quinta-feira, agosto 20, 2020

elegias - «Eurico o Presbítero» (6)

Continuar: «Era por uma destas noites vagarosas do inverno em que o brilho do céu sem lua é vivo e trémulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tétrica.»

Prostrado com a decadência goda, o império do interesse próprio em vez do bem-comum, este breve capítulo tem por epígrafe uma frase do Memorial dos Santos, de Santo Eulógio de Córdova: «Onde é que se escondeu enfraquecida a antiga fortaleza?», e evoca a glória de Teodorico I, rei dos visigodos, morto na própria batalha em que é derrotado "o flagelo de Deus", Átila o Huno  (541). Eurico escreve solitário no presbitério numa «meia-noite dos idos de Dezembro da era de 748» -- data de acordo ainda com a era de César (entre nós vigorou até ao reinado de D. João I) --, trinta e oito anos somados à actual era de Cristo. Fazendo a conversão, está-se pois no fim do ano de 710, que precederá a invasão muçulmana, cuja presença vigorará na Península Ibérica durante os setecentos anos a seguir.

Desgostoso da humanidade, Eurico remete-se ao convívio com a Natureza, expressão da criação divina: «Por cima da minha cabeça passava o norte agudo. Eu amo o sopro do vento, como o rugido do mar: / Porque o vento e o oceano são as duas únicas expressões sublimes do verbo de Deus, escritas na face da terra quando ainda ela se chamava o caos. / Depois é que surgiu o homem e a podridão, a árvore e o verme, a bonina e o emurchecer. / E o vento e o mar viram nascer o género humano, crescer a selva, florescer a primavera; -- e passaram, e sorriram-se.»

Tudo é vão ante a criação. Mas, como que adivinhando o desastre próximo, Eurico consola-se na certeza da Piedade, irmã da Esperança, aquela que «nunca morre nos céus.»

Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero [1844], cap. IV, «Recordações», pp. 21-30


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