandamente os ventos os levavam / Como quem o Céu tinha por amigo;»
Os Lusíadas, I,43 (1572)
o que está a acontecer
«Lá dentro, na fofa viuvez de um canapé acolchoado, um Mestre de Rythmos me sondava os músculos e as articulações, na esperança de poder contribuir para o meu futuro alindamento. Lembro-me de que um moço do talho chamado Isaac fazia sempre cócegas à mesma criada e no mesmo sítio. Lembro-me ainda de que, quando a noite caía e a rua se tornava numa tira preta colada aos vidros, eu ia sentar-me na casa de banho para ouvir pingar as torneiras, pois tinha medo do silêncio.» Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«O clarão, dos altos daquele encafuamento, deixava-se ganhar, degrau a degrau, e fazia descobrir as tonalidades mais verdes de musgos escondidos e de andrajosos líquenes de fraca reprodução. Tinham passado já o suar das paredes que cá em baixo tanto fazia admirar os visitantes.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
«Em anoitecendo, tudo aquilo era duma contemplação lúgubre e misteriosa, em que se adivinhava o trabalho de milhões de larvas; o ladrar dos cães tinha um eco desolado, que tornava depois mais sinistro o silêncio; a porta fechava-se sem rumor, girando em gonzos discretos, e uma luz esmaecia na treva, no fundo dos ciprestes e dos túmulos, diante de um santuário deserto, onde o Cristo, do alto, olhava vagamente o guarda-vento.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
quarta-feira, maio 14, 2025
4 versos de José Pascoal
«É a vontade sensível de viver / Mergulhado nos mapas deslumbrantes / Da memória, nas cartas do futuro / Incompleto de todos os instantes.»
«A vida íntima», Sob Este Título (2017)
terça-feira, maio 13, 2025
ucraniana CCLXXXVIII - Zelensky repara, Zelensky substitui
Chega um tipo ao restaurante, a televisão sintonizada na cnn, e vê o pobre general Carlos Branco a pisar um daqueles filetes que está na base do ecrã, destacando as últimas (ou penúltimas) parvoíces de desinformação. Hoje era qualquer coisa como isto: Zelensky delineia plano de paz para a reunião na Turquia; Zelensky só aceita reunir-se com Putin, etc....
Não é cómico? Um tipo que vai ao país dos otomanos por uma orelha e pela mão do Trump, e estas pulgas da cnn-Portugal (certamente orientadas pela casa-mãe) a aldrabarem os feirantes de Espinho, dizendo-lhes que Zelensky repara, Zelensky substitui; Zelensky delineia, Zelensky exige.
Já não me sorria tanto desde que uma barbie empoderada (é português isto?) parecia a caminho do orgasmo sempre que pronunciava o nome do grande líder; ou uma outra, velha platinada, vinda ao ecrã gabar o tónus olímpico do Biden destroço.
4 versos de Rui Knopfli
«Das sombras, das solidões / dos recantos recônditos / da noite e da chuva / saem homens.»
«Dawn», O País dos Outros (1959)
atrás de um idiota
Diz este estúpido que "a chave é ter tropas na Ucrânia". É um imbecil que nem sequer tem filhos para mandar para lá, acirrado por os russos estarem a tramá-lo em África. Isto daria pano para muita conversa. O que espero é que os que agora estão com sorrisinhos eleitorais, em especial Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos, sejam políticos portugueses e não nos atrelem a esta criatura. Devo dizer, aliás, que tanto Montenegro como Rangel, para surpresa minha, foram muito menos infelizes nas suas declarações enquanto governantes do que o infelicíssimo Costa e ministro -- não sei se estão recordados do catastrófico Costa, recompensado pela sua miséria política com um posto de corta-fitas na UE. Aqueles tinham ao menos o cuidado da ponderação mínima e de dizer que a acção do estado português decorrerá sempre sob a égide da ONU e no respeito pelo Direito Internacional. Veremos se é só conversa.
segunda-feira, maio 12, 2025
2 versos de José Alberto Oliveira
«A literatura é o subúrbio da poesia, / concordámos, sem muito esforço, por esses dias;»
«Cartas - 1. Para o Manuel Afonso Costa», O que Vai Acontecer? (1997)
sábado, maio 10, 2025
sexta-feira, maio 09, 2025
3 versos de Arnaldo Santos
«Vinham ao longe / Em conversas vagas / Na tarde baixa ressumando dobres.»
«Contratados», Fuga (1960)
quinta-feira, maio 08, 2025
Leão
Como toda a gente, assim que ouvi o nome do novo papa, Leão XIV, liguei-o ao anterior Leão, o da doutrina social da Igreja e da encíclica Rerum Novarum. Qualquer que seja a direcção que venha a tomar, certamente humanista, o nome indicia que o agora pontífice não vai ficar parado. E se há coisa que este mundo sujo precisa é de grandes figuras éticas. O Papa além de ser o chefe espiritual do catolicismo, é um chefe de estado, um líder político, goste-se ou não -- como de resto o é também o Dalai Lama, outra figura ética e política, enquanto monarca apeado no Tibete.
não é D. Tolentino, ó palermas...
Sempre me irritou esta preguicite de cortarem o nome às pessoas. Foi mais um mau hábito que caiu no goto, não se percebe bem porquê. Agora, por causa da eleição do novo papa, a toda a hora os me(r)dia nacionais convocam o nome do cardeal José Tolentino Mendonça, chamando-lhe D. Tolentino... Se o homem se apresenta e assina com o nome próprio, a referência correcta será sempre D. José T. M. Vivemos imersos numa tosca porcaria.
2 versos de José Régio
«Lá pela noite morta, / Passaram salteadores à minha porta.»
«Canção de guerra», As Encruzilhadas de Deus (1936)
zonas de conforto
Raul Brandão: «O casebre não existe -- as paredes não têm limites, na escuridão remexem seres que esperam que se realize um sonho impossível no mundo. / O Fortunato que nunca comeu à sua vontade e que trabalha até à morte, a velha que não fala e nunca se queixou, a Rosa e o ladrão que anda a monte, o criado que os serve há tantos anos sem receber soldada, ouvem o Manco e deixam apagar o lume reduzido à ponta dum cigarro.» O Pobre de Pedir (póst., 1931) § Machado de Assis: «Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada. / E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779.» Histórias sem Data (1884) -- «Cantiga de esponsais». § Fialho de Almeida: «Hão-de ter reparado que certas coisas têm fisionomias humanas conhecidas de nós, o traço dalguém que amámos, duma pessoa que nos impressionou em tal parte, ou por um qualquer detalhe, pequenino que fosse. Às vezes é uma nuvem que, por entre uns esboços de cara, guarda por momentos o doce sorriso de nossa irmã. Às vezes é uma flor, a do pilriteiro, que tem no desenho do cálice o modelo frágil da pobre criaturinha loura que morreu tísica ao escrever-nos a primeira carta.» O País das Uvas (1893) -- «Pelos campos» § Augusto Casimiro: «Há crimes que invocam o Amor da Pátria para se realizar. Há violências que se dizem por ele exigidas. Mentiras que dele querem viver e da sua força.» O Livro dos Cavaleiros (1922) § António de Cértima: .../... «E é entre estes dois pontos terminais da mais bela artéria urbanística do mundo que me parece dever fixar-se a verdadeira representação psico-fisiográfica de Paris -- que alguns pretendem deslocar para o território intelectual da Sorbonne, outros para a arte do Louvre, e ainda outros (ou outras) para os salões de Dior e Jean Dessès, na convicção de que só a inventiva dos grandes costureiros saberá definir perante o universo o poder criador da cidade.» .../... [14.VIII.1961], Doce França (1963) § Frei João Álvares ao monges do Paço de Sousa, 24-XII-1467: .../... «E assi de vós outros que vos deve nembrar como vos destes e oferecestes e consagrastes a Deus per vossos votos e vossa própria vontade, ca a mim não me prometestes nenhuma cousa, nem eu vos nom demando nem requeiro al senom o que deveis de pagar a Deus que o entregueis e deis a mim, que som seu procurador e mordomo que ele escolheu e me chamou à luz deste mundo do ventre da minha mãe, e me ungiu com o óleo da sua misericórdia e me pôs neste lugar antre vós, feito padre e abade, per a qual dignidade e ofício vós me nom elegestes nem me escolhestes, mas eu vos elegi e escolhi. E de como vos mantive e governei esse tempo que convosco estou, vós o sabeis e podeis delo dar testemunho.» .../... in André Rocha, A Epistolografia em Portugal (1965/85)
quarta-feira, maio 07, 2025
o que está a acontecer
«2- No dia a seguir àquele em que comecei a usar risca ao lado fui transportado para uma habitação na berma da cidade. Pela poeirenta rua deslizavam carros, volumes, carteiros e toda a sorte de animais. Como um rio, o barulho do que na rua decorria se raspava de encontro aos muros da que, agora, era a minha casa.» Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«Na lama constante do caminho, eram profundos os sulcos que as seges de enterro deixavam até à porta do cemitério, escancarada sempre, como a goela dum plesiossauro faminto.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
«-- Subir é o caminho para os céus -- dizia o caseiro. -- Há dias que venho cá duas e três vezes quando não quatro e cinco. Enfim, são sortes. Tenho o coração que nem um garrano. Vamos, falta pouco. Só quinze degraus e depois é a terra toda e o rio de boca aberta para nós.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
5 versos de Fernando Jorge Fabião
«entrar em casa / é pensar a mulher / na limpidez absoluta das sílabas / quando ainda se ignora a morte / e tudo pode ser dito»
Nascente da Sede (2000)
terça-feira, maio 06, 2025
3 versos de Cesário Verde
«A espaços, iluminam-se os andares, / E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos / Alastram em lençol os seus reflexos brancos;»
«Noite Fechada - O Sentimento dum Ocidental II», O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)
segunda-feira, maio 05, 2025
apagão
Em pleno dia, numa paragem de autocarro apinhada, uma velha tem as duas mãos postas à cabeça, como que a arrancar o cabelo curto. (Visto num telejornal.)
3 versos de Fernando Grade
«A correr atrás da carruagem / um eco de patas a percorrer a melancolia / de as rodas serem mais velozes»
«A correr atrás da carruagem», O Livro do Cão (1991)
domingo, maio 04, 2025
saiu no JL
António Cândido Franco: «Havia nele qualquer coisa dum Cristo literário, disposto a sacrificar a vida por todos, e dum Saint-Just anónimo, que com indefectível pureza não se perdoava a si e aos outros a menor cedência.» (sobre Luiz Pacheco)
António Carlos Cortez: «Explorando os ambientes e cambiantes de São Salvador da Bahia, Paulo Teixeira sabe bem o que é literatura: povo, oralidade, realismo levado até ao osso; mas sem rasgar à força a arte da elocução, sem artificializar.» (sobre o romance de Paulo Teixeira, Não Digas o que a Baiana Tem)
Carlos Vale Ferraz: «Como escritor sou um dano colateral do 25 de Novembro de 1975.» («Autobiografia»)
Guilherme d'Oliveira Martins: «O Papa Francisco lembrava Gustav Mahler, a defender que a fidelidade à tradição não consistiria em adorar as cinzas, mas em conservar o fogo.»
Maria Fernanda de Abreu: «[...] creio bem que a grande qualidade de Vargas Llosa é herdeira do melhor romance oitocentista, que ele actualiza, reformulando também a herança da literatura indigenista, para contar histórias (quase sempre) do seu tempo e da sua terra.»
Paulo Teixeira: «Somos todos personagens secundárias.» (entrevista a Luís Ricardo Duarte)
JL #1424 -30.4.2025
alhures
«Sempre supus que antes de desaparecer totalmente como personagem terráquea ainda estaria a tempo de provar os teus lábios. Não sei se isso me daria algum alimento, mas pelo menos produzir-me-ia uma espécie de cócegas estranhas muito confortáveis, no sangue. Julgo isso porque aos vinte anos beijei uma rapariga: era feita dos materiais que se costumam usar correntemente. Estiraçámo-nos atrás duns arbustos.» Félix Cucurrull, Antologia do Conto Moderno -- «Carta de despedida» -- trad. Manuel de Seabra § «Picasso estava a começar o que mais tarde seria conhecido como o seu "período azul", mas Gertrude Stein e eu estivemos a tomar café com ele e por isso ele começou-o dez minutos depois. Durou quatro anos e portanto os dez minutos não tiveram grande importância.» Woody Allen, Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura (1966) -- «Memórias do Anos Vinte» -- trad. Jorge Leitão Ramos § «"Escritura lavrada em Pampérigouste, no cartório do notário Honorat, na presença de Francet Mamaï, tocador de pífaro, e de Loiset, por alcunha o Quique, cruciferário dos penitentes brancos; / "Que assinaram com as partes e com o notário, depois de lida...» Alphonse Daudet, Cartas do Meu Moinho (1869» -- «Prólogo» - trad. Fernanda Pinto Rodrigues
sexta-feira, maio 02, 2025
2 versos de Rui Knopfli
«Vinte e tantos anos de idade / e outros tantos de medo.»
«A quinta década», O País dos Outros (1959)
quinta-feira, maio 01, 2025
ucraniana CCLXXXVII - uma vitória do "mediador", uma derrota para a Rússia (e a 'débâcle' da Ucrânia)
1. Segundo o comentariado de meia-tigela, indignados com a mudança de atitude da nova administração Trump, de alegada aproximação das partes, os Estados Unidos não seriam mediadores isentos pela forma como pressionavam a Ucrânia em favor da Rússia.
2. Vários daqueles são comentadores de meia-tigela porque querem e não se importam de fazer figuras tristes, até porque sabem que a maior parte do público não percebe de geopolítica.
3. Acontece que, como é óbvio, os Estados Unidos não são mediadores de coisa nenhuma, mas parte, a mão por detrás do arbusto, como diria José Sócrates a outro propósito, que realmente manipula o Zelensky. Mais ainda, como já aqui escrevi: a mudança de estratégia dos EUA em relação à Ucrânia é fruto do reconhecimento da derrota da jogada da anterior administração americana.
4. Se Putin joga xadrez, Trump é um celebrado vendedor de carros usados. O acordo que foi assinado sobre as terras raras, a efectivar-se, representa uma vitória dos Estados Unidos em relação à Rússia, mas acima de tudo a débâcle da Ucrânia, pois se os russos não abandonarão os territórios ocupaqdos, os americanos passarão, sem disparar um tiro, a tomar conta do que resta da Ucrânia, com a suprema lata trumpista de justificarem a extorsão como "compensação" pelo "apoio" à Ucrânia na guerra que eles próprios, americanos, provocaram com a Rússia. Estou curioso para ver o que se passará a seguir.
o que está a acontecer
«Reunido o Conselho de Família, verificou-se (e registou-se em acta) a ausência do meu tio Augusto, que não pôde comparecer, ocupado, como estava, a violentar a filha menos vesga do jardineiro. Decidiu-se que eu não seria imediatamente recrutado: a debilidade era o meu forte. Foi-me oferecido um gato de peluche e, como nesse dia perfiz cinco anos, assim terminou a minha recuada infância.» Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«Daí à torreta eram ainda uns trinta degraus, dos mais altos e pesados, daqueles que, sem se querer, fazem pregas indiscretas na barriga. / A bicha dentro do esófago da Torre, contava para si os martírios passados naquela ascensão; uns davam ah has de alívio, outros comparavam com a escadaria do Bom Jesus do Monte, com a Torre dos Clérigos e ainda recordavam a subida ao Santuário de Lamego.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
«Tratava-se então de levantar um muro de cantaria que fosse como uma fachada opulenta da gélida cidade de cadáveres; na planura que medeia entre o cemitério e as terras, o terreno via-se revolto; os carros de mão jaziam esquecidos; os montes de pedras miúdas e de argamassas antigas tornavam penoso o trânsito.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
2 versos de Florbela Espanca
«Quem noites só conheceu, / Não pode cantar auroras.»
Trocando Olhares / Antologia Poética
quarta-feira, abril 30, 2025
4 versos de Luísa Dacosta
«Longe, mentalmente, / e ainda com maior leveza / do que a das águas da maré, / imprimo, em mim, as rugas do teu rosto.»
«Aprendizagem», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
terça-feira, abril 29, 2025
1 verso de Vítor Oliveira Jorge
«e tu começavas caminhando, e todo o teu corpo se enchia de pequenos sons musicais, e quando paravas eu debruçava-me sobre a tua pele e ouvia a respiração da terra»
Sem Outra Protecção Contra a Noite (1980)
segunda-feira, abril 28, 2025
3 versos de Alberto de Lacerda
«Canto porque as palavras / passaram cegas à espera / da luz da minha canção.»
«Sim», 77 Poemas (1955)
domingo, abril 27, 2025
o que está a acontecer
«Não que o meu sorriso fosse esgar, ou o meu gargalhar inexistente; mas uma certa palidez no semblante geral denunciava (ao que parece) más possibilidades. Foi nessa época que se pôs o problema de eu ser ou não envolvido a fundo nas malhas da F.R.I.P.M.S. (Fundação do Recrutamento Infantil Pró Movimento Selecta). Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«A taberna do Pescada ficava mesmo em frente ao cemitério dos Prazeres, e era frequentada pela gente do sítio, especialmente de noite, à hora em que os cabouqueiros e os britadores abandonam os seus trabalhos e entram na cidade, em ruído.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
«-- Pode-se ir lá acima? / -- É à vontade. / Degrau a degrau, de cabeça marrada aos pés, os visitantes trepavam lentamente. Ultrapassada a casa de defesa, resto de quarto só com paredes e bancos ao pé de velhas seteiras, o público respirava satisfeito. A cisterna então não deixava ver bem os fundos, espelhava de mais.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
sábado, abril 26, 2025
sexta-feira, abril 25, 2025
2 versos de Luísa Dacosta
«Só o lume duma traineirinha / é pirilampo na noite.»
«Nocturno», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
alhures
«A Itália fez-me lembrar bastante Chicago, sobretudo Veneza, já que ambas as cidades têm canais e as ruas estão cheias de estátuas e de catedrais dos maiores escultores do Renascimento. / Naquele mês fomos ao atelier de Picasso em Arles, que então se chamava Ruão ou Zurique, até que os franceses a rebaptizaram em 1589, sob o domínio de Luís, o Vago. (Luís foi um rei bastardo do século XVI que era mauzinho pata toda a gente.) Woody Allen, Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura (1966) - trad. Jorge Leitão Ramos § «Se te houvesse convertido num fantasma, talvez um dia qualquer nos encontrássemos juntos para além do satélite artificial que os americanos querem atirar para o espaço: seríamos como dois elnçóis flutuando entre a terra e a lua; talvez uma noite qualquer provocássemos um eclipse.» Félix Cucurull, «Carta de despedida», Antologia do Conto Moderno - trad. Manuel de Seabra § «"Esta venda é feita em bloco e mediante o preço convencionado, que o Sr. Daudet, poeta, apresentou e depositou neste cartório em moeda corrente, o qual preço foi em seguida contado e levantado pelo Sr. Mitiflo, tudo na presença do notário e das testemunhas abaixo assinadas, do que se dá quitação sob reserva.» Alphonse Daudet, Cartas do Meu Moinho (1869) - «Prólogo» - trad. Fernanda Pinto Rodrigues
quinta-feira, abril 24, 2025
4 versos de José Régio
«Porque não vens, tu que não chegas, / Meu terrível fantasma real e vago? / E sonho... sim!, que vens, sim!, que te entregas / Na pobre carne que pago.»
«Poema da Carne-Espírito», As Encruzilhadas de Deus (1936)
zonas de conforto
António de Cértima: [14.8.1961] «Subo um pouco mais e, da planura verdejante do Rond Point, os olhos divertem-se a seguir o movimento da multidão zebrada de cores que sobe e desce a Avenida, e a aprisioná-la lá em cima, num cartaz modernista, junto do Arco glorioso que nos fala das preocupações arquitecturais e do instinto das batalhas do vencedor de Arcole e Austerlitz.» Doce França (1963) § Fialho de Almeida: «Porque, seriamente, nós volvemos de novo à flor desta sagrada terra que nos devora, uma vez, muitas vezes, em regiões várias, climas, vários e disfarçados consoante o humorismo da química que nos manipula.» «Pelos campos», O País das Uvas (1893) § Machado de Assis: «Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: -- a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia.» «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884) § José Bacelar: «Gritar, vituperar, amaldiçoar -- está bem ainda. Mas ai daquele que não faz como os outros -- ai daquele que friamente levanta um pouco o véu.» Revisão 2 -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana (1936) § Eugénio de Andrade a Jorge de Sena (1955): .../... «Bem vê, portanto, que a nossa camaradagem e amizade sai intacta do prémio, como não podia deixar de ser. / Diga-me quando puder qualquer coisa sobre a antologia do Pascoaes. Não voltou a pegar-lhe? Era bonito aparecermos com isso no próximo inverno. Quando passar pelo Porto, previna-me. Gostava de estar consigo. / lembranças à Mécia e o melhor abraço do seu / Eugénio.» Cartas de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena, ed. António Oliveira, 2015 § Raul Brandão: «A terra é dos probes -- teima ele. / Cheira a monte e arfa no escuro uma coisa sagrada -- o sonho dos pobres. As figuras da realidade desapareceram, outras figuras estão presentes como sombras carcomidas e que chegam ao céu. Um momento a brasa ilumina as mãos da senhora Emília que parecem de morta.» O Pobre de Pedir (póst., 1931)
quarta-feira, abril 23, 2025
5 versos de José Agostinho Baptista
«por vezes / as aves do litoral, em largos círculos à volta dos navios, traziam / notícias do norte que eu abandonara -- / campos de silêncio adormecidos pelos séculos, vinhas e árvores, / atalhos onde pela noite se reuniam as feiticeiras da ilha;»
«Morituri», Deste Lado Onde (1976)
o que está a acontecer
««Então, buscando o menos possível mudar-lhe a fisionomia, o antigo ar interior e íntimo (Na cantoneira onde a tia Mariana guardava a marmelada, nem tocar...), chamara um mestre-de-obras e assenhoreara-se de todo o edifício, aproveitando-o conforme a ideia que de longe lhe trabalhava no sentimento.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)
«1. Criado embora entre hálitos de faisão, cedo me especializei na arte de estender os braços. Dia após dia os mais laboriosos, cansativos forcejos projectavam meus membros anteriores em-frentemente. E isto assim até que perdi as mãos de vista.» Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«Contra o que seria plausível esperar neste desigual processo de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e fadigas da jornada não se pode dizer que fosse o cavaleiro.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
terça-feira, abril 22, 2025
2 versos de José Alberto Oliveira
«Pernoitou nos arrabaldes de uma cidade estranha / e reviu sem gosto o princípio da matéria dada,»
«A Sede do Gado», O que Vai Acontecer? (1997)
segunda-feira, abril 21, 2025
um líder excepcional
Baptizado, educado na Igreja Católica, numa família que se dividia entre o ateísmo anticlerical e uma prática religiosa abaixo dos mínimos, por tradição, hábito e superstição, português e europeu, sou um ateu impregnado de cristianismo. Aliás, como qualquer um cujo coração está à Esquerda, a figura histórica de Jesus Cristo, a sua mensagem revolucionária, pregada ainda na Antiguidade, recorde-se, de que todos os homens são filhos de Deus e iguais na dignidade, só pode merecer a adesão de todos quantos atribuem a essa mesma dignidade um valor inegociável e sem cotação em bolsa.
O papa Francisco, Jorge Bergoglio, era desses. Por isso -- com as excepções do costume -- concitou não apenas o amor e a admiração dos seus fiéis, como de todos os homens de boa-vontade, qualquer que fosse a sua religião, ou não professassem credo algum, como é o meu caso.
Além disso, o seu humanismo e bom-senso, uma voz que se elevava sobre os guinchos das hienas da indústria bélica e os seus criados, na União Europeia e alhures, e sobre a indiferença que estes mesmos servos da UE já demonstraram ter diante do genocídio -- creio que só agora assumo esta palavra, e já vou muito atrasado -- dos palestinos e a condescendência para com os criminosos de guerra do governo de Tel-Aviv.
Como esquecer a ida a Lampedusa, no início do pontificado?; as palavras contundentes e cheias de indignação contra a "economia que mata"?; os latidos da Nato à porta da Rússia?; a vergonha excruciante de chefiar uma instituição religiosa com um histórico encobrimento de abusos sexuais generalizados que tornam uma parte da igreja num coio de crime e abjecção? A luta entre bem e mal trava-se também lá dentro. Francisco era do Bem, e só este é admissível.
Vai fazer imensa falta, e espero, que o próximo possa estar à altura do grande Francisco. Afinal, um papa continua a ser um líder político mundial e uma das consciências da humanidade.