continuar: «O sono ou a vigília, que me importa esta ou aquele? As horas da minha vida são quase todas dolorosas; porque a imaginação do homem não pode dormir.»
Madrugada de 8 de Abril de 711, no presbitério Eurico lança ao pergaminho a premonição que o assaltou, vinda da costa de norte de África. Mas primeiro a evidência do contraste entre a noite do povo simples, e a sua, poeta ilustrado -- uma reflexão em que Herculano entra de novo na personagem: «Para o povo ignorante e ìmpiamente crédulo, a noite é cheia de terrores; em cada folha que range na selva ele ouve um gemido de alma que vagueia na terra: [...] / Mas quando jaz no leito de repouso, o seu dormir é tranquilo. Ao cruzar os umbrais domésticos, esses terrores sumiram-se com os objectos que o geraram. A sua alma parece despir-se da fantasia grosseira, como o corpo se despe da estringe áspera que lhe resguarda os membros.»
Depois, esse pesadelo em que da rocha do Calpe (que, ironia, viria a tomar o nome do invasor, Gibraltar, ou montanha de Tárique), vê o mar -- o elemento que tanto separava como era veículo de aproximação entre a Europa e a África -- estacar como morto: «Era horribilíssimo ver convertido em cadáver, de todo imóvel e mudo, o oceano; aquele oceano que mais de quarenta séculos nem um só dia deixou de revolver-se em torno dos continentes [...].» E de cada lado do continente nuvens formando-se em bloco, indo ao encontro umas das outras, prefigurando o recontro de dois exércitos, numa imagem portentosa e espectral:
«Então pareceu-me ouvir muito ao longe um choro sentido misturado com gritos agudos, como o do que morre violentamente, e um tinir de ferro, como o de milhares de espadas, batendo nas cimeiras de milhares de elmos.»
A premonição de um castigo divino lançado por Deus aos decadentes visigodos, tal como séculos antes os hunos -- o outro sempre visto como o anticristo, que em certa medida o era de facto: «Contam-se coisas incríveis desses povos que assolam a África, chamados os Árabes, e que, em nome dum crença nova, pretendem apagar os vestígios da Cruz.»
«Então pareceu-me ouvir muito ao longe um choro sentido misturado com gritos agudos, como o do que morre violentamente, e um tinir de ferro, como o de milhares de espadas, batendo nas cimeiras de milhares de elmos.»
A premonição de um castigo divino lançado por Deus aos decadentes visigodos, tal como séculos antes os hunos -- o outro sempre visto como o anticristo, que em certa medida o era de facto: «Contam-se coisas incríveis desses povos que assolam a África, chamados os Árabes, e que, em nome dum crença nova, pretendem apagar os vestígios da Cruz.»
Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844), cap. VII, «A visão», pp. 46-51
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