quarta-feira, abril 30, 2025
zonas de conforto
Augusto Casimiro: «Há crimes que invocam o Amor da Pátria para se realizar. Há violências que se dizem por ele exigidas. Mentiras que dele querem viver e da sua força.» O Livro dos Cavaleiros (1922) § António de Cértima: .../... «E é entre estes dois pontos terminais da mais bela artéria urbanística do mundo que me parece dever fixar-se a verdadeira representação psico-fisiográfica de Paris -- que alguns pretendem deslocar para o território intelectual da Sorbonne, outros para a arte do Louvre, e ainda outros (ou outras) para os salões de Dior e Jean Dessès, na convicção de que só a inventiva dos grandes costureiros saberá definir perante o universo o poder criador da cidade.» .../... [14.VIII.1961], Doce França (1963) § Frei João Álvares ao monges do Paço de Sousa, 24-XII-1467: .../... «E assi de vós outros que vos deve nembrar como vos destes e oferecestes e consagrastes a Deus per vossos votos e vossa própria vontade, ca a mim não me prometestes nenhuma cousa, nem eu vos nom demando nem requeiro al senom o que deveis de pagar a Deus que o entregueis e deis a mim, que som seu procurador e mordomo que ele escolheu e me chamou à luz deste mundo do ventre da minha mãe, e me ungiu com o óleo da sua misericórdia e me pôs neste lugar antre vós, feito padre e abade, per a qual dignidade e ofício vós me nom elegestes nem me escolhestes, mas eu vos elegi e escolhi. E de como vos mantive e governei esse tempo que convosco estou, vós o sabeis e podeis delo dar testemunho.» .../... in André Rocha, A Epistolografia em Portugal (1965/85)
4 versos de Luísa Dacosta
«Longe, mentalmente, / e ainda com maior leveza / do que a das águas da maré, / imprimo, em mim, as rugas do teu rosto.»
«Aprendizagem», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
terça-feira, abril 29, 2025
o que está a acontecer
«Daí à torreta eram ainda uns trinta degraus, dos mais altos e pesados, daqueles que, sem se querer, fazem pregas indiscretas na barriga. / A bicha dentro do esófago da Torre, contava para si os martírios passados naquela ascensão; uns davam ah has de alívio, outros comparavam com a escadaria do Bom Jesus do Monte, com a Torre dos Clérigos e ainda recordavam a subida ao Santuário de Lamego.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
«Tratava-se então de levantar um muro de cantaria que fosse como uma fachada opulenta da gélida cidade de cadáveres; na planura que medeia entre o cemitério e as terras, o terreno via-se revolto; os carros de mão jaziam esquecidos; os montes de pedras miúdas e de argamassas antigas tornavam penoso o trânsito.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
1 verso de Vítor Oliveira Jorge
«e tu começavas caminhando, e todo o teu corpo se enchia de pequenos sons musicais, e quando paravas eu debruçava-me sobre a tua pele e ouvia a respiração da terra»
Sem Outra Protecção Contra a Noite (1980)
segunda-feira, abril 28, 2025
apagão
Depois das 11.33, a minha grande preocupação, tendo em mente a possibilidade de um ciber-ataque: onde almoçar e o quê? E também o tabaco, que se acabara. Tudo correu bem, felizmente.
3 versos de Alberto de Lacerda
«Canto porque as palavras / passaram cegas à espera / da luz da minha canção.»
«Sim», 77 Poemas (1955)
domingo, abril 27, 2025
o que está a acontecer
«Não que o meu sorriso fosse esgar, ou o meu gargalhar inexistente; mas uma certa palidez no semblante geral denunciava (ao que parece) más possibilidades. Foi nessa época que se pôs o problema de eu ser ou não envolvido a fundo nas malhas da F.R.I.P.M.S. (Fundação do Recrutamento Infantil Pró Movimento Selecta). Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«A taberna do Pescada ficava mesmo em frente ao cemitério dos Prazeres, e era frequentada pela gente do sítio, especialmente de noite, à hora em que os cabouqueiros e os britadores abandonam os seus trabalhos e entram na cidade, em ruído.» Fialho de Almeida, A Ruiva (1878)
«-- Pode-se ir lá acima? / -- É à vontade. / Degrau a degrau, de cabeça marrada aos pés, os visitantes trepavam lentamente. Ultrapassada a casa de defesa, resto de quarto só com paredes e bancos ao pé de velhas seteiras, o público respirava satisfeito. A cisterna então não deixava ver bem os fundos, espelhava de mais.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)
sábado, abril 26, 2025
sexta-feira, abril 25, 2025
2 versos de Luísa Dacosta
«Só o lume duma traineirinha / é pirilampo na noite.»
«Nocturno», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
alhures
«A Itália fez-me lembrar bastante Chicago, sobretudo Veneza, já que ambas as cidades têm canais e as ruas estão cheias de estátuas e de catedrais dos maiores escultores do Renascimento. / Naquele mês fomos ao atelier de Picasso em Arles, que então se chamava Ruão ou Zurique, até que os franceses a rebaptizaram em 1589, sob o domínio de Luís, o Vago. (Luís foi um rei bastardo do século XVI que era mauzinho pata toda a gente.) Woody Allen, Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura (1966) - trad. Jorge Leitão Ramos § «Se te houvesse convertido num fantasma, talvez um dia qualquer nos encontrássemos juntos para além do satélite artificial que os americanos querem atirar para o espaço: seríamos como dois elnçóis flutuando entre a terra e a lua; talvez uma noite qualquer provocássemos um eclipse.» Félix Cucurull, «Carta de despedida», Antologia do Conto Moderno - trad. Manuel de Seabra § «"Esta venda é feita em bloco e mediante o preço convencionado, que o Sr. Daudet, poeta, apresentou e depositou neste cartório em moeda corrente, o qual preço foi em seguida contado e levantado pelo Sr. Mitiflo, tudo na presença do notário e das testemunhas abaixo assinadas, do que se dá quitação sob reserva.» Alphonse Daudet, Cartas do Meu Moinho (1869) - «Prólogo» - trad. Fernanda Pinto Rodrigues
quinta-feira, abril 24, 2025
4 versos de José Régio
«Porque não vens, tu que não chegas, / Meu terrível fantasma real e vago? / E sonho... sim!, que vens, sim!, que te entregas / Na pobre carne que pago.»
«Poema da Carne-Espírito», As Encruzilhadas de Deus (1936)
zonas de conforto
António de Cértima: [14.8.1961] «Subo um pouco mais e, da planura verdejante do Rond Point, os olhos divertem-se a seguir o movimento da multidão zebrada de cores que sobe e desce a Avenida, e a aprisioná-la lá em cima, num cartaz modernista, junto do Arco glorioso que nos fala das preocupações arquitecturais e do instinto das batalhas do vencedor de Arcole e Austerlitz.» Doce França (1963) § Fialho de Almeida: «Porque, seriamente, nós volvemos de novo à flor desta sagrada terra que nos devora, uma vez, muitas vezes, em regiões várias, climas, vários e disfarçados consoante o humorismo da química que nos manipula.» «Pelos campos», O País das Uvas (1893) § Machado de Assis: «Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: -- a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia.» «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884) § José Bacelar: «Gritar, vituperar, amaldiçoar -- está bem ainda. Mas ai daquele que não faz como os outros -- ai daquele que friamente levanta um pouco o véu.» Revisão 2 -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana (1936) § Eugénio de Andrade a Jorge de Sena (1955): .../... «Bem vê, portanto, que a nossa camaradagem e amizade sai intacta do prémio, como não podia deixar de ser. / Diga-me quando puder qualquer coisa sobre a antologia do Pascoaes. Não voltou a pegar-lhe? Era bonito aparecermos com isso no próximo inverno. Quando passar pelo Porto, previna-me. Gostava de estar consigo. / lembranças à Mécia e o melhor abraço do seu / Eugénio.» Cartas de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena, ed. António Oliveira, 2015 § Raul Brandão: «A terra é dos probes -- teima ele. / Cheira a monte e arfa no escuro uma coisa sagrada -- o sonho dos pobres. As figuras da realidade desapareceram, outras figuras estão presentes como sombras carcomidas e que chegam ao céu. Um momento a brasa ilumina as mãos da senhora Emília que parecem de morta.» O Pobre de Pedir (póst., 1931)
quarta-feira, abril 23, 2025
5 versos de José Agostinho Baptista
«por vezes / as aves do litoral, em largos círculos à volta dos navios, traziam / notícias do norte que eu abandonara -- / campos de silêncio adormecidos pelos séculos, vinhas e árvores, / atalhos onde pela noite se reuniam as feiticeiras da ilha;»
«Morituri», Deste Lado Onde (1976)
o que está a acontecer
««Então, buscando o menos possível mudar-lhe a fisionomia, o antigo ar interior e íntimo (Na cantoneira onde a tia Mariana guardava a marmelada, nem tocar...), chamara um mestre-de-obras e assenhoreara-se de todo o edifício, aproveitando-o conforme a ideia que de longe lhe trabalhava no sentimento.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)
«1. Criado embora entre hálitos de faisão, cedo me especializei na arte de estender os braços. Dia após dia os mais laboriosos, cansativos forcejos projectavam meus membros anteriores em-frentemente. E isto assim até que perdi as mãos de vista.» Nuno Bragança, A Noite e o Riso (1969)
«Contra o que seria plausível esperar neste desigual processo de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e fadigas da jornada não se pode dizer que fosse o cavaleiro.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
terça-feira, abril 22, 2025
2 versos de José Alberto Oliveira
«Pernoitou nos arrabaldes de uma cidade estranha / e reviu sem gosto o princípio da matéria dada,»
«A Sede do Gado», O que Vai Acontecer? (1997)
segunda-feira, abril 21, 2025
um líder excepcional
Baptizado, educado na Igreja Católica, numa família que se dividia entre o ateísmo anticlerical e uma prática religiosa abaixo dos mínimos, por tradição, hábito e superstição, português e europeu, sou um ateu impregnado de cristianismo. Aliás, como qualquer um cujo coração está à Esquerda, a figura histórica de Jesus Cristo, a sua mensagem revolucionária, pregada ainda na Antiguidade, recorde-se, de que todos os homens são filhos de Deus e iguais na dignidade, só pode merecer a adesão de todos quantos atribuem a essa mesma dignidade um valor inegociável e sem cotação em bolsa.
O papa Francisco, Jorge Bergoglio, era desses. Por isso -- com as excepções do costume -- concitou não apenas o amor e a admiração dos seus fiéis, como de todos os homens de boa-vontade, qualquer que fosse a sua religião, ou não professassem credo algum, como é o meu caso.
Além disso, o seu humanismo e bom-senso, uma voz que se elevava sobre os guinchos das hienas da indústria bélica e os seus criados, na União Europeia e alhures, e sobre a indiferença que estes mesmos servos da UE já demonstraram ter diante do genocídio -- creio que só agora assumo esta palavra, e já vou muito atrasado -- dos palestinos e a condescendência para com os criminosos de guerra do governo de Tel-Aviv.
Como esquecer a ida a Lampedusa, no início do pontificado?; as palavras contundentes e cheias de indignação contra a "economia que mata"?; os latidos da Nato à porta da Rússia?; a vergonha excruciante de chefiar uma instituição religiosa com um histórico encobrimento de abusos sexuais generalizados que tornam uma parte da igreja num coio de crime e abjecção? A luta entre bem e mal trava-se também lá dentro. Francisco era do Bem, e só este é admissível.
Vai fazer imensa falta, e espero, que o próximo possa estar à altura do grande Francisco. Afinal, um papa continua a ser um líder político mundial e uma das consciências da humanidade.
3 versos de José Pascoal
«A rua é um largo claro / Onde as crianças brincam / Com os lábios ao fresco.»
«Angelus», Sob Este Título (2017)
domingo, abril 20, 2025
o que está a acontecer
«A casa, não. Fruída nos últimos anos a meias com o caseiro (para este a banda virada a nascente, e donde se alcançava o Penedo Grande, a cavaleiro do Monte dos Covos; para os patrões a oposta, com serventia própria e voltada para a mata) desde que resolvido o passo de vir ali enterrar-se vivo, Diogo Coutinho destinava ao caseiro que se passasse para os Nogais.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)
«Não se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes. / Um, o mais moço e pela aparência o de mais grada posição social, era transportado num pouco escultural, mas possante muar, de inquietas orelhas, músculos de mármore e articulações fiéis; o outro seguia a pé, ao lado dele, competindo, nas grandes passadas que devoravam o caminho, com a quadrupedante alimária, cujos brios, além disso, excitava por estímulos menos brandos do que os de simples e nobre emulação.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
«A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendidas da personalidade que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas imitações. Enfim, o talento da imitação -- pensava Germana -- chegava a ser tão característico como uma originalidade, não só em determinadas famílias, como, mais genericamente, em determinados povos.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954)
sábado, abril 19, 2025
sexta-feira, abril 18, 2025
o que está a acontecer
«Pois que é a aristocracia senão o degrau mais alto que uma sociedade deseja atingir, a supremacia de determinada classe sobre as outras, a imposição dos seus valores, sejam eles de força, de trabalho, de espírito, conforme a época que lhes é propícia?» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954)
«Portão e caminho até ao terreiro, sob a latada, quisera o dono continuassem escalavrados como no tempo ido, em que só ali vinha, e nem sempre, quando era pelas vindimas e varejadas de castanhas, lá raro pela feitura do azeite.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)
«Vestígios de existência humana raro se encontravam. Só de longe em longe, a choça do pegureiro ou a cabana do rachador, mas estas tão ermas e desamparadas, que mais entristeciam do que a absoluta solidão.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
quinta-feira, abril 17, 2025
o que está a acontecer
«-- Uma espécie de aristocracia ab imo. -- E Bernardo riu-se, cheio duma ironia afável e quase distraída; tirou do nariz as lunetas, muito maquinal, colocou-as de novo, ajustando as molas de ouro nos vincos que pareciam o sinal de unhadas, e, com um piscar precipitado como quem bruscamente transita da obscuridade para a luz, disse ainda -- «Ab imo», da terra, pois ele considerava a cultura como um privilégio pessoal, e nunca perdia a oportunidade de se mostrar generoso, transmitindo-a.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954)
«Embora de teimoso castanho, abanados por entalões de carretos, chicoteados e entranhados por chuvas de invernos, os batentes do portão, lassos da corrosão das cunhas cinco dos seis chumbadouros, havia muito que não jogavam nos gonzos. Franqueados como abraços, o areão e o saibro dos enxurros caldeavam-nos à terra como se houvessem botado raízes, reverdecidos.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)
«Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracíssima província começa já a ressentir-se, senão ainda nos vales e planuras, nos visos dos outeiros pelo menos, de sua irmã, a alpestre e severa Trás-os-Montes. / O sítio naquele ponto, tinha o aspecto solitário, melancólico e, nessa tarde, quase sinistro. Dali a qualquer povoação importante, e com nome em carta corográfica, estendiam-se milhas de poucos transitáveis caminhos.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
Fernando J. B. Martinho (1938-2025)
E só agora, pelo JL, dei pela morte de Fernando Martinho, com quem estive, em várias circunstâncias, nos últimos trinta ou mais anos, sempre por causa da poesia e dos seus poetas, que ele sabia como ninguém abrir à leitura e comunicá-la.
Carlos Matos Gomes (1946-2025)
Durante uns breves dias fora e desconectado, a morte de Carlos Matos Gomes -- tantas vezes aqui chamado, em serviço público --, apanha-me como a pior notícia desta Páscoa, pelo inesperado e pela falta que fará na análise de um momento internacional em que a inteligência e a coragem estão em suspenso.
sexta-feira, abril 11, 2025
«"presença": esboço para uma antologia pessoal»
2 versos de Dick Hard
«Sonhei que Deus dava autógrafos / à saída do Céu»
«Provas da inexistência de Deus (por ele mesmo)», De Boas Erecções Está o Inferno Cheio (2007)
quinta-feira, abril 10, 2025
2 versos de Fernando Jorge Fabião
«Preciso da tua lâmpada / para atravessar os dias»
Nascente da Sede (2000)
quarta-feira, abril 09, 2025
3 versos de Fernando Grade
«Grinaldas foram as tripas do cão / antes de as nozes da ceia terem sido / uma madeira patética, leite de cabra a arder»
«O cão é o seu próprio pastor», O Livro do Cão (1991)
terça-feira, abril 08, 2025
2 versos de Fernando Namora
«Antes que o Inverno chegue / volto a ser cigarra. Canto.»
«Canto tardio», Marketing (1969)
segunda-feira, abril 07, 2025
2 versos de Florbela Espanca
«Andam sonhos cor do mar / Nas minhas quadras, imersos,»
«As quadras d'ele», Antologia Poética
domingo, abril 06, 2025
os debates da pré-campanha e o Conceito Estratégico de Defesa Nacional
Estamos num momento raro em que a realidade se altera diante dos nossos olhos e em que tudo pode estar em causa, incluindo as próprias Nato e União Europeia. Sobreviverão? Não sabemos. E se sim, de que forma, com que relevância?
O Conceito Estratégico de Defesa Nacional, cuja última revisão data de 2013, está datado e desactualizado. Mas há duas coisas que não mudam: a Geografia, mais ou menos desde a Pangeia -- estaremos sempre no extremo ocidental do continente euro-asiático, na Península Ibérica, virados para o Oceano Atlântico --; e a História, o que passou e nos deixou vínculos extra-europeus, sem os quais a nossa identidade não se completa. Eu sou mais português quando me relaciono com angolanos, brasileiros, moçambicanos, caboverdianos, etc. e Portugal, que afirmou a sua independência em 1128, e é estado, nação, língua, cultura -- e parece querer continuar a sê-lo -- é muito mais pequeno sem esse vínculos que se organizam em torno da CPLP. Esta é tão importante para nós quanto a União Europeia -- pois se há coisa que também somos -- muito antigos e decisivos na história do Velho Continente --, se há coisa que também somos e nunca deixaremos de ser, é europeus.
Mas não basta querer, é preciso saber e poder. Por isso, numa situação tão volátil e incerta, nestes debates deve ser perguntado aos líderes partidários de que modo concebem a independência de Portugal no actual quadro e que fazer no caso de uma desagregação das organizações que integramos, nomeadamente UE e Nato.
É evidente que o país tem problemas gravíssimos -- mas nenhum interpelará tanto o país como o que se pode estar a desenhar. Portugal tem interesses permanentes, entre a Europa e o Atlântico. O que têm os líderes políticos a dizer? E que perguntas têm os jornalistas a fazer? É o que veremos, a partir desta segunda-feira nos debates.
serviço público - Viriato Soromenho-Marques
"A União Europeia perdeu a alma e o rumo» -- aqui.
sábado, abril 05, 2025
correspondências
(Frei João Álvares aos monges do Paço de Sousa, 1467) .../... «E esto podemos veer por exempro nas cousas naturais assi como é a cabeça, a qual, posto que seja a mais alta parte do corpo e a mais principal, nem pode porende estar sem o ofício e serviço dos outros nembros, e per essa mesma guisa os outros nossos nembros sem a sua cabeça se nom podem manter nem governar, assi que nem a cabeça aos nembros, nem os nembros à cabeça poderão dizer: "Eu poderei viver sem ti", porque será mintira, mas que um nom pode escusar o outro, como é verdade.» .../... in Andrée Rocha, A Epistolografia em Portugal (1965)
sexta-feira, abril 04, 2025
a autobiografia de Eric Hobsbawm - II. frases
Eric Hobsbawm, Tempos Interessantes -- Uma Vida no Século XX (2002) Trad. Miguel Serras Pereira, Porto, Campo das Letras, 2005
charlatanismo woke e jornalismo gasoso
Não vi, nem me interessa ver, a entrevista de Boaventura Sousa Santos dada há dias na televisão; tenho lido nos jornais os ecos. Por vezes até concordo com alguns dos seus pontos de vista, mas trata-se de um guru, susceptível de adoração e adulação (e agora de execração) o que me provoca sempre urticária. Depois, é um inoculador do vírus woke aqui na parvónia. O que lhe tem acontecido -- acusações de assédio sexual, aproveitando-se do poder que detinha -- é simplesmente grotesco. E das duas, uma: ou o homem é um reles charlatão, que faz o contrário do que apregoa, ou é vítima de uma cabala e lavagens cerebrais em que ele era o sumo-sacerdote da seita. Não estou grandemente interessado no assunto.
Anteontem no Diário de Notícias, surgiram relatos de alegadas vítimas suas e do antropólogo Bruno Sena Martins. Se ambos forem inocentes, nada poderá reparar o dano. Mas não é a propósito disso que quero escrever, mas sobre o veneno inculcado por esta espécie de sacerdotisos. A certo passo, uma das eventuais vítimas referia-se aos seminários de Verão na Curia como (cito de memória) sessões de descolonização das mentes e da luta contra o fascismo, o capitalismo e o patriarcado. Não é de rir? Como se perde tempo e gasta dinheiro público com parvoíces. E depois queixam-se do Trump...
Também é particularmente cómico que Sena Martins, tendo revelado a prática de um ménage à trois consensual -- parabéns para ele --, seja citado num questionário de Proust do Público, segundo o qual, a qualidade que mais aprecia no homem e na mulher, seja (de memória, outra vez) qualquer coisa como o desprezo profundo por manifestações de masculinidade, ou coisa que o valha. Poderia ter falado em marialvismo, que é a masculinidade de grunho.
Nem de propósito, no DN de ontem, aproveitando o balança da tal série que anda nas bocas do mundo, "Adolescência", creio -- que tem que ver com patologias psíquicas e sociais -- surge com este título, entre aspas: "'A masculinidade mata os homens'", com perorações no interior de vários júliosmachadosvazes, assim, sem sequer direito ao adjectivo substantivado "tóxico".
Mais: apresenta-se o crime de violação como prática de masculinidade. Fiquei sem saber, pois, que raio é isso de masculinidade, mas sei que desvios sexuais como violação, pedofilia, entre outros, são manifestações doentias e patológicas da personalidade por via sexo, que merecem tratamento psiquiátrico e eventualmente internamento compulsivo. O que raio tem isso que ver com 'masculinidade'?
Mas nada desta terminologia é para levar a sério. Não passa de charlatanismo pseudo-científico de que se nutre uma boa parte das chamadas "ciências sociais", lixo académico, portanto, que não serve para nada, a não ser aos maluquinhos da ideologia de género -- o que quer que isso possa ser e a quem possa interessar que não sejam as criaturas que se chateiam que possa haver muita e boa relação homem-mulher a vários níveis, não tendo ele que ser um pé-de-salsa ou ela um estafermo. E normalmente chateiam-se porque não gostam de si próprias. A psicanálise costuma ser útil.
Talvez seja altura de dizer várias coisas -- ou até de repeti-las, como, por exemplo, que qualquer homem decente é feminista, qualquer homem que ama, gosta, aprecia mulheres, por tudo o que são e representam, qualquer homem que deseje uma mulher, é, tem de ser feminista -- se não for um traste --, e é claro que há muito traste por aí, aliás de ambos o s sexos; e é verdade que vimos de uma sociedade asquerosamente machista, e nela fomos educados. No entanto, lutar pela justiça, direitos humanos e igualdade na complementaridade entre homens e mulheres não é incompatível com a virilidade do homem e muito menos com a mais do que desejável feminilidade da mulher, para não falar da necessidade do próprio feminismo. Mas isso ficará para outra ocasião.
o que toda a gente sabe
O TPI é uma farsa.
O Orbán é um farsolas, apesar de estar do lado certo.
O Netanyahu, um criminoso de guerra que deve ser capturado.
2 versos de Carlos Queirós
«-- Que estranhas e fantásticas derrotas, / Alguém batendo à porta, malogrou!»
«O que não aconteceu», Desaparecido (1935)
quinta-feira, abril 03, 2025
4 versos de Alberto de Lacerda
«Por que passou pelo bosque / tão amável perfeição, / se pelo bosque passava / apenas a solidão?»
«Ninfa», 77 Poemas (1955)
quarta-feira, abril 02, 2025
serviço público - Carlos Branco - "Para que serve o rearmamento da Europa?"
(para comentar e tecer considerações a propósito mais tarde)
fragmentos
«Amor da pátria é, para quem nele vive, o regaço materno em que todas as diferenciações se conformam e harmonizam, o regaço onde se preparam, através dos heróis, dos mártires, das multidões anónimas, as conquistas que aumentam a liberdade e a consciência do mundo.»
Augusto Casimiro, O Livro dos Cavaleiros (1922)
terça-feira, abril 01, 2025
o que está a acontecer
«Acima do portão, na verga quase vestida pela hereira que já amortalhara a pedra heráldica, a valer de baetão que a amantasse nos lutos, ainda lá se lia uma data, 1654, avivada pelo caseiro, por mimo, no tempo da poda, a riscos de caco.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947) «-- Há uma data na varanda desta sala -- disse Germana -- que lembra a época em que a casa se reconstruiu. Um incêndio, por alturas de 1870, reduziu a cinzas toda a estrutura primitiva. Mas a quinta é exactamente a mesma, com a mesma vessada, o mesmo montado, aforados à Coroa há mais de dois séculos e que têm permanecido na sucessão directa da mesma família de lavradores.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954) «Ao cair de uma tarde de Dezembro, de sincero e genuíno Dezembro, chuvoso, frio, açoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera, subiam dois viandantes a encosta dr um monte por a estreita e sinuosa vereda, que pretensiosamente gozava das honras de estrada, à falta de competidora, em que melhor coubessem.» Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais (1868)
no que ninguém acredita é que tenha sido apenas a Le Pen a fazê-lo
...por isso, intervir desta forma na política, inviabilizando a candidatura de quem vai à frente nas sondagens é mesmo um tiro no sistema liberal que muitos dizem defender, mas só quando não sai dos carris. Resultado? Crise política e moral ainda mais devastadora, transformação de Le Pen em mártir pelos meretíssimos juízes (ninguém está acima da justiça, mas Le Pen parece estar abaixo dela), aumento exponencial do voto de protesto, pró e anti-Le Pen, centro político já desacreditado em derrocada.
A extrema-direita francesa é particularmente abjecta, apesar da lavagem de cara operada pela líder, mas se acham que é assim que vão lá, com sarkozys, hollandes e macrons -- ou com mélenchons, já agora...
4 versos de Cristóvão de Aguiar
«foste dando sinais de algum cansaço / nas palavras não -- estavam sempre à beira / de se erguerem com asas de estilhaço / e varrida ficava toda a feira.»
«Tuas palavras de aço», Sonetos de Amor Ilhéu (1994)
segunda-feira, março 31, 2025
6 versos de Cesário Verde
«E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, / Correndo com firmeza, assomam as varinas. // Vêm sacudindo as ancas opulentas! / Seus troncos varonis recordam-me pilastras; / E algumas, à cabeça, embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas tormentas.»
«O sentimento dum ocidental -- I. Ave-Marias», O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)
ucraniana CCLXXXVI - preparem-se para a propaganda da guerra
Melhor dizendo, para a sua intensificação -- ou seja:
os russos já começaram a atingir hospitais e creches, como no princípio;
o Zelensky quer-nos lá, já, para tentar limpar-se da merda que fez;
embaixatrizes organizam chás, com a presença do PR e com especialistas de centros académicos surgidos para comentarem um estudo de um think tank lituano, ou lá o que seja, sobre a desinformação russa, levantando suspeições sobre quantos têm uma posição crítica quanto à guerra da Ucrânia;
noventa por cento dos comentadores da academia continuam os mesmos atrasos de vida, e noventa por cento dos pivôs dos telejornais persistem analfabetos;
já há cartazes motivacionais para aliciar os nossos filhos e netos morrerem na Ucrânia, para (não) resolver uma guerra criada pelos americanos, com a cumplicidade de britânicos, franceses, alemães e parceiros menores.
domingo, março 30, 2025
sexta-feira, março 28, 2025
serviço público - Viriato Soromenho-Marques
"Há três anos que a UE se arruína com o seu envolvimento incompetente e imoral na guerra da Ucrânia. Agora que os EUA, os grandes responsáveis por esta tragédia, lavam as mãos e fogem, com razão, de um confronto suicida com a Rússia, na UE, líderes detestados pelo seu povo, como Macron, ou a Comissão Europeia de Ursula von der Leyen (com o seu auxiliar no Conselho Europeu, António Costa) querem continuar a alimentar a guerra com a Rússia."
saiu no JL
De há meses para cá tememos que o último JL seja mesmo o último Publica-se há 45 anos, sempre com o mesmo director (e fundador), José Carlos de Vasconcelos. Tem número óptimos, compensando largamente um ou outro menos conseguido. O seu previsível (embora ainda não anunciado) fim ser(i)á catastrófico. Duvido que possa ser substituído. Comecei a lê-lo ainda estava a acabar o liceu, e tenho o primeiro número que comprei. (Qualquer dia farei aqui uma resenha). E guardei muitos outros, sem falar nos recortes.
Enquanto se mantiver, passarei a arquivar aqui citações retiradas de cada número que entretanto se publique. Talvez possa levar alguém a comprá-lo.
«Camões viajou e viveu o seu próprio poema ao mesmo tempo que o escrevia.» Manuel Alegre
«[...] jornalismo, artes, literatura e compromisso social são colunas de um mesmo templo que, hoje, se redefine, correndo riscos de esboroamento porque a corrente da formatação desenfreada tudo parece levar à sua frente...» António Carlos Cortez
«[...] (o mundo já foi criado para sempre.)» Carlos de Oliveira
«Perante a guerra, o que se espera de um intelectual é o exercício da sua capacidade analítica, antecipada pela procura dos dados empíricos que são as fontes primárias que alimentam o pensamento crítico.» Viriato Soromenho-Marques
JL #1421, 19-III-2025
quinta-feira, março 27, 2025
o que está a acontecer
«I. Os Rebanhos. Logo que as cabras entestaram à corte, o "Piloto" deu por findo o seu trabalho. E antes mesmo de o pastor, que lhe aproveitava os serviços, se dirigir a casa, ele meteu ao extremo da vila. Rabo entre as pernas, focinho quase raspando a terra, ia triste, cismático, como perro vadio de estrada, descoroçoado da vida. Subitamente, porém, sorveu no ar algo que lhe era conhecido.» A Lã e a Neve (1947)
«Diante dessa varanda, na claridade forte, pousava a mesa -- mesa imensa de pés torneados, coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e atravancada nessa tarde pelos rijos volumes da "História Genealógica", todo o «Vocabulário» de Bluteau, tomos soltos do "Panorama", e ao canto, em pilha, as obras de Walter Scott, sustentando um copo de cravos amarelos.» Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires (1900)
«Era uma paixão, uma paixão da alma, a mocidade na velhice, essa ânsia impotente dum coração que quer romper os tecidos atrofiados de cinquenta e cinco anos para dar quatro pulos em pleno ar.. / Quem era a vítima desta paixão impetuosa? Uma menina de quinze anos, que a leitora, enjoada das indecentes cuecas do Sr. Silva, pode ver, no segundo andar desta mesma casa, sentada a costurar na varanda, com uma gata maltesa no regaço, e um papagaio ao lado, que lhe depenica os sapatos de cordovão.» Camilo Castelo Branco, A Filha do Arcediago (1854)
quarta-feira, março 26, 2025
o que vai acontecer
«Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Era esta a causa única da tristeza de Mestre Romão.« Machado de Assis, Histórias sem Data (1884» -- «Cantiga de esponsais»
regressar ao século XIX
Não passam de fariseus quantos dizem que "regressámos ao século XIX" quando as grandes potências fazem pressão sobre territórios sobre os quais têm apetência. Dar-lhes-ia razão se dissessem que à sombra do Direito Internacional agonizante, as guerras não se fizeram por procuração, do Vietname a Angola e ao Afeganistão -- ou então através da desestabilização dos regimes, usando os respectivos agentes, do Kadafi ao Navalny, sem esquecer a Ucrânia, pois claro.
Ou se o status quo pelo qual agora choram alguma vez impediu o imperialismo e a lei do mais forte, da ocupação do Tibete ou a barbárie da guerra do Iraque, a tal das armas de destruição maciça, vistas e identificadas pelo Durão Barroso...
Que grande paciência é precisa para aturar os semi-canalhas e os hipócritas por inteiro.
4 versos de A. M. Pires Cabral
«Tivesse eu umas pernas tão altas como as tuas / e travaria contigo o ardoroso combate / -- velha guerra amistosa e sem quartel --, / para meu e teu contentamento.»
«Fala de um cão basset a uma cadela são-bernardo com cio», Caderneta de Lembranças (2022)