CLAMAVI AD TE
Apenas hoje! Apenas uma vez,
Fala de modo que a verdade seja
Tão clara e transparente, que eu a veja
Num cristal da mais pura limpidez!
Talvez seja loucura o que deseja
A minha insaciedade. Sim, talvez...
Que tu fosses, falando, a outra que és,
Com a alma nos lábios, quando beija.
Mal empregado privilégio, a fala,
Que traduz a verdade em que pensamos,
As palavras gastando em ocultá-la!
Que seja assim quando se odeia, vamos...
Mas para quê se dissimula ou cala,
Quando tudo nos diz que nos amamos?!
Desaparecido (1935)
2 comentários:
I. Mestre grilo cantava e a giganta dormia
«Era uma abóbora menina, muito redondinha, que saíra de uma flor tão grande e tão linda que de longe parecia pela forma um cálix de oiro, o cálix por onde os senhores bispos costumam dizer missa, e pelo brilho estrela caída do céu. Atraídas pela cor viva e o perfume, que era brando mas suave, zumbiam-lhe as abelhas em volta e um grilinho viera com a caixa de música às costas acolher-se à sua sombra e ali fizera a lura. Perto, dentro de seus buraquinhos, viviam dois ralos, e uma cigarra passava a maior parte do tempo empoleirada numa das folhas da aboboreira a cantar.
Ora, com os dias, a flor murchara e no seu pedúnculo começou a crescer a abóbora redondinha. Era na entrada do Verão e à força de comer do solo, e beber do regadio, um pouco também entorpecida pelo calor, levava a vida a dormir. Crescia e dormia, dormia e crescia. Passavam por cima dela as nuvens ligeiras como caravelas e não as via; cantavam as rolas e o cuco, deixá-los cantar; batiam os manguais nas eiras, chiavam os carros da lavoira e a tudo permanecia indiferente.(...)»
*
*
«A senhora Feliciana Lauriana, mal passou a trovoada, foi-se até ao quintal. A terra parecia tão fresca e louçã que nem que acabasse de sair do molde novinha em folha. Regalada, não avistou, porém, a rica abóbora, mimo do panelão se lhe juntarem presunto e salpicão. E depois duma careta de assombro, boca escancarada, gritou:
-- José Barnabé!?
-- Ué?!!
Seria aquele papa-moscas ou o eco? E deitou a correr. Foi encontrá-lo à beira do rio, de olhos fitos na corrente, como se estivesse à espera dum bacalhau.
-- Mulher -- exclamou -- lá se foi a aboborinha!
-- Aí foi?! Pois se foi, nem telhado, nem panelinha!
Em seu desafogo, mestre grilo fazia à boca da lura, para cigarras, ralos, rãs, sapos, a história -- a sua história -- da catástrofe dum dia de verão:
-- Cri-cri-cri! Muito me eu ri!!! Cri-cri-cri!...»
Aquilino Ribeiro, "Arca de Noé, III Classe" (1935). Contos para crianças.
Tenho de ler esse.
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