terça-feira, outubro 15, 2024

há monstros na floresta e mistérios debaixo da cama

Chega-me da Gradiva um presente de Natal antecipado, creio que o primeiro trabalho publicado por Bill Watterson (Washington DC, 1958) desde que suspendeu a publicação de Calvin & Hobbes, em 1995. Desta vez, apenas o texto é seu, e os desenhos do caricaturista  John Kascht, aqui co-autor e extraordinário ilustrador.

Trata-se de Os Mistérios, uma alegoria sobre o medo, que nos assola a todos, das eras mais antigas até ao presente -- quando, após a euforia das conquistas científicas, julgando-nos invencíveis, quase imortais, verificamos que afinal continuamos pasto para guerras e vírus, receosos do mistério  que é o outro, desconhecido e diferente, e contra quem novos muros se erguem; e (in)conscientes de uma nova devastação ambiental com marca demasiado humana. No mundo medieval, antes da modernidade, a floresta era o lugar interdito, onde habitavam criaturas misteriosas e assustadoras; tal como os mares eram povoados por seres fantásticos, monstros marinhos. No fundo, em face do desconhecido e do inalcançável, continuamos pré-modernos. Façamos o que fizermos, o mistério continuará. O Homem diante do horizonte infinito e eterno; 

tempo de romance

«Luciano tinha-se deixado ficar à janela e contemplava, com alvoroço e flama estranha no olhar, a basílica que se erguia já doirada nos cumes pelo sol matutino. Vista do ramo transversal do claustro e no prolongamento do eixo da igreja, a ábside desenrolava em frente do espectador a sua elegante redondeza, e o frémito alado dos arcobotantes, com a ossatura frágil em pleno equilíbrio aéreo, dava-lhe tal ar de vida palpitante, que era de recear que a uma carícia mais quente do sol filtrando-se nos poros da pedra, a catedral abrisse as asas e erguesse o largo voo nessa lúcida manhã de tempo claro.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

«"Aqui se erguerá uma casa para pobres da vida pobre, quando Deus for servido!" -- dissera ele. E daí o ficar a água da nascente de muita virtude nas moléstias da tripa, e o lauto senhor Pero Gil, pelo ano de 1443, com autoridade da Sé Apostólica, lançar os fundamentos daquela casa, que tanto edificou a santa Ordem da Penitência em varões pios e de saber.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918)

1 verso de Antero Abreu

«Ao longe é um tropel de gazelas em fuga...» 

«Música», Poesia Intermitente (1987)

segunda-feira, outubro 14, 2024

Frank Sinatra, «Embraceable You»

livros que me apetecem



 

2 versos de Armando Taborda

«A alma Ibérica tem raízes de pedra / e sonhos de azinheira» 

Palavras, Músicas e Blasfémias que Envelheço na Cidade (1980)

correspondências

(Afonso de Barros a João de Barros) «Figueira, 26-6º-1926 // Meu querido João // Obrigado pela tua pronta resposta à minha precedente carta, e oxalá que o teu optimismo se realize, mas as prisões já começaram!... Cautela meu João! / E conta sempre comigo para tudo (que não poderá ser muito) que eu possa fazer. / Beija os meus queridos netos e querida Raquel, e a ti, beijo-te // e abraço-te de todo o meu coração / Afonso // Faz favor de dar à irrequieta Teresa o papelinho junto e ela que entregue ao [...?]» Cartas a João de Barros (2)

(Raul Brandão a Teixeira de Pascoais) «Meu Exm.º Amigo // Li ontem dum fôlego o Verbo Escuro. Eu gosto imenso de livros assim, mas o seu, tão profundo e tão belo, há-de ser compreendido por poucos leitores. É o livro dum grande poeta e dum filósofo. / Felicito-o e abraço-o. Creia-me sempre / De V. Ex.ª/ad.or e a.º agr.º / Raul Brandão // Alto / 27 Março / 1914» Correspondência (1)



(1) Raul Brandão - Teixeira de Pascoaes, Correspondência (ed. António Mateus Vilhena e Margarida Marques Mano, 1994.

2 Cartas a João de Barros (ed. Manuela de Azevedo) s.d.

domingo, outubro 13, 2024

por aí


Gordon Parks, Rapaz com Escaravelho (1962)

 

tempo de romance

«Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o cónego Campos contou-a à noite ao chá em casa do deputado Novais; foi celebrada com risos deleitados; todos exaltaram as virtudes do chantre, e afirmou-se com respeito -- que Sua Excelência tinha muita pilhéria!» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80)

«Já rente à água longa tira de praias se divisa e, mais avançados, dois cabos de nítido contorno: o da Roca e o Espichel. / Vencem-se mais rapidamente as distâncias, com a maior profusão de pontos de referência e a diminuição gradual do horizonte no alargamento do cenário em redor.« Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933)

«A monarquia visigótica procurou imitar o luxo do império que morrera e ela substituíra. Toletum quis ser a imagem de Roma ou de Constantinopla. Esta causa principal, ajudada por muitas outras, nascidas em grande parte da mesma origem, gerou dissolução política, por via da dissolução moral.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)

sábado, outubro 12, 2024

tempo de novela

«Acodem os jornaleiros secos e ressecos, as velhas das cabanas e outros -- lá dos altos, para ouvirem o Manco. À noite, nos sítios ermos, juntam-se em bando o Ai-Jesus, o Ladrão, o Seringa, o Abelheiro e alguns tipos escalavrados, e todos eles o querem ver e ouvir.» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931)

«Tinha nesse tempo vinte anos. Chegou à idade, foi às inspecções, ficou apurado, e lá vem ele para Lisboa fazer o serviço militar. / Era então um rapaz entroncado, maciço, que trocara há uns anos já o cajado de pastor pela rabiça de ganhão, no Farrobo, uma das herdades do senhor Gaudêncio. Mas, quer a apascentar ovelhas ou a lavrar terra, as léguas largas e quentes da charneca tinham-lhe entrado no sangue.» Miguel Torga, O Senhor Ventura (1943)

«No escuro e no silêncio, luziu a alguns passos o fogo de um cigarro. / -- O comboio já passou -- disse o camarada a despropósito. / Como em resposta, por três vezes o pequeno clarão do cigarro piscou no escuro. Aproximaram-se. O vulto do fumador precisou-se melhor, aproximando-se também. / -- É este o amigo -- disse o camarada. / Não se sabia se falava deste, do fumador ou dos dois.» Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites (1975)

sexta-feira, outubro 11, 2024

Thelonious Monk Trio, «Bemsha Swing»

o Prémio Nobel da Paz, é um recado para quem pôs a Europa em pé de guerra -- e quem foram eles, quem foram?... Não, pá, não foram os russos...

Histórias da carochinha para adormecer meninos, patranhas para tapados, em especial "especialistas" em Relações Internacionais e Direito Internacional, pobrezinhos que tão boa conta de si têm dado. Ainda ontem, em "debate" (boa piada) com o major-general Agostinho Costa.

(Por falar nisso: nunca mais vi o embaixador Seixas da Costa, desde que num dos momentos mais hilariantes destes debates, a propósito do míssil hipersónico disparado do Iémen, Agostinho Costa disse qualquer coisa como isto: "Se o senhor embaixador acha que foram os hutis* a disparar um míssil hipersónico, eu tenho uma ponte para lhe vender..." Não foi brilhante?) 

Ah, o Nobel da Paz parece ter sido muitíssimo bem atribuído.


O corrector corrige mal: houti, como ele quer é à francesa; portanto, hutis.

quinta-feira, outubro 10, 2024

serviço público - Carlos Matos Gomes, quase lapidar: «O direito à "defesa de Israel" é o mesmo de qualquer guarnição romana nos confins do império.»

Uma grande frase em mais um grande texto do coronel Carlos Matos Gomes -- que, recordo, além de oficial comando na Guerra Colonial e historiador do período, é também o romancista que assina as suas obras literárias sob o nome de Carlos Vale Ferraz.

Análise sedutora e fina, à qual, não sendo um especialista, me permito levantar duas objecções: se a minha leitura não foi demasiado apressada (detesto ler no computador), o autor parece não valorizar a permanência contínua de população judaica nos territórios israelo-palestinos desde a segunda destruição do templo de Salomão, em Jerusalém; bem como o impulso do movimento sionista estabelecido por Theodore Herzl, no final do século XIX, aliás inspirado pelo Caso Dreyfus 

[-- uma das histórias de perseguição mais abjectas da história do nosso querido continente, em que do lado do supliciado e inocente capitão estiveram Zola (heróico), Octave Mirbeau, Anatole France, entre tantos mais, incluindo o nosso Eça de Queirós, sempre do lado certo; e, do outro lado a bestiaria selvagem protofascista e colaboracionista francesa -- os próprios ou os seus descendentes, em linha directa até ao presente na recauchutada Frente Nacional e outros -- rever, a propósito, o filme do grande Polanski];

outra ausência com que me deparo, apesar da referência ao xiismo e as suas razões, é o papel do sempre pestífero sectarismo religioso, que não devemos varrer para debaixo do tapete. A religião, quando sai da esfera individual, do núcleo familiar e do confinamento dos templos -- e passa para a esfera sóciopolítica, será sempre inimigo a abater, católica, xiita ou o raio que as partam a todas.

Do papel dos aiatolas no derrube do primeiro-ministro patriota Mohamed Mossaddegh, aqueles transformados em joguetes dos americanos, entre os quais circulava um tal Khomeiny -- que bem os gratificou -- agradecimentos à moda de bin Laden.

Como disse esse quase santo que deu pelo nome de Piotr (Pedro) Kropótkin, a única igreja que ilumina é a igreja que arde... -- experiências ensaiadas na Guerra Civil de Espanha -- e com razão, como se viu pelo comportamento da instituição durante o franquismo; e até recentemente, no Chile -- mas aqui devido a essa tendência que por lá teve guarida, a do abuso de menores.

Posto isto, que o governo israelita não passa de uma guarda avançada do imperialismo americano, entra-nos pelos olhos todos os dias -- não muito diferente, de resto, do que protagoniza o judeu-ucraniano de língua russa Zelensky.

quadrinhos

Al Taliaferro e Bob Karp

 

vária

«Quanto aos apontamentos não datados, traduzem a experiência adquirida no correr dos anos: sentimentos, emoções, conjeturas. Se alguém desejar as lembranças da infância dos autor deve recorrer a um texto datado de 1980, publicado em livro sob o título de O Menino Grapiúna -- as ilustrações de Floriano Teixeira compensam o preço do volume.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1990)

«E por esses pomares, entre sebes de silvados e canaviais, que florações simpáticas, feitas com gotinhas de néctar e salpicos de sangue arterial! / Conhecem talvez o pilriteiro? É um arbusto dos valados, peculiar às regiões montanhosas do Alentejo, que se defende  com os espinhos de que se arma e não gosta de habitar jardins.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)

quarta-feira, outubro 09, 2024

Byron Stripling, «On the Sunny Side of the Street»

3 versos de A. M. Pires Cabral

«O lento, exasperante rolar do tempo é / a única moeda que circula / nessas brumosas paragens.» 

«Em torno duma litografia em papel couché», Caderneta de Lembranças  (2021)

terça-feira, outubro 08, 2024

3 versos de José Pascoal

«O incêndio na floresta / Negra dos alfabetos / Devora os meus cadernos.» 

«O desejo do fogo», Sob Este Título  (2017)

tempo de romance

«Conservava-se ainda correcto aquele vivo exemplar do Hércules escultural. / Pedro era, de facto, o tipo da beleza masculina, como a compreendiam os antigos. O gosto moderno tem-se modificado, ao que parece, exigindo nos seus tipos de adopção o que quer que seja de franzino e delicado, que não foi por certo o característico dos mais perfeitos homens de outras eras.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867) 

«Felizes tempos esses em que pastoreava a cabra pelas barrocas, roubava maçãs na quinta do Almeida e seguia, na Primavera, o voo dos pássaros de ramo em ramo! / Fincou a mão enegrecida e calejada sobre a caruma e, retesando os músculos, ergueu-se. Logo, porém, uma dor vivíssima o obrigou a sentar-se de novo.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

«O melhor prólogo é o que contem menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesmo é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. / BRÁS CUBAS.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) 

o que vai acontecer

«Que velho malandro não era aquele respeitável senhor que lhe dava sempre a roupa suja de bâton? E quem melhor do que ela sabia que o senhor Sousa, um dos banqueiros mais reputados do país, estava, apesar das festas e do luxo, completamente arruinado? Bastava olhar para as meias e camisas passajadas.» Miguel Barbosa, «A dança», Retalhos da Vida (1955)

«Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma cousa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão", -- equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; -- ou então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias". Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)

segunda-feira, outubro 07, 2024

Abbey Lincoln, «The World Is Falling Down»

um ano depois do 7 de Outubro

A questão israelo-palestina foi um problema criado pela má consciência do Ocidente -- desde a primeira perseguição aos judeus, em Inglaterra, no Século XII, quando Ricardo Coração-de-Leão pretendeu sacar dinheiro fácil para financiar a sua Cruzada, até ao Holocausto da Alemanha de Hitler e seus nazis. Pelo meio histórias de horror, com a expulsão em Espanha e depois em Portugal (Século XV -- D. Manuel I a ceder contrariado aos fanáticos Reis Católicos, em troca da mão da filha), passando pela prática dos pogroms, na Rússia, na Ucrânia, na Polónia. A decência da tolerância, nesses séculos passados, só morava nas antigas Províncias Unidas (os Países Baixos) e entre os turcos do Império Otomano. ao compreensível sionismo do Século XIX, a Inglaterra, a maior potência da época, responde com a Declaração Balfour (1917). Como acontecera décadas antes na Conferência de Berlim (1884-85), as potências imperiais traçaram fronteiras sem que a existência dos indígenas lhe passasse pela cabeça. Era o apogeu do Euromundo e da sua "missão civilizadora", como paternalisticamente se designava o domínio colonial. 

Israel está hoje numa posição muito mais débil que há um ano, por causa de lideranças de oportunistas políticos -- Netanyahú, também cada vez mais extremista -- e dos fanáticos nacionalistas e religiosos que o sustentam. A legitimidade da sua existência enquanto estado independente está politicamente posta em causa, quando a um massacre nefando reage com a brutalidade bíblica que se sabe. Eu, que tanto admirei o estado de Israel, deixei de ter ânimo para defender o indefensável -- um estado liderado por bandidos, teocratas e dementes perigosos.

Mas os palestinos estão também mais enfraquecidos, sem liderança credível, entre outros fanáticos religiosos e os restos da OLP / Fatah, comprada pelo Ocidente. A Palestina precisava de um Gandhi ou de um Mandela. talvez precise mesmo de um Barghouti, há 22 anos nos cárceres israelitas. 

Fui ler a minha primeira reacção, a quente. Confirmo tudo, e ainda mais.


6 versos de Fernando Jorge Fabião

«Caminhas na terra liberta / pelo arado indecifrável do vento / reúnes resto de cereal, canas, pedaços de musgo // e as tuas mãos acendem / o verde mais verde / que habita nos campos.» 

Nascente da Sede (1999)

sexta-feira, outubro 04, 2024

quinta-feira, outubro 03, 2024

por aí


Félix Nadar, retrato de Piotr Kropótkin

 

o que vai acontecer

«Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção. / Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)

«Depois, morre a erva, já pouca, queimada pelo gelo, seca o leite das fêmeas, e cresce a fome dos pastores. / Manuel Libório era homem rico, senhor de terras e de muitas cabeças. Melo Bichão era pastor velho e pobre, a quem já ninguém confiava o gado.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1949)

«Agarrou numa camisinha de seda, diáfana, com rendas. Quem diria que aquela senhora, sempre de preto, ar inconsolável de viúva, usava por dentro coisas tão supérfluas? / Começou a lavar. A Alice conhecia pelas manchas da roupa a vida do freguês e o seu carácter.» Miguel Barbosa, «A dança»Retalhos da Vida (1955)

quarta-feira, outubro 02, 2024

Daniel Hope, «Spiegel im Spiegel» (Arvo Pärt)

é para 'isto' que Israel tem direito a existir? tragicamente não é -- e há responsáveis

Como de costume, esta é uma guerra em que as vítimas e os inocentes são os povos: os palestinos, os israelitas, os libaneses. Não verto lágrimas nem por aiatolas xiitas nem por fanáticos religiosos, árabes ou judeus. Nada disto é preciso para reconhecer crimes quando ocorrem. 

Que o governo israelita é constituído por criminosos de diversa índole, é um facto. Que está à margem da lei ao ocupar território que não lhe pertence, é outro. 

Ao contrário do que se possa pensar, a política de Netanyahu é altamente lesiva para os interesses israelitas.

Alguém como eu, que sempre nutri uma forte simpatia por Israel, por varias razões, dou por mim a pensar: é para isto que Israel tem direito a existir? A resposta é simplicíssima: não tem -- ou deixou de ter. Quem não se dá ao respeito, não pode ser respeitado (banalidade acertadíssima); quem massacra civis põe-se do lado de fora da humanidade,  e isto serve para o Hamas, como para o governo israelita que -- tragicamente -- é composto por partidos que tiveram a maioria dos votos do eleitorado.

Como não se pode dizer que o eleitorado foi ao engano. Ao fim de mais de 30 anos de sabotagem dos Acordos de Oslo, com este Netanyahu à frente, o eleitorado israelita tornou-se co-responsável pela actuação reiterada do seu governo.

Resumindo: com esta actuação continuada, Israel perde a sua legitimidade primeira: a do direito à existência. Claro que isto não absolve os teocratas do Líbano e do Irão -- mesmo que estejam, supostamente, do lado do povo palestino -- ou seja, do lado certo, nesta altura do campeonato. Os teocratas do Irão são para ser derrubados e corridos a chicote lá para as alfurjas das mesquitas -- e, claro, não para serem substituídos por aventureiros chulos, como o último xá. O Irão tem na sua história, grandes e bons exemplos. 

Quanto à última diatribe deste governo israelita fora da lei contra Guterres, proibindo-o de entrar em Israel, tal é mais uma medalha para o secretário-geral da ONU. É que há acusações e animosidades que só nos dignificam. Ora, os indignos, pela sua própria natureza, são inaptos, jurídica e moralmente, de produzir conteúdo que seja entendido como tal. Ou seja: têm mais significado os latidos da minha cadela, do que as proclamações (ainda por cima com mentiras) do ministro dos estrangeiros israelita. Um bicho nunca pode ser desqualificado pelos seus actos; já um ser humano...  Quem, que não seja um tontinho, quer ver-se associado a uma quadrilha destas? 

4 versos de Sebastião da Gama

«Um vento manso traz o aroma das cidades. // E eis que a cidade toda é um presépio. / Ouve-se a tropeada dos camelos, / o riso dos pastores...»

«Crepuscular» Pelo Sonho É que Vamos (póst. 1953)

terça-feira, outubro 01, 2024

por aí


Lucien Clergue
Nu do Mar. Camargue (1958=

 

ai, F-16, F-16...

Dizem à opinião pública que é com os 34 F-16 que a Ucrânia receberá que agora é que vai ser. Quem não se lembra dos tanques Leopard a evoluírem nos ecrãs da cnn-internacional, esse órgão oficioso da democracy?...

E nós, os papalvos que supostamente andamos aqui para comer e calar (com o contributo inestimável da homuluncaria política e do jornalismo servil), engolimos estas patranhas, como, de resto, é de uso.

Será uma dúzia de pilotos ucranianos recém-formados no manejo do F-16 que irá defrontar a força aérea russa, com centenas de caças e outras aeronaves?

Aqui, uma tangente de um Sukhoi russo a um F-16 americano, que interceptava um Tupolev estratégico, também russo, perto do Alasca. Giro, não é?




2 versos de Alberto de Lacerda

«Tão poucas as lembranças que nos ficam / da beleza imortal que foi de outrora!»

«Véu», 77 Poemas (1955)

toda a escrita

«De logo quero avisar que não assumo qualquer responsabilidade pela precisão das datas, sempre fui ruim para as datas, elas me perseguem desde os tempos de colégio interno. Estudante de história, interessado nas figuras e nos feitos, esquecia as datas e eram as datas que os professores exigiam. A referência a ano e a local destina-se apenas a situar no tempo e no espaço o acontecido, a recordação.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1992)

«Os murmúrios da água, que pelos regatos vai, como um sangue robusto, espalhando juventudes na cultura, dizem às velhas árvores histórias duma suavíssima poesia; e pelos ramos tufados de verdura húmida, tenra, tamisada de cintilas solares, entra a repovoar-se a cidade dos ninhos, grande cidade moderna, com avenidas, concertos, five o'clock e toilettes de plumas, e exibições de caudas roçagantes. Ontem me dizia na Tapada um velho pintassilgo.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)

«Nessa manhã hostil toda a campesina está deserta. À beira da estrada, as duas filas de altas e esbeltas árvores, martirizadas pelo frio, parecem sentinelas que não se fatigam nunca, guardando e vigiando este pedaço de terra francesa... / O automóvel roda apressado, galgando covas, trepidando, queixando-se da aspereza do caminho.» Adelino Mendes, «A cidade d'Albert» (A Capital, 29-III-1917), Repórteres e Reportagens de Primeira Página (s.d.)

segunda-feira, setembro 30, 2024

Cat Stevens, «Father and Son»

tempo de romance

«O chantre estimava-o. Chamava-lhe "Frei Hércules". / -- "Hércules" pela força -- explicava sorrindo -- "Frei" pela gula. / No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cónegos, baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra: / -- É a última pitada que lhe dou.» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80)

«Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas de opinião. / Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)

«Arrastava-me até casa, subia às apalpadelas, despia-me rezando fragmentos de velhas orações; e adormecia dum sono que parecia não dever ter fim. Mas outras noites, cansava-me: Depois de ter começado as minhas deambulações onanísticas -- sentia que me seria impossível prosseguir. Resolvia, então, renunciar, e acabar a noite como qualquer outro.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934)

«Foram pouco a pouco erguendo-se para o céu, avolumando-se, os vultos das duas serras. Eram agora duas ilhas extensas, negras de cor, encosta a pique sobre o mar, o que aparentavam ser. / Mas no mar não há visões definitivas. Atrás de uma logo outra se forma, todas diferentes, variadas. Ilhas de ainda há pouco não sois mais agora do que os baluartes soberbos, altaneiros, da terra que vos destacou para indicar caminho ao mareante.» Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933)

«De quando em quando, o desânimo vencia-o -- o desânimo e as sezões. / Se a terra fosse sua, quantas vezes se deixaria ficar na poisada a refazer o corpo. Mas se não andasse, quem havia de cuidar daquilo?... / Nunca patrão algum lhe atirara remoque por desmazelo no trabalho. Ele pertencia à família dos Milhanos de Marinhais, sempre famosos no Ribatejo como arrozeiros sabidos e safos de mândria.» Alves Redol, Gaibéus (1939) 

5 versos de Carlos de Oliveira

«No alto choupo torcido / da invernia e da seca, / enchiam de raiva os olhos / -- que os olhos vivem de raiva / na solidão da charneca.» 

«Gândara», Turismo (1942)

domingo, setembro 29, 2024

serviço público

 Viriato Soromenho Marques, Vamos financiar a russofobia no OE de 2025?»

por aí


Machado de Assis, por Insley Pacheco

 

sábado, setembro 28, 2024

Frank Sinatra, «Try a Little Tenderness»

uma actriz fulgurante





Uma actriz com um estofo tremendo, como de há muito sabemos. Kate Winslet, foi para vê-la que fui ao cinema. E valeu cada minuto, engrandecendo uma figura, Lee Miller, já de si extra-ordinária. Receava algumas frivolidades, mas nem pensar. O filme de Ellen Kuras pega, delicada mas intensamente, no que realmente interessa, o caminho da fotojornalista até à libertação de Paris, e depois: Dachau e Buchenwald, dois nomes para abjecção.

sexta-feira, setembro 27, 2024

tempo de novela

«Um indivíduo assomou-se à janela duma das carruagens paradas e escarrou com estrépito. / -- Vê lá quem vai passando...! -- disse doutra janela uma voz rouca, num modo meio repreensivo meio de escárnio. / Rosa Maria fora obrigada a correr uns passinhos, e o embrulho da velha Leocádia escorregou-lhe; sentiu-se dolorosamente vexada, pensou: «Se a minha mãezinha fosse viva...» José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941)

«A mulher volvera à sua lembrança. Continuava a vê-la sentada ao sol, os pés sem tocar no chão, as pernas a badalar, a irem e virem sob o banco, como se estivessem num trapézio. Dir-se-ia que as suas pernas tinham, nessa hora, uma felicidade independente do tronco, todo um desejo de folgar que começava dos joelhos para baixo.» Ferreira de Castro, A Missão (1954)

«Infelizmente, corcovo -- do muito que verguei o espinhaço, na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na repartição, dobrando a fronte ao pó perante os meus directores-gerais. Esta atitude de resto convém ao bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranquilidade aos domingos, o uso de alguma roupa branca e vinte mil réis mensais.» Eça de Queirós, O Mandarim (1880)

entretanto, Netanyahu anda à solta em Nova Iorque

Bem fez a Mongólia, que mandou o tpi à fava quando Putin a visitou. O mesmo, aliás, deveria ter feito a África do Sul, por ocasião da cimeira dos BRICS, e como Lula já garantiu que fará (mas o Lula é alguém). Ou seja: a Mongólia deu-se ao respeito, como deverá fazer qualquer país que não passe por republiqueta das bananas. A farsa do tpi é tal, que Netanyahu anda à solta em Nova Iorque

Por falar nisso: ontem quando cheguei estava Montenegro a falazar na ONU; aguentei 30 segundos e não retive nada, a não ser banalidades. Aliás, o pensamento de Montenegro sobre questões internacionais deve estar ao nível do café da esquina, nada que ele não possa emendar (Cavaco, por exemplo, aprendeu no posto). Ao menos que aprenda também e não seja uma nulidade tipo António Costa, como teremos ocasião de ver já a partir de Janeiro.

quinta-feira, setembro 26, 2024

por aí


Boris Ignatovich, David, Museu Pushkin, Moscovo (1955)

 

tempo de romance

«Esta conversão dos vencedores à crença dos subjugados foi o complemento da fusão social dos dois povos. A civilização, porém, que suavizou a rudeza dos Bárbaros era uma civilização velha e corrupta. Por alguns bens que produziu para aqueles homens primitivos, trouxe-lhe o pior dos males, a perversão moral.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)

«Outrora não teria hesitado e, zape-zape, pinheiro arriba, iria ver em que estado se encontrava o novo berço e voltaria, depois, pelos ovos ou pelas avezitas ainda implumes, as pálpebras cerradas e o biquito glutão semiaberto ante qualquer ruído. Mas, hoje, só se fosse em pinheiro baixo e de gaio ou de rola, que eram bons com arroz.» Ferreira de Castro Emigrantes (1928) 

«Eram dois estes filhos -- Pedro e Daniel. -- Pedro, que era o mais velho, não podia negar a paternidade. Ver o pai era vê-lo a ele; -- a mesma expressão de franqueza no rosto, a mesma robustez de compleição, a mesma excelência de musculatura, o mesmo tipo, apenas um pouco mais elegante, porque a idade não viera ainda exagerar a curvatura de certos contornos a ampliar-lhes as dimensões transversais, como já no pai acontecia.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867)

«De bordo, em curvas alternando com segmentos de rectas, o tanque era, de em par com o lineamento da escaleira que poucos passos dali conduzia à capela, duma ordenança mais harmoniosa que as rendas por minha mãe tecidas. Sobre ele erguia-se a figueira de muitos anos, sombreando o lugar a que a presença de S. Francisco dera um perfume místico de lenda.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918)

«Neste jardim, que só os cónegos velhos frequentavam em manhãs de bom sol morno no intervalo do serviço religioso, não passeava a esta hora ninguém; e dos claustros, igualmente desertos, subia o silêncio de ruínas mortas, entrecortado pelo murmúrio argentino dum turíbulo que oscilava, com isócrona cadência, por detrás da capela-mor, nas mãos diáfanas duma criança grave.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

quarta-feira, setembro 25, 2024

Thelonious Monk Trio, «These Foolish Things»

um destroço optimista na ONU

Quando um velho destroço, marioneta da indústria armamentista, cujos fios se foram partindo com o mundo a olhar, em falência cognitiva e passo acelerado para a reciclagem -- quando esta anedota que pouco difere dos antecessores, a não ser na decrepitude, balbucia na A-G da ONU que está "optimista", depois de ser um instrumento azado para pôr o mundo a arder; após uma retirada humilhante e trágica no Afeganistão; o gritante falhanço da estratégia de enfraquecer a Rússia, à custa do sangue da Ucrânia, apesar das pias proclamações; com a miserável política hipócrita de sustentação do governo bandoleiro-religioso de Israel -- quando este este indivíduo, que votou favoravelmente o massacre no Iraque, com base numa mentira que só os atrasados mentais não viram e que deveria estar há muito pantufas calçadas a rezar o terço, pedindo perdão pelos seus muitos pecados de assassino, diz estar "optimista", todos temos razões para temer.

2 versos de José Régio

«Julgo-me Cristo numa cruz, Camões num hospital, / E o supremo dandismo da desonra me inebria.» 

«Jogo de Espelhos», As Encruzilhadas de Deus (1936)

terça-feira, setembro 24, 2024

a malta é jovem


Um cínico diria que o magistério seria uma profissão extraordinária, não fora a existência dos alunos. Discorda-se do cínico: o problema não está nos discentes, mas na circunstância de alguns trazerem como bónus alguns pais muito pouco recomendáveis à saúde. Também há os simulacros de professores, cuja verdadeira missão é a de ganhar o ordenado enquanto sonham com uma reforma por invalidez. No princípio de tudo, porém, estão burocratas do ministério, entretidos com as suas carreiras e progressões nas ditas, trabalhando para as estatísticas que lhes são impostas pelos políticos de turno. Destes, uns são comissários do partido e outros, tipos bem intencionados, com ideias completamente diferentes dos antecessores no cargo, pondo-as em prática até chegar quem lhes suceda. Por isso, os estudantes costumam ser as primeiras vítimas deste carnaval, seguindo-se os bons professores e os pais conscientes, espécie ameaçada.

Feito o exórdio, comece-se por dizer que o professor Álvaro é um baril, e houvesse necessidade de filho nosso precisar de explicações de Geometria Descritiva, já saberíamos a que porta bater. Mas o professor Álvaro é também autor de BD e cartunista (além de arquitecto de formação) e teve a boa ideia de se inspirar no seu ganha-pão para aplicar o talento que lhe assiste na recriação da sua circunstância profissional – embora tal esteja longe de ser o exclusivo da matéria-prima a que recorre para o trabalho bedéfilo.

Conversas com Putos e com os Professores Deles é o terceiro livro desta série. Deixamos os docentes em paz – os muito bons dificilmente são parodiáveis, os maus são paródia triste – e vamos à maralha de 15, 16, 17 anos e às suas lindezas: do acne, terror das miúdas, à javardolice flatulenta dos rapazes; dos futebóis aos jogos e consolas (ou as gajas); da seca da matéria e da cabulice – as cenas com os alunos passam-se normalmente em contexto de explicação –, a temas mais sérios de política e sociedade, sempre com o enviesamento da auto-suficiência das opiniões fortes e supostamente definitivas, pois os putos é que sabem...

Álvaro (Parede, 1970) é particularmente feliz na captação das expressões que resultam de diálogos que atingem o mirabolante (por vezes nem se trata de diálogo mas de resmungos, quando não grunhidos): do surpreendido ao irritado, do facecioso ao conformado, do enfadado ao malicioso. Não se pense, porém, que o autor comete a feia acção de fazer nome e fortuna (pelo menos crítica) à custa daqueles infelizes. Não, ali há empatia e pundonor profissional, ambos especialmente necessários, quando aos professores de hoje (aos bons e até aos maus) é cometida pela sociedade não apenas a importante função de ensinar, mas também, quantas vezes, a ingrata tarefa de educar, competência que mingua a muitos paizinhos, sempre prontos a exigir dos docentes o suprimento do que a eles lhes falha.

Conversas com os Putos e com os Professores Deles

argumento e desenhos: Álvaro

edição: Insónia, São Domingos de Rana, 2019

(Novembro, 2019)


quadrinhos


Jidéhem

 

4 versos de Carlos Queirós

«Encosto a fronte à vidraça / E sofro, como um castigo, / Que leve a morte consigo / Tudo o que é feliz e passa.»

«Adagio cantabile», Desaparecido (1935)

segunda-feira, setembro 23, 2024

por aí


Alberto García-Alix, Pedrita (1998)

 

sábado, setembro 21, 2024

serviço público - Viriato Soromenho Marques, «Às portas do Inferno»

Texto demasiado importante nesta altura do campeonato, com a perigosíssima Úrsula em rédea livre, sem que os dirigentes dos maiores países da UE tenham estofo (político e intelectual) para afirmar a União Europeia como parte (preferencialmente da solução), mas como uma espécie de Hotentócia do imperialismo americano. (Os negritos são meus)

«O maior arsenal militar da Rússia, na região de Tver, a cerca de 500km da fronteira da Ucrânia, foi atacado na madrugada de dia 18. Kiev afirma terem sido drones a causa da destruição, mas a hipótese de mísseis de longo alcance e o local do seu lançamento continuam em aberto.

Recordemos a cronologia recente. Dia 13, em São Petersburgo, Putin fez uma declaração inequívoca dirigida aos EUA e à NATO. A permissão a Kiev de atacar alvos na Rússia com mísseis de cruzeiro britânicos Storm Shadow e Scalp franceses, com mísseis balísticos táticos norte-americanos Atacms, ou outros semelhantes, equivaleria a uma declaração de guerra. O uso destes mísseis implica o envolvimento de pessoal da NATO, em especial dos EUA, pois é ele que acede aos protocolos e dados de satélite que permitem não falhar o alvo.

Dia 14, a reunião em Washington entre o PM britânico e o presidente Biden foi inconclusiva quanto à autorização de uso daquelas armas por Kiev. Contudo, nesse mesmo dia, o almirante holandês Robert Bauer, chefe do Comité Militar da NATO e o chefe das FFAA checas manifestaram, despreocupadamente, o apoio a essa autorização de uso.

Dia 17 foi a vez do SG da NATO, Stoltenberg, ter afirmado ao jornal The Times, numa toada provocatória, que a declaração do presidente russo era um bluff: “Putin anunciou linhas vermelhas muitas vezes, mas nunca escalou.”

O ataque de dia 18 pode significar que a NATO autorizou o uso dessas armas, sem o comunicar publicamente. Esse silêncio não se destina a enganar a Rússia, mas a manter os cidadãos da NATO no véu de ignorância programada em que nos encontramos há quase 3 anos.

No campo de batalha, as coisas correm mal para as forças de Zelensky, tanto no Donbass como na região russa de Kursk, ainda parcialmente ocupada por tropas de Kiev. O que está na ordem do dia é a existência de um estado de guerra, ainda que não-declarado, entre a NATO e a Rússia. Há uma mudança abissal. O objetivo da guerra passa a ser o de infligir uma “derrota estratégica” à Rússia. O apoio militar defensivo à Ucrânia passou a ser claramente ofensivo. Colocámos as armas da NATO, manejadas e programadas pelos nossos especialistas, com a informação dos EUA, a mais detalhada do mundo, a destruir infraestruturas militares críticas da Rússia, esperando, como Stoltenberg faz crer, que a Rússia encolha os ombros…

Há muita gente brilhante temendo a possibilidade de a Humanidade ser destruída ou dominada pela IA (Inteligência Artificial). O que está a acontecer no Ocidente, com aventureiros a fingir de estadistas e militares incompetentes ao seu serviço, não vai nesse sentido.

O nosso maior perigo existencial é a EN (estupidez natural). Essa mistura tóxica de ignorância arrogante, de agendas preenchidas escondendo indigência intelectual e alergia ao pensamento crítico, de carreirismo tenaz imbuído no conformismo de rebanho… é isso que domina na esclerose das organizações, como sucede hoje na NATO e UE.

Com imperdoável ligeireza, os líderes do Ocidente substituíram as lições da Guerra Fria, por um temerário aventureirismo. Espetaram uma baioneta no coração da dissuasão nuclear: o imperativo de escutar, compreender e negociar com o adversário para que ele não se transforme no inimigo que abraçaremos na destruição mútua assegurada.

A NATO está ufana da sua enorme superioridade em população (980 contra 144 milhões) e material de guerra convencional sobre a Rússia. Recalcou, todavia, o facto de que a Rússia nunca cairá sozinha. Num cenário de derrota convencional, ela teria capacidade, apenas com uma fração dos seus 1710 mísseis nucleares operacionais, para aniquilar não só os Exércitos, mas também os alicerces da civilização na UE e EUA.

A maioria esmagadora dos cidadãos no Ocidente recusam o suicídio. Como é possível que os nossos Governos e Parlamentos deixem a questão da vida ou morte dos povos do Ocidente entregue a incendiários aprendizes de Dr. Strangelove, como Stoltenberg?  As portas do inferno já estão abertas. Vamos em frente?»

Viriato Soromenho Marques, no Diário de Notícias de hoje


o que vai acontecer

«Mas que ganhara com a profissão de lavadeira, além desses conhecimentos de cultura geral? Unicamente as mãos encardidas de lixívia e os dedos vermelhos, cheios de calos, mortos à sensibilidade. / A Alice poisou a trouxa de roupa suja, que trazia à cabeça, junto do riacho. As pernas tinham varizes de tanto andar.» Miguel Barbosa, «A dança», Retalhos da Vida (1955) § «O gado é a vida da gente de Sequeiros; a lã, o seu trigo e o seu pão. Só nos escassos meses de veraneio a terra fica nua e pode gerar. No Inverno veste-se de branco e adormece. Pastores e rebanhos pernoitam no quente dos currais, e o dia é da serra, na pista do verde.. Semanas e semanas, o gado no coberto, por culpa dos nevões, sem poder emigrar para o vale.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1949) § «Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada.» machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884) 

por aí




Margareth Bourke-White

 

sexta-feira, setembro 20, 2024

ucraniana CCLXIV: da desinformação na imprensa portuguesa

Depois de ter lido no Público, há uma semanas, que o partido de Sarah Wagenknecht era mais ou menos de esquerda na economia e políticas sociais, e mais ou menos de direita, entre outros exemplos de que me esqueci, por ser anti-Nato -- o idiotismo populista jornalístico em elevado grau... --, li há dias, no Diário de Notícias, um exemplo de desinformação russa ou instilada pelos russos: a ideia de que que a Rússia nunca entrará em guerra com a Nato por sua iniciativa. 

Qualquer bivalve percebe que uma acção dessas acarretaria a resposta que se imagina; ao querer apresentar a tese de que isto constitui propaganda russa para desmobilizar os "europeus", estão a ser eles próprios agentes de desinformação -- sabendo-o, pois não se pode ser tão estúpido, a partir de certo patamar. Além disso, a prosápia de Trump sobre o tema não convenceu ninguém com dois dedos de testa, a começar pelos então apoiantes de Biden. A este embuste, que os plumitivos ajudam a espalhar, chamamos o quê -- jornalismo de referência. 

Claro que há exercícios de prospectiva: quem sabe o que acontecerá daqui a duas gerações, ou até no próximo ano? Ninguém. Daqui a duas dúzias de meses, pode até ter deixado de haver UE, ou a Rússia como a conhecemos hoje -- ou mesmo os Estados Unidos. Mas isso não é jornalismo e muito menos informação.

tempo de romance - Manuel Ribeiro

«No espaço quadrangular, entre o claustro e a abside, tinham talhado, num período recente de desobstruções, um adorável jardim com os clássicos arruamentos de buxo enquadrando modestos canteiros de rosas e gerânios. Alguns pés de glicínias trepavam resolutamente, enroscando-se nos botaréus e nos muros rugosos ou seguindo a linha sinuosa das arcadas.»  Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

Duke Ellington, «Blues»

tempo de novela - Camilo Castelo Branco

«O rapaz tartamudeou, tiritando de medo. / -- Perdeste, ladrão? Vai em cata dela, e, olha lá: se a não trouxeres, não me apareças mais, que te arranco os fígados pela boca. / E deu-lhe dois valentes pontapés à conta. / Este João da Laje era um homem de princípios menos maus, assentados em religião e pátria: havia matado dois franceses doentes nas ambulâncias retardadas, e acreditava que o fantasma era a alma do capitão-mor e não a égua branca do vigário.» Camilo Castelo Branco, Maria Moisés (1876-77)

quinta-feira, setembro 19, 2024

por aí


Jean Dieuzaide

 

tempo de romance - Machado de Assis

«Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) 

quarta-feira, setembro 18, 2024

tempo de novela - Branquinho da Fonseca

«Durante este  mês quero estar quieto, parado, preciso de estar o mais parado possível. Acordar todas essas trinta manhãs no meu quarto! Ver durante trinta dias seguidos a mesma rua! Ir ao mesmo café, encontrar as mesmas pessoas!... Se soubessem como é bom! Como dá uma calma interior e como as ideias adquirem continuidade e nitidez!» Branquinho da Fonseca, O Barão (1942)

tempo de romance - Júlio Dinis

«Como homem de família, não havia também que pôr a boca em José das Dornas. Em perfeita e exemplar harmonia com sua mulher, e então, como depois que viuvara, manifestou sempre pelos filhos uma solicitude, não revelada por meiguices -- que lhe não estavam no génio -- mas que, nas ocasiões, se denunciava por sacrifícios de fazerem hesitar os mais extremosos.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867) 

tempo de novela - Aquilino Ribeiro

«Bebia-se o briol por canadões de pau até que bonda. Um homem mesmo com os dias cheios tinha pena de morrer. / Não tenho cataratas nos olhos, ainda que me hajam rodado sobre o cadáver quase dois carros de anos, mas os dias de hoje não os conheço. Ponho-me a cismar e não os conheço.» Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas (1922)

terça-feira, setembro 17, 2024

Bob Seger, «Fire Lake»

tempo de romance - José Régio

«O cansaço atirava-me então contra qualquer muro. exausto como um pobre animal vencido. E na lúcida consciência da minha humilhação, da minha fraqueza, e da minha loucura, saboreava não sei que travor de triunfo. Uma espécie de libertação me sobrevinha. Eu experimentava uma vaga satisfação de destino cumprido!» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934)

carne para canhão

O pregador estrito, de salmo na boca e Bíblia na mão, é um dos tipos característicos do género western. Morris, por exemplo, dedicou-lhe um dos últimos álbuns de Lucky Luke, e o nosso Vítor Péon congeminou uma curiosa figura de reverendo-pistoleiro que não terá passado dos esboços. No álbum desta semana, um desses espécimes é a personagem secundária tóxica da narrativa – à frente de um bando de sicários – e também agent provocateur ao serviço de interesses não muito pios. Em 1861, o Kansas, estado recente, tornara-se palco da luta entre esclavagistas do Missouri, a leste, e antiescalavagistas do Nebraska, a norte, uma vez que as autoridade estaduais dispunham do poder de optar por um dos sistemas, graças a uma lei de 1854, apontada como uma das causas da Guerra da Secessão, prestes a deflagrar. Markham, assim se chama a criatura, levanta as populações em comícios acalorados contra os malditos esclavagistas, “que recusam o progresso industrial e as novas leis alfandegárias (…), necessárias à recuperação financeira do nosso grande país”; ao mesmo tempo que, obcecado pelo pecado, e em especial com as mulheres “adúlteras”, corre as cidades para fazer “justiça” com as próprias mãos, sendo o companheiro abatido e a mulher levada para o celeiro onde é chicoteada até à morte, O pregador deixa a sua assinatura no local: uma folha das Escrituras com a parábola da mulher adúltera, presa por um crucifixo invertido e encimada por uma conveniente bandeira da Confederação. Esta criatura temível está, porém, marcada pela perseguição, de que vai tendo suspeitas: um cavaleiro misterioso de quem nada se sabe, vai na sua peugada, pelo rasto de crime que deixa. Ninguém sabe de quem se trata e nós, leitores, também não. Algumas reminiscências partilhadas dizem-nos que ainda criança se viu órfão após o massacre dos pais – que aparecendo num relance não tinham aspecto de colonos, antes citadinos. Criado pelos índios, o xamã ensinou-lhe a tirar partido das propriedades das plantas que afastam os espíritos malignos e o protegem do dom congénito, benção ou maldição: a capacidade de ver o passado de quantos se cruzam no seu caminho.

Lonesome, de Yves Swolfs (Bruxelas, 1955), autor também da série Durango (1980), com um traço soberbo e dotes de fisionomista, engendrou uma personagem fragmentada, à procura de si própria, Ágil com as armas e arguto, se há coisa de que desconfia é do bicho-homem, sentimento aligeirado quando se depara com uma prostituta honrada ou um jornalista destemido. Jornalista em cuja boca Yves Swolfs pôs a amarga visão que tem do poder político-finaceiro, sempre por detrás das catástrofes, a Guerra da Secessão, mas que assenta que nem uma luva na que está em curso na Europa: “Falo-lhe de uma casta que nunca sofrerá as consequências da guerra devastadoras que nos prepara... mas da qual, pelo contrário, tirará o melhor partido!...” Ao contrário da carne para canhão, que geralmente nem sabe o que lhe está a acontecer.

Lonesome – 1. A Pista do Pregador

texto e desenhos: Yves Swolfs

cor: Julie Swolfs

edição: Gradiva, Lisboa, 2021

(Maio, 2022)






segunda-feira, setembro 16, 2024

tempo de romance - Joaquim Paço d'Arcos

«-- E deste lado também! -- brada por estibordo uma outra voz triunfante. Não era miragem, invenção de olhos ansiosos de ver. Era verdade igualmente. / Dum lado os cumes de Sintra, do outro os píncaros da Arrábida, e entre eles o mar, o mar imenso, tranquilo, parecia que adormecido. Em linha recta, traçada entre os dois cumes pela vante divisados, seguia o Angola, sem dúvida alguma já no acerto do seu cálculo.» Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933)

tempo de novela - José Régio

«Tapando-lhe a estação, havia outro comboio na primeira linha. Mas as carruagens ficavam tão altas que Rosa Maria desistiu de subir, assim carregada, e atravessar para o outro lado. Pôs-se a andar ao longo das carruagens. Soprava, a espaços, um vento seco e álgido, violento, contra o qual baixava a cabeça de lado, avançando a custo.» José Régio, Davam Grandes Passeios aos Domingos (1941)

tempo de romance - Ferreira de Castro

«A pega, infatigável, ora procurando na terra, ora alçando-se à copa eleita, continuava a construir o ninho. Era já uma grande mancha, um grosso volume de pauzitos, seguro entre os últimos ramos do pinheiro. / Estendido onde a sombra lhe parecera mais agradável, Manuel da Bouça seguia o trabalho da ave e recordava o tempo da infância, já distante, em que vasculhava veigas e montes à busca de ninhos, só pelo prazer de os descobrir e disso se vangloriar ante o rapazio do lugarejo.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

as declarações (parcialmente) acertadas de Nuno Melo, o portuguesismo de cu para o ar e uma sugestão de borla

Nuno Melo esteve formalmente correctíssimo sobre a pergunta que lhe fizeram a propósito da vila alentejana de Olivença. Aliás, nunca poderia ter dito outra coisa, algo que os jornalistas, patriotas de cu para o ar, além de indigentes (um truísmo), criticaram, pois a Espanha --, oh a Espanha, que passa a vida a falar de Gibraltar, embora ocupe Ceuta e Melilha, além de Olivença, sem esquecer a questão das autonomias, pode ficar melindrada. O respeitinho é tão bonito.

Embora formalmente o ministro tenha razão, a posição de Portugal poderia e deveria ser outra, para além deste formalismo bocejante. Se o Direito diz que Olivença é portuguesa, e a força diz que é espanhola, a posição do mais fraco -- um pouco como sucedeu a propósito de Timor-Leste em relação à Indonésia -- (a posição de Portugal) deveria ser a de defender um referendo naquele concelho, comprometendo-se os dois estados a respeitar a decisão do povo. Chama-se autodeterminação e é a única forma democrática e aceitável de resolver diferendos desta natureza. Seja em Olivença, nas países ocupados pelo estado espanhol, no Donbass e na Transnístria, no Saara Ocidental, no Tibete ou nas Falkland / Malvinas. Porque, como dizia o Trovador, o povo é quem mais ordena. Não é? Claro que a Espanha nunca o aceitará, mas isso já se sabe.

domingo, setembro 15, 2024

Cat Stevens, «On the Road to Find Out»

tempo de novela

«O "bagatelle" deixou a lata, pousou uma das mãos sujas sobre a escada e olhou para o beiral: / -- Vou pintar a palavra "Missão" no telhado, por causa dos bombardeamentos... / -- Muito bem. É preciso -- apoiou Mounier, sempre com um tom descuidado e já a afastar-se.» Ferreira de Castro, A Missão (1954) § «Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga. Todas as semanas contavam dias de guarda e, por cada dia de guarda, armava-se o saricoté dos terreiros. Não andaria Nosso Senhor de terra em terra -- eu cá nunca me avistei com ele -- mas a verdade é que a neve vinha com os Santos e as cerejas quando largam do ovo os perdigotos.» Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas (1922)

sábado, setembro 14, 2024

tempo de romance

«O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho. O pároco tinha um grande respeito pelo chantre, homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio -- que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas.» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80) § «De três bicas, manando de rosáceas num pano de gracioso corte, com o entablamento coroado por pirâmides e um frontão em que se vazava uma guarita de santinho, apenas uma escorria no tempo da seca. Se pelos meses de águas vivas todas três brotavam, na tristeza das horas sem luz, à borda do silêncio revessado pelo convento, seu gorgolão era grave como uma salmodia de monges.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918) § «Quantas noites não pregara olho a traçar planos para os canteiros da ponta de baixo que pareciam avessos a receber frescura? Então, erguia-se da esteira para percorrer o arrozal, levando as estrelas por camaradas mais a endecha da água e o zangarreio das rãs.» Alves Redol, Gaibéus (1939) § «As leis dos césares, pelas quais se regiam os vencidos, misturaram-se com as singelas e rudes instituições visigóticas, e já um código único, escrito na língua latina, regulava os direitos e deveres comuns quando o arianismo, que os Godos tinham abraçado abraçando o Evangelho, se declarou vencido pelo catolicismo, a que pertencia a raça romana.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)