Alexandre Herculano procurou nos romances históricos uma abordagem às mentalidades de época que não lhe dava uma heurística que relutava extravasar o dado documental. Debalde procurou suporte que lhe permitisse suprir essa lacuna na sua fundamental História de Portugal (1846-1853); e mesmo para as obras de ficção, a procura de vozes do passado que lhe transmitissem a dolorosa pena do celibato, cuja desumanidade desde a juventude o perturbava, resultou infrutífera, como assinala no prefácio do Eurico:
«Essa crónica de amarguras procurei-a já pelos mosteiros, quando eles desabavam no meio das nossas transformações políticas. Era um buscar insensato. Nem nos códices iluminados da Idade Média, nem nos pálidos pergaminhos dos arquivos monásticos estava ela. Debaixo das lájeas que cobriam os sepulcros claustrais havia, por certo, muitos que a sabiam; mas as sepulturas dos monges acheia-as vazias.» Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero [1844], (ed. cit,, p.VI).
Fez, assim, apelo à idiossincrasia poética e ao escopo artístico, ciente de que o ficcionista de recursos tem a intuição que faltará ao historiador. A esta, junte-se a ideia supletiva do romancista como alguém que mede a temperatura do tempo, e por isso mais fidedigna a ficção do que obras contemporâneas, propositadamente concebidas para deixar um testemunho à posteridade. Podemos lê-lo num artigo da Panorama, cujo excerto magnífico foi transcrito por Vitorino Nemésio, na apresentação da edição crítica (1944 -- o mesmo ano em que o açoriano publica o talvez melhor romance português de sempre, Mau Tempo no Canal):
«Novela ou História, qual destas duas cousas é a mais verdadeira? Nenhuma, se o afirmarmos absolutamente de qualquer delas. Quando o carácter dos indivíduos ou das nações é suficientemente conhecido, quando os monumentos, as tradições e as crónicas desenharam esse carácter com pincel firme, o noveleiro pode ser mais verídico do que o historiador; porque está mais habituado a recompor o coração do que é morto pelo coração do que vive, o génio do povo que passou pelo do povo que passa. [...] Porque [os historiadores] recolhem e apuram monumentos que foram levantados ou exarados com o intuito de mentir à posteridade, enquanto a história da alma do homem deduzida lògicamente das suas acções incontestáveis não pode falhar, salvo se a natureza pudesse mentir e contradizer-se, como mentem e se contradizem os monumentos.»
Este historiar da alma -- porventura a mais significante das historiografias -- remete-me para a maravilhosa Svetlana Alexievich, que assim mesmo se definiu: «historiadora da alma», aqui já não se socorrendo (exclusivamente) da intuição, mas também do testemunho vívido e vivido.
Este historiar da alma -- porventura a mais significante das historiografias -- remete-me para a maravilhosa Svetlana Alexievich, que assim mesmo se definiu: «historiadora da alma», aqui já não se socorrendo (exclusivamente) da intuição, mas também do testemunho vívido e vivido.
3 comentários:
«O noveleiro pode ser mais verídico que o historiador», não tenho a certeza. É verdade que Engels disse ter compreendido a sociedade francesa da Restauração sobretudo pelos romances de Balzac. E que o “noveleiro” tem essa superioridade que Aristóteles refere na “Poética” quando compara o poeta (o noveleiro) com o historiador: porque o historiador fala apenas do que aconteceu, enquanto o poeta fala daquilo que podia ou devia ter acontecido. A arte está na invenção, na transfiguração da realidade. Quanto à Svetlana, pelo pouco que li de um único livro seu, pratica a reconstituição dos temas históricos pelo método da entrevista. Pode ser exímia nesse trabalho, pode ser até que a sua escrita seja excelente e que haja alguma dose de invenção (de arte) na produção dos depoimentos recolhidos, mas não estou em condições de o comentar. Prefiro Dostoievski , que agora ando a reler. Um noveleiro muito verídico, acho eu, e que pela ficção também sabe historiar a alma.
Viva, caro. O Herculano, como historiador escrupuloso, não fantasiava, e por isso podemos detectar as suas intuições nos romances históricos, se bem que ele fosse o primeiro a precaver o leitor para não reduzir essas obras a tentativas de reconstituição de mentalidades, uma vez que o Herculano cidadão e político também lá está.
Também não deveremos sacralizar o historiador, uma vez que nenhum está ao abrigo da sua circunstância. Não há, por isso, História pura, como há Ciência pura, mas 'simplesmente' aproximações.
Pois, no Dostoievski, como todos os grandes ficcionistas: é sempre à ficção que se vai buscar a verdade. E voltamos, desta forma, ao Herculano, de acordo com o espírito do meu post.
Quanto a Svetlana, só lhe li aquele, e gostaria de ler outros, excepto o que versa Chernobyl, por falta de coragem. Mas o que li é obra-prima absoluta, talvaz mais ainda por não ser ficção...
Obrigado, amigos, por tão sustanciosas considerações.
De tudo isto fica-me uma conclusão que, a cada dia que passa e mais me aproximo da meta, mais me convence: A nossa passagem por este Planeta não tem grande sentido. É uma luzita que se acende, nos deslumbra, e logo se apaga, deixando tudo vazio. A única coisa que dá algum sentido à vida do Homem, ou seja, à vida inteligente, é a ARTE! Em todas as suas expressões, a começar pela Música e a acabar na Literatura, em que o simples nascer ou pôr do Sol podem dar lugar a uma página de sublime beleza.
Esse excerto de Herculano citado pele Nemésio faz pensar e, depois, fazer que sim com a cabeça...
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