quinta-feira, maio 08, 2025

zonas de conforto

Raul Brandão: «O casebre não existe -- as paredes não têm limites, na escuridão remexem seres que esperam que se realize um sonho impossível no mundo. / O Fortunato que nunca comeu à sua vontade e que trabalha até à morte, a velha que não fala e nunca se queixou, a Rosa e o ladrão que anda a monte, o criado que os serve há tantos anos sem receber soldada, ouvem o Manco e deixam apagar o lume reduzido à ponta dum cigarro.» O Pobre de Pedir (póst., 1931) § Machado de Assis: «Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada. / E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779.» Histórias sem Data (1884) -- «Cantiga de esponsais». § Fialho de Almeida: «Hão-de ter reparado que certas coisas têm fisionomias humanas conhecidas de nós, o traço dalguém que amámos, duma pessoa que nos impressionou em tal parte, ou por um qualquer detalhe, pequenino que fosse. Às vezes é uma nuvem que, por entre uns esboços de cara, guarda por momentos o doce sorriso de nossa irmã. Às vezes é uma flor, a do pilriteiro, que tem no desenho do cálice o modelo frágil da pobre criaturinha loura que morreu tísica ao escrever-nos a primeira carta.» O País das Uvas (1893) -- «Pelos campos» § Augusto Casimiro: «Há crimes que invocam o Amor da Pátria para se realizar. Há violências que se dizem por ele exigidas. Mentiras que dele querem viver e da sua força.» O Livro dos Cavaleiros (1922) § António de Cértima: .../... «E é entre estes dois pontos terminais da mais bela artéria urbanística do mundo que me parece dever fixar-se a verdadeira representação psico-fisiográfica de Paris -- que alguns pretendem deslocar para o território intelectual da Sorbonne, outros para a arte do Louvre, e ainda outros (ou outras) para os salões de Dior e Jean Dessès, na convicção de que só a inventiva dos grandes costureiros saberá definir perante o universo o poder criador da cidade.» .../... [14.VIII.1961], Doce França (1963) § Frei João Álvares ao monges do Paço de Sousa, 24-XII-1467: .../... «E assi de vós outros que vos deve nembrar como vos destes  e oferecestes e consagrastes a Deus per vossos votos e vossa própria vontade, ca a mim não me prometestes nenhuma cousa, nem eu vos nom demando nem requeiro al senom o que deveis de pagar a Deus que o entregueis e deis a mim, que som seu procurador e mordomo que ele escolheu e me chamou à luz deste mundo do ventre da minha mãe, e me ungiu com o óleo da sua misericórdia e me pôs neste lugar antre vós, feito padre e abade, per a qual dignidade e ofício vós  me nom elegestes nem me escolhestes, mas eu vos elegi e escolhi. E de como vos mantive e governei esse tempo que convosco estou, vós o sabeis e podeis delo dar testemunho.» .../... in André Rocha, A Epistolografia em Portugal (1965/85)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

Porto, 10 de Novembro de 1873
Meu querido amigo
Olha que estou há dias com reumatismo que me apanhou por um ombro e vai descendo triunfante por estes ossos abaixo. Estou na cama com ares de entrevado, e faço as melhores caretas que sei em testemunho das minhas angústias.
Nesta situação resta-me apelar para as tuas orações, visto que não conheço o advogado canónico do reumatismo.
Ponho aos pés de S. Exªs. os meus respeitos, e os afectos agradecidíssimos de toda a minha família.
Eu sou o teu velho
Camilo
"Camilo Íntimo-Cartas inéditas de Camilo Castelo Branco ao visconde de Ouguela" - Clube do Autor, SA (2012)