quarta-feira, maio 25, 2022

da ética do despojamento à identificação impossível

«Desta viagem do velho Arlanza até Sout'n' vou guardar uma indelével memória.» José Rodrigues Miguéis (1901-1980), «Gente da terceira classe», Gente da Terceira Classe (1962)

Texto que abre o volume com o mesmo título, publicado em 1962, e apresentado em epígrafe como "Jornal de bordo - 1935", é mais reportagem que conto. Filho de imigrante galego, e licenciado em Ciências Pedagógicas pela Universidade de Bruxelas, fartou-se certamente da parvónia que era Lisboa em 1935, e ruma aos Estados Unidos, onde viverá o resto da vida, com breves intermitências.

Comunista de há muito, os tipos que nos apresenta nesta terceira classe de que obviamente não fazia parte, merecem-lhe uma atenção em que salta à vista a vontade de idealização do povo que aqui está longe de aparecer em carne e osso, por vezes chegando à comiseração, quase à repugnância pelo primitivismo -- que já Raul Brandão, por exemplo notava, ou Ferreira de Castro também, ambos, porém com maior empatia e nunca usando de ironia. Miguéis, diria, vai além da ironia: a mordacidade por vezes quase camiliana, está muito presente. Nem as figuras que nitidamente idealiza -- o antigo marinheiro ou a velha popular do Barroso --  sobrevivem quando abrem a boca. Um marxista com vontade de ideal, numa visão benigna; um cínico diria: o povo não serve?, muda-se o povo! Também foi tentado, com o sucesso que se conhece. No entanto, a sua sinceridade é indiscutível, tal como o apurado sentido crítico, mesmo que ocasionalmente toldado pelo vezo ideológico, sempre discreto, contudo, como se impõe.

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