quarta-feira, janeiro 11, 2023

notícia do mar desértico

Outrora um dos maiores lagos do mundo, situado entre o Cazaquistão e o Uzbequistão, o recuo do Mar de Aral é considerado uma das maiores tragédias ecológicas da nossa época. Consequência de políticas desenvolvimentistas erradas, para cuja concretização foram desviados os seus rios afluentes, a região envolvente é hoje descrita pelos autóctones como o deserto de Aral… É neste cenário que José Carlos Fernandes (Loulé, 1964) e Roberto Gomes (Silves, 1983) desenvolvem, a primeira história deste álbum, que lhe dá também o título: «Mar de Aral».

A capa é magnífica. Apresenta uma figura misteriosamente suspensa na âncora de um navio, imagem cujo significado só apreenderemos em todo o seu alcance depois de lida esta narrativa. As palavras de José Carlos Fernandes ganham um encantamento poético à medida da desolação que se nos depara: «O mar fugiu como um cavalo assustado. / O mar fugiu e deixou atrás de si barcos ferrugentos, planícies de sal e aldeias piscatórias encalhadas na areia.» Mas como estamos no domínio do fantástico, o argumento desenvolve-se em torno dos estratagemas de sobrevivência dos peixes desse habitat.

O desenho faz jus ao que a capa nos promete; a disposição das vinhetas realça os grandes espaços de solidão e abandono (notável a página dupla em que se representa a fímbria que une mar e deserto); nas cores, predominam o castanho, o sépia e os tons arenosos, contrastantes com as três pranchas finais, quando a acção passa a desenrolar-se numa viela nocturna de cidade velha, nas proximidades, carregando de negro a atmosfera de estranhamento que até aqui a narrativa nos transmitira.

É a mais extensa de cinco ficções inauditas, e a que de longe se destaca, mas todas se recomendam: do tom paródico de «Um boi sobre o telhado» e «Roupas de defunto», à melancolia de «A inauguração do Canal do Panamá» e «A arte esquecida de nadar rio acima».

Para não destoar, as notas biográficas dos autores participam da irrealidade geral: José Carlos Fernandes aparece identificado como um misterioso cientista cuja vida decorreu entre 1891 e 1938. Entusiasta da Revolução Russa de 1917, transfere-se para a pátria soviética, alterando o nome para Osip Ernantzev. A acreditar no biografema, e para sermos eufemísticos, não foi propriamente bem sucedido. Quanto a Roberto Gomes, é apresentado ao leitor como um peixe do Mar de Aral, «que escapou por pouco a ser transformado em sushi».


Mar de Aral

argumento: José Carlos Fernandes

desenhos: Roberto Gomes

G. Floy Studio e Comic Heart, 2019

(Setembro de 2019)






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