sábado, julho 01, 2023

paixões, comprazimentos, contrariedades & outros caracteres móveis

«E a catedral surgia-lhe  em olímpica nudez, remoçada, muito branca, em toda a beleza ideal do século XIV!» Manuel RibeiroA Catedral (1920) 

«Estatura sobre o mediano, a sua cinta era tão estreita que cabia quase no acincho  de fazer o queijo; tinha o ventre escorrido, seco, e as ancas desciam mais arredondadas e certas que os lados dum cantarinho; logo acima, os seios era dois cogulos de coalho em que houvessem caído duas pétalas de rosa, e o pescoço, mais alto que de razão, parecia, na parte que se sobrepunha ao chambre, de andar à queima do sol e do vento, cingido duma ampla gargantilha de oiro velho.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926) 

«Mas o sorriso dela foi tão melancólico, coisa tão a despegar-se dos lábios, tanto de deitar fora, que ele protestou:» Ferreira de Castro, A Lã e a Neve (1947)

4 comentários:

Manuel M Pinto disse...

«Que dias aqueles! As andorinhas que fabricavam os ninhos com a pachorra e arte de pasteleiros amassando pudins de chocolate para mesa rara, suspenderam-se inquietas e desconfiadas.
(…) Num aprumo de madre abadessa em dia de lausperene, D. Alexandrina arrasta o seu grande xaile de seda preta. Toda ela traja de preto, o que lhe põe em realce a tez, mescla especiosa, vermelho-branco, de maracotão. É uma senhora nutrida e bem conservada, dando um pouco a impressão de pata, que medrasse fechada numa tulha, pelo que há de desaprendido e lento no seu andar e pela hesitação dos olhos. Tem ao mesmo tempo um ar de tia andaluza, ainda no viço, o que lhe atenua o meneio difícil e a redundância das carnes. O abdómen é que exorbita um tanto da sua linha cheia de basílica; é abdómen que trai o povo, com fome e com indigestões de ervanço e bola-milha, de permeio; ventre testemunhal da Alexandrina das canastras.
Nada feia, luz-lhe no olho esquerdo uma fugacidade instantânea de estrabismo; confunde-se, no entanto, com o fulgor doirado da sua pupila de fera. Possui lindos e fartos cabelos cor de chama, que enrola para a nuca em áspide, e boca divina; de frescos, os seus lábios lembram as margens floridas duma fonte. Eles, o toucado sumptuoso, a tonalidade rara de pele, os ademanes de luxúria tornam-na quase apetecível. Em duas palavras: uma Susana, se casta não sei, mas formosa, que varreu os restos de juízo a um velho, rico de bens e de pergaminhos, que tomava ares na estrada de Lamego-Moimenta de carro aranha, cobrejão pelos joelhos magros, olhos libidinosos para as raparigas que passavam de perna ao léu. Não se sabe por que linhas, neste entremez de amor, a Providência despachou o cesteiro para o outro mundo e impeliu a viúva com a filha para o solar do ricaço, cujos ossos escanifrados deviam tiritar, nostálgicos de carne farta.»
Aquilino Ribeiro, "Aninhas" (novela)
Tui, Primavera de 1932.

Manuel M Pinto disse...

Carlos de Oliveira faleceu há 42 anos: ( 1 de Julho de 1981)

seguindo o fio
da tinta
que desenha
as palavras
e tenta
fugir ao tumulto
em que as raízes
grassam,
engrossam, embaraçam
a escrita
e o escritor

Carlos de Oliveira, "Micropaisagem" (1969)

R. disse...

Outro grande escritor, o Carlos de Oliveira.

Manuel M Pinto disse...

«Quem sabe de Carlos de Oliveira?»
«(...) Um autor, que frequento com enorme prazer, é Carlos de Oliveira, tão injustamente esquecido pelo analfabetismo triunfante. Poucos, como ele, trabalharam tão duramente, e com tanto rigor, na poesia e na prosa, a palavra. Essa tarefa de despojamento explicou-a ele em O Aprendiz de Feiticeiro: "O trabalho oficinal é o fulcro sobre que tudo gira. Mesa, papel, caneta, luz eléctrica. E horas sobre horas de paciência, consciência profissional. Para mim, esse trabalho consiste quase sempre em alcançar um texto muito despojado e deduzido de si mesmo, o que me obriga por vezes a transformá-lo numa meditação sobre o seu próprio desenvolvimento e destino".»
«(...)Páginas que, por muito que haja para ler, não podemos esquecer. É por isso que o silêncio sobre Carlos de Oliveira (das próprias Universidades) é simplesmente criminoso.»
Fernando Paulouro Neves, Dezembro de 2014.

Mestre Aquilino costumava dizer: "sou mais conhecido do que lido"...