sábado, julho 20, 2024

NENHUM OLHAR

«Hoje o tempo não me enganou. Não se conhece uma aragem na tarde. O ar queima, como se fosse um bafo quente de lume, e não ar simples de respirar, como se a tarde não quisesse já morrer e começasse aqui a hora do calor.» José Luís Peixoto, Nenhum Olhar (2000) § «Pelas cinco horas duma tarde invernosa de outubro, certo viajante entrou em Corgos, a pé, depois da árdua jornada que o trouxera da aldeia do Montouro, por maus caminhos, ao pavimento calcetado e seguro da vila: um homem gordo, baixo, de passo molengão; samarra com gola de raposa; chapéu escuro, de aba larga, ao velho uso; a camisa apertada, sem gravata, não desfazia no esmero geral visível em tudo, das mãos limpas à barba bem escanhoada; é verdade que as botas de meio cano vinham de todo enlameadas, mas via-se que não era hábito do viajante andar por barrocais; preocupava-o a terriça, batia os pés com impaciência no empedrado.» Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva (1953) § «Sobre a montada, subindo, devagar, a trilha pedregosa, Leonardo esmoía íntimas irritações. Não podia ser! Os galegos estragavam tudo, quer pagando quantos direitos os guardas-fiscais lhes exigiam, quer andando na calada da noite, a fazer contrabando de peles.» Ferreira de Castro, Terra Fria (1934) § «O comboio do sul parou na pequena estação sòzinha, perdida no descampado, entre grandes searas verdes já espigadas. Padre Dionísio, moço e ágil, saltou da 3.ª classe, poisou no chão a leve mala de viagem e olhou em roda, à espera que alguém se lhe dirigisse.» Manuel Ribeiro, A Planície Heróica (1927) - Primeira parte - «A Provação». § «Rubicundo, pesadão de farto, o estômago bem lastrado com lombo de vinha-de-alhos, padre Jesuíno saiu a espairecer para a varanda que a aragem da serra brandamente refrescava. Manjericos e craveiros floriam dentro de velhos potes, e tão abertos, tão medrados, que do mainel transbordava para a casa e sobre o pátio uma onda álacre de primavera.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926) § «José das Dornas era um lavrador abastado, sadio e de uma feliz disposição de génio, que tudo levava a rir, mas desse rir natural, sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, e não rir dos Demócritos, de todos os tempos -- rir céptico, forçado, desconsolador, que é mil vezes pior do que o chorar.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

«Apenas a forma em que se envolvem as coisas e com que se indumenta a história dos homens é mutável, que no mais continua a prefixa eternidade. Por baixo da corrente de ideias, que hoje preponderam, defluem outras que, vindas de mais longe e realizadas, cederam àquelas a superfície do golfo social. Essas traduzem a substancialidade em arte e beleza. Mediante elas, o seu tonus e quantum, se pode ajuizar na leitura dos Lusíadas que está ali o tombo poético da Pátria Portuguesa. Sentimentos e paixões particulares para enquanto durar o mundo.»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões-Fabuloso*Verdadeiro. "Introdução". Ensaio (1950)