terça-feira, fevereiro 15, 2022

mais notas sobre a Ucrânia

 1. Hoje. A retirada parcial de tropas, parece que previamente calendarizada, não pode deixar de ser lida como um gesto de boa-vontade por parte da Rússia, no dia em que recebe o chanceler alemão, e ao mesmo tempo de prudência em face das fortes sanções económicas  dos Estados Unidos e da UE, no caso de uma invasão. Invasão que, de acordo com analistas militares que tenho ouvido, se efectuaria ou efectuará em caso de provocação do lado da Ucrânia, v.g. um ataque militar contra os russos do Donbas.

2. A estratégia russa.  No entanto, nem as preocupações permanentes da Rússia se dissipam, nem a estratégia de rapina norte-americana previsivelmente se aplacará. Não podendo os Estados Unidos defrontar militarmente a Rússia sem que isso provoque uma guerra mundial, a estratégia de desestabilização do regime passa pela tentativa de asfixia económica, que a breve prazo terá consequências para o establishment russo, e isso foi certamente tido em conta pelos russos.

2.1. Tudo isto é especulação, espera-se que da boa; aliás, o que de válido pode haver nas últimas linhas não se deve a mim, mas ao major-general Carlos Branco, que tem sido cristalino.

3. Conceitos estratégicos. Os países movem-se por interesses permanentes, independentemente de quem esteja no poder, sendo os mais determinantes os que são condicionados pela Geografia e pela História. As questões económicas, sendo importantes, e também estratégicas, são conjunturais. A Rússia, várias vezes invadida ao longo dos séculos, tem uma sensibilidade especial na preservação do seu espaço (tal como, por exemplo os países bálticos o têm em relação à própria Rússia, ou a Polónia, sua "inimiga" (ou competidora) histórica). 

4. A estratégia americana. Para além da rapina (im)pura, a partir da altura em que os EUA tomaram uma posição de condicionamento do país, bases militares na Ásia Central, adesão dos países ex-URSS à Nato, entre outras, os russos obviamente desconfiam. Até no tempo de Ieltsin, no meio do marasmo, eles não deixaram de vincar a sua posição em face aos Estados Unidos, com a ocupação do aeroporto de Pristina, para embaraço dos "aliados" americanos e a sua costumeira má-fé.

5. Ainda os comentadores. Do que tenho lido e visto, a generalidade dos comentadores é uma de três coisas: incompetente, vesga, ou intelectualmente desonesta. Incompetentes, quando se comenta sem ter conhecimentos da história da região e dos interesses estratégicos; vesgos quando se deixam toldar pelo sentimento anti-Putin, alvo, de resto, de uma propaganda negativa fortíssima, sem perceberem ou não querendo perceber, que o problema está muito para lá de Putin; e a pura desonestidade intelectual, endossando a posição americana e o seu instrumento da Nato, sem se referirem a todos interesses, claros e obscuros, que estão por detrás. 

Ainda hoje na rádio, ouvindo um português que vive na Ucrânia, insuspeito de simpatia por Putin, dizia que enquanto que a adesão à UE é uma aspiração colectiva, ninguém está propriamente interessado em aderir à NATO; a sua conclusão (óbvia conclusão para qualquer observador minimamente informado e isento) é a de que o país (e o seu povo) está a ser usado para interesses que não são seus. Também posso falar da cabeleireira ucraniana da minha mulher, bastante consciente dos vínculos históricos entre ucranianos e russos, para se deixar impressionar pelos protestos de defesa da Ucrânia dos Estados Unidos e os cãezinhos amestrados da Nato.

É por isso que, exceptuando os analistas militares, que sabem do que falam, e casos muito raros de comentadores isentos e honestos, como o da académica Sónia Sénica, conhecedora da história e cultura da região, a maioria daqueles são confrangedores. Ouvir Pires de Lima ou um porta-voz do Pentágono é a mesma coisa; no Domingo, no habitual debate entre João Soares e Miguel Poiares Maduro, ver este a fazer-se de ignorante, talvez por medo de tomar uma posição isenta, ou ainda ontem, Lívia Franco, outra comentadora habitual, em conversa de café, aos saltinhos e aos papéis, querendo fazer parecer que não*, foram alguns dos muitos espectáculos tristes do acompanhamento mediático desta crise. **

* Só vi a parte final do painel, em que um outro militar, cujo nome não retive, marcou a habitual diferença da seriedade e do estudo.

** Gosto muito mais de elogiar do que atacar, mas não posso deixar passar em claro o que considero ser intervenções de comentadores impreparados ou parciais, medíocres ou enganosos num assunto tão sério como este. Vir para a televisão falar sobre uma crise com esta magnitude, não é propriamente o mesmo que ser convidado do Cabaré da Coxa.

6 comentários:

sincera-mente disse...

Sinceramente não compreendo a sua visão. Afinal, quem é que cercou um país soberano com cem mil homens e mais o que se sabe? Uma brincadeira inocente? Só fala do Biden...

R. disse...

Caro, talvez porque esses 100 mil homens sejam dissuasores da entrada da Ucrânia na NATO, com os mísseis americanos a cinco minutos de Moscovo.

Dir-me-á: ah e tal, eles são soberanos e mais não sei quê. Pois são, mas a soberania tem custos. Se o seu soberanismo servir para constituir-se ameaça a um país vizinho, esse mesmo país vizinho tem todo o direito a defender os seus interesses.

O Macron avançou com a proposta de um país neutral, mas parece que os americanos rejeitaram. Mesmo que a cúpula dirigente ucraniana o tenha feito (porque o povo está à margem), o que é a Ucrânia mais do que a Finlãndia, esse pobre e infeliz país que foi forçado a ser neutral no tempo da Guerra Fria? Pois não me parece que uma valha mais que outra, mas tamb+em aqui seria preciso que fosse a Ucrânia a decidir.

Quanto ao Biden, não sei se o admira ou que crédito lhe merece. Lembro apenas que a criatura votou ao lado dos republicanos do George W. Bush e dos patifes que o manobravam, a favor da invasão do iraque, país que como todos sabemos (disse-nos o Durão Barroso) era detentor de armas de destruição maciça, apesar de tal ser desmentido, se bem se lembra, pela equipa de inspectores da ONU, lideradas por um sueco. Pormenores.

Nunca me esqueço do que dizia o Franco Nogueira, que foi embaixador e ministro nos Negócios Estrangeiros, adaptando uma frase célebre do seu mentor: «Em política internacional, o que parece não é.»
Tenho-o verificado sempre.

sincera-mente disse...

OK, Putin quer impedir (à força bruta) a adesão da Ucrânia à NATO. Mas, pergunto eu: onde está o pedido de adesão da Ucrânia à NATO? O gajo sonhou um dia com isso e, logo de manhã, mandou aquela cambelhada toda a divertir-se para o gelo, às portas do país vizinho...
Quanto aos USA, também não os admiro...

R. disse...

Infelizmente. as relações internacionais passam ainda pela lei do mais forte. Mesmo na UE, quando é preciso. Mas a propósito desta, foi preciso pelo menos duas guerras mundiais e dezenas de milhões de mortos em 14-18 e 39-45, para que exausta e exangue, a Europa se decidisse a ruma para uma solução pré-federal.

A adesão da Ucrânia à Nato está desde logo inscrita na constituição, depois do golpe orquestrado pelos americanos.

Quanto ao Putin, seja qual for a nossa opinião sobre ele, pelo menos havemos de concordar que não se trata de um tontinho ou alucinado. Experimente ver o longo documentário que com ele fez o Oliver Stone, grande realizador e heróis de guerra do Vietname.

Convém também não esquecer os massacres de russos pelo neo-nazis ucranianos (o Hitler fez da Ucrânia uma república fantoche, liderada por um tipo chamado Stepan Bandera, que deixou saudosistas; o mesmo se passou na Croácia, com o Ante Pavelic). Ou a proibição do ensino do russo nas escolas que é não só uma língua materna de de milhões de ucranianos.

Continuo a dizer-lhe: nós somos bombardeados por doses maciça de propaganda e desinformação, e convém, nesta campo como noutros, procurar distinguir o trigo do joio. Posso enganar-me? nada mais plausível, mas pelo que sei e vou acompanhando, parece-me estar mais próprio da realidade do que se me limitasse a fazer a minha opinião pelo que ouço nos telejornais, em que a propaganda é debitada de forma acéfala.

Eu não sei se reparou nos links que postei anteriormente com duas crónicas do major-general Carlos Branco; se tiver tempo faça-me o favor de lê-las, pois fornecem dados que não encontramos nas simples notícias que enxameiam televisões e internet.

https://jornaleconomico.pt/noticias/a-dificuldade-que-a-europa-tem-em-aprender-839138

https://jornaleconomico.pt/noticias/por-quem-dobram-os-sinos-em-kiev-846286

Abraço

sincera-mente disse...

Caro Ricardo:
Acabo de ler uma das crónicas de Carlos Branco, a intitulada 'Por quem os sinos dobram em Kiev'. Confessando, embora, o meu quase analfabetismo nestas matérias de geoestratégica e geopolítica e a fraca bagagem em História, achei-a altamente tendenciosa, ao ponto de me perguntar se o apelido do senhor não será mais propriamente Brankevsky, em vez de Branco. Eu pensava que o regime vigente na Ucrânia é o democrático e o presidente foi eleito por larga maioria, em eleições justas e livres. Não sei, assim, porque se alarga o articulista em considerações sobre tutela americana sobre o país e coisas do estilo. O povo ucraniano é culto e evoluído e não tem culpa que no leste do país viva uma numerosa comunidade russa. Se problemas há na sua 'integração' eles devem resolver-se localmente, e o papá (papão) 'czar' não tem que meter o bedelho, como se fosse o dono daquilo tudo.
Sobre essa realidade, pelos vistos aceite como uma inevitabilidade, de as superpotências terem regras próprias, 'serem mais iguais que as outras' na sua actuação no palco mundial, e poderem ameaçar, condicionar as opções e até invadir os outros países, a minha posição é abrir a boca de espanto. Mas talvez eu seja mesmo um lírico...
Abraço!

R. disse...

Viva, Fernando.

Não creio, é de um estudioso, militar e académico, pertencente a um instituto universitário do estado português.

A história recente da Ucrânia está cheia de equívocos, e nem eu sou um especialista nem aqui é o lugar para o desenvolver.

Quanto aos americanos, acha que eles não estão metidos até ao pescoço em tudo isto? Não se esqueça que estamos a tratar de impérios, e um deles é o único global, que saiu vencedor da Guerra Fria.

Sobre a "culpa", o que diz de uns aplica-se exactamente da mesma forma aos outros; mas a situação é mais complexa, e além do mais este antagonismo tem sido criado artificialmente, como de resto já sucederam na Iugoslávia. É uma longa história.

Quanto aos russos, se como diz, se comportam como donos daquilo tudo, o que dizer dos americanos que têm de se esticar muito mais para o bedelho lá chegar? Não me parece que haja vizinhança entre os Estados Unidos e a Ucrânia, mas, claro, já sabemos que eles, em defesa da "democracy", sacrificam-se.

Quanto ao seu autoapregoado lirismo, diga-me uma coisa, meu caro: qaundo é que alguma vez na História foi de outro modo? Se olhar para a História, que começa já ontem, verá que esta tem sido um longo cortejo de horrores, e que o pouco de luz que se pode distinguir no meio dos escombros, são tímidos avanços -- são avanços, mas tímidos. Nas nossas vidas o que nós já não vimos... Mas devemos sempre lutar, à nossa medida, para que deixe cada vez mais de ser assim. Talvez quando o ser humano se desanimalizar, porque nós esquecemo-nos de que somos animais e que o que chamamos civilização é uma camada muito fina que se parte com um impacto mais rude. Tem sido e continuará a ser assim. Até quando, não sei; mas não é para depois de amanhã.

Outro abraço