terça-feira, agosto 18, 2020

um ser à parte - «Eurico o Presbítero» (5)

Continuar: «Muitas vezes, pela tarde, quando o sol, transpondo a baía de Carteia, descia afogueado para a banda de Melária, doirando com os últimos esplendores os cimos da montanha piramidal do Calpe, via-se ao longo da praia vestido com a flutuante estringe o presbítero Eurico, encaminhando-se para os alcantis aprumados à beira-mar.»

Eurico, recolhido para o mundo e aberto para Deus, entregava-se à composição poética em Seu louvor, ao entardecer, ficando até altas hora nas falésias sobre a baía de Carteia, aproveitando -- como Herculano explica no corpo do texto -- a sanção de Santo Isidoro de Sevilha durante o IV Concílio de Toledo (633): «Nenhum de vós ouse reprovar os hinos compostos em louvor de Deus.» O estro de Eurico varre a Hispânia cristã. Preterido no seu amor por Hermengarda pelo pai desta, ao consagrar-se a Deus e a todos acolhendo e consolando como presbítero, servo ou nobre, rico ou pobre, a sua condição poética fê-lo entender a natureza do cristianismo, radicada no amor: «[…] Eurico percebera claramente que o Cristianismo se resume em uma palavra -- fraternidade. Sabia que o Evangelho é um protesto, ditado por Deus para os séculos, contra as vãs distinções que a força e o orgulho radicaram neste mundo de lodo, de opressão e de sangue; sabia que a única nobreza é a dos corações e dos entendimentos que procuram erguer-se para as alturas do céu, mas que essa superioridade real é exteriormente humilde e singela.»
Surge aqui o Herculano, liberal adversário da tradição no que esta tinha de manutenção ilegítima de privilégios, a começar pelos da própria Igreja, estendendo-se à restante sociedade. (Aliás o escritor recusou ser nobilitado pelo rei, seu antigo pupilo, ao contrário do que sucederia com Garrett, Castilho e mais tarde Camilo, que andou na pedincha.) Com o amor de Deus, veio «o amor da pátria [...] despedaçada pelos bandos civis» e a descrença nas elites. A ténue esperança nas qualidades do povo ainda parcialmente não corrompido não afasta a visão horrenda da «pátria cadáver», que verte para o seu canto.

Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844), cap. III: «O poeta» pp. 12-20. 

2 comentários:

Jaime Santos disse...

Belas palavras, as de Herculano e também as suas de homenagem a esse nosso intelectual oitocentista (não me esqueço que a riqueza do acervo da nossa BPMP muito deve ao trabalho dele).

Quanto à recusa de honrarias, seria Herculano um cripto-republicano :) ? Porventura um daqueles que acreditava nas repúblicas coroadas?

'Foge cão que fazem de ti barão; Para onde se fazem de mim visconde?', cantava creio eu Garrett e depois foi o que se viu...

R. disse...

Obrigado, meu caro.
Creio que não; as ideias dele estão bastante estudadas por vários autores de diferentes quadrantes, felizmente. O que sei é que era um municipalista, mas quanto a mais pormenores não lho sei dizer. E sim, era o Garrett, aliás visconde.