segunda-feira, agosto 24, 2020

um homem aniquilado - «Eurico o Presbítero» (8)

Continuar: «O mar estava tranquilo, e o ar puro e diáfano. As costas de África fronteiras, lá na extremidade do horizonte, pareciam uma orla escura bordada no manto azul do firmamento.»
Abril de 711. O refúgio em si, ao largo da bacia de Algeciras, na embarcação de Ranimiro, pretexto para, mais uma vez, acentuar a diferente sensibilidade entre as almas simples, como a do barqueiro, e as inquietas, como a sua, Eurico, poeta e guerreiro feito sacerdote.
«Bem-aventurado, pensei eu comigo, aquele em que os afagos de uma tarde serena de primavera no silêncio da solidão produzem o torpor dos membros; porque nessa alma dormem profundamente as dores no meio do ruído da vida!»
Saudade de Hermengarda e do amante arrebatado e sincero que foi; revolta e despeito contra a os que lhe preteriram a pureza à linhagem e ao pecúlio; e contra a própria amada e o pai desta, que a prostitui honradamente.
«Porque mulher bárbara não entendeu o que valia o amor de Eurico; porque velho, orgulhoso e avaro sabia mais um nome de avós que eu, e porque nos seus cofres havia mais alguns punhados de oiro que nos meus.»
Desespero sem remissão: esquecer é uma impossibilidade, a escapatória é uma espécie de "suicídio": mais do que o tomar ordens, haverá outro modo de se aniquilar, nas graças de Deus.


Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero, cap. VI, «Saudade», pp. 38-45


2 comentários:

Manuel Nunes disse...

Proveitosa esta série de artigos dedicada ao livro de Herculano e ao seu presbítero godo. Anda tudo cheio dos escritores da moda, e isso também se faz sentir nas comunidades e nos clubes de leitura. Aqui há tempos, feriram-me os ouvidos (para ficar só pelo campo sensorial) as palavras de uma leitora: «Não gosto do romantismo». Como se fosse possível riscar do nosso gosto esse período literário a que mesmo os modernos vão beber. Afinal, lá possível parece que é, mas é do domínio da indigência.
Tão boa a série que até deu para aparecer o Cavaleiro Negro sobre duas rodas…
Sendo este um livro que enfrenta a ideia do celibato religioso, Herculano vai buscar os godos para falar dos coevos. Uma passagem do prólogo autoral que julgo não ter sido citada nos artigos: «Sabeis qual seja o valor da palavra “monge” na sua origem remota, na sua forma primitiva? É o de – “só e triste”.

R. disse...

Obrigado, meu caro, ainda bem que gosta! Deu me para isto agora...
Abra;o