«O saco», de A. M. Pires Cabral, O Diabo Veio ao Enterro (1985).
Não será bem um conto, antes uma apresentação do Tio Zé das Candeias, narrador dos dez textos seguintes, num estilo aprimoradíssimo e culto, pulsante e contagioso, moderno e intemporal, apesar da rusticidade de superfície, lembrando os grande mestres a cuja família o autor pertence: Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro, João de Araújo Correia, Tomaz de Figueiredo.
O incipit: «Quando, nesta corda de aldeias sabiamente semeadas na Serra de Bornes, dois amigos cozeram ao sol de muitos anos, um por um, os tijolos com que se constrói a amizade, e se procuram quase sem dar por isso para as longas cavaqueiras ou silêncios com que preenchem os dias, e parece que, não estando um, o outro esmorece e estiola, e se sabem confortar, ainda que sem palavras, nas horas de luto e desgosto, e alegrar do mesmo riso se a hora é de riso, e, por tão amigos serem, às vezes marralham, ralham e cortam impetuosamente relações, que retomam, com um sentimento compartilhado de culpa e arrependimento e um não saber que fazer com as mãos, no dia imediato, e cada qual nada faz, não deita semente à terra nem leva vaca à cobrição nem nada de nada sem ouvir o parecer do outro; quando um caso desses se dá, a comunidade não lhe fica indiferente e a linguagem popular, cujos recursos poéticos é raro exorbitarem do mundo concreto em que o povo se move, designa Pílades e Orestes com uma metáfora definitiva: o saco e o baraço.»
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