«Finalmente, dá-se conta do passamento de Arantes Braga, jornalista de incendiado verbo, socialista e independentista, o qual abandona esta estória no término do presente capítulo, isto é, a dezassete de Novembro de mil oitocentos e oitenta e cinco (assim o viu a mucama Josephine) em seu próprio caixão.» José Eduardo Agualusa, A Conjura (1989)
«Arcóbriga e Meríbriga nasceram sob a protecção divina. Tanto quanto a memória dos homens recorda, as muralhas das duas povoações nunca cederam a um ataque e mesmo quando soou a hora da derrota não houve sofrimento ou ignomínia. Por isso, os antigos habitantes, agora instalados ao longo da ribeira, continuam a trazer oferendas à divindade, pois sabem que lhe devem a vida, o pão e a segurança que lhes permite amanhar a terra, caçar, apascentar o gado e, pela tardinha, acender com toda a tranquilidade os seus fogos para preparar a refeição da noite.» João Aguiar, A Voz dos Deuses (1984)
«Ao contrário do que propalou pelas vias da coscuvilhice da vizinhança, a gangrena que o vitimou não derivou do ferro ferrugento da cavilha, mas de um panarício anterior ao atentado -- o que não impediu que tanto a acção concreta como a calúnia me marcassem para o resto da vida, com a memória escaldante de uma tragédia.» António Victorino de Almeida, Coca-Cola Killer (1981)
1 comentário:
PARIS/MCMXIV
SEGUNDA-FEIRA, 21 DE SETEMBRO
«... Em verdade ao espírito repugna uma causa, por muito suprema que seja, mercê da qual se produza em poucos dias ou horas o aniquilamento da obra cuja construção levou duzentos e cinquenta anos de labor ininterrupto, em génio e vontade mais assombrosa que o mais assombroso trecho de montanha, vale, bosque, catarata. Memorável por ser a ara santa em que iam jurar os reis de França, a catedral de Reims era um dos oásis de divina beleza à flor da terra, em geral feia e repulsiva. Decerto, porque a arquitectura acompanha a humanidade desde o seu alvorecer, não há arte que exerça impressão mais imediata e profunda. Nenhum homem, desde a inteligência mais requintada à mais rude, desde o coração mais sensível ao mais frio, ficava indiferente ao sortilégio da Sé veneranda. Além de pacificar, transportava a alma para fora dos limites angustiosos do horizonte de todos os dias. Era a mediadora entre a terra e o céu. Destruí-la é como apagar um fanal no mar escuro. Dos malefícios de que é objecto não torno, em minha consciência, responsável a Alemanha ou a França, mas o espírito imundo que gerou a guerra.»
Aquilino Ribeiro, "É A GUERRA-Diário", (Paris, 1914). Publicado em 1934.
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