quarta-feira, fevereiro 19, 2025
ucraniana CCLXXXII - quando os fariseus choram pelo fim do Direito Internacional
Em cada hipócrita há um detestável vigarista. Ler e ouvir lamentações pelo "fim" do Direito Internacional e a prevalência do direito do mais forte, vinda de criaturas que se marimbaram para o assalto ao Iraque (quando não o apoiaram...), esses mesmos indivíduos que falam dos nossos valores, mas, em muitos casos, não tugem nem mugem quando os delinquentes do governo israelita massacram indiscriminadamente, em vindicta de contorno veterobíblica, a população inteira da Faixa de Gaza -- ler e ouvi-los sem os insultar é tarefa impossível.
ucraniana CCLXXXI - quando o pseudo-jornalismo é ao mesmo tempo tendencioso, desonesto e ignorante
Está aqui na TSF, podia ser o Público, e a imprensa quase toda. Depois de resumirem as declarações do Trump, o redactor introduz um período da sua lavra, para explicar aos mentecaptos que o lêem que ele, Trump, está a trumpar, está a mentir. Leia-se:
«[,,,] "Hoje ouvi dizer 'não fomos convidados'. Bem, vocês [Ucrânia] estão lá há três anos. Deviam ter acabado com isto há três anos. Nunca o deviam ter começado", disse Trump sobre o conflito na Ucrânia. / A guerra foi desencadeada pela Rússia que invadiu o país em fevereiro de 2022.» (sublinhado meu)
E o pior é que este incompetente e analfabeto (ou analfabeta) provavelmente acha que está a ser honesto, que foi realmente assim, mesmo que, deixando a deontologia pelas ruas da amargura, sinta a necessidade de meter o bedelho na matéria noticiosa -- um pouco como aqueles inomináveis pivôs, que, após declarações de um convidado que diga algo diferente das convicções do criaturo, rematam com um aparte discordante a declaração que o seu convidado acabava de fazer, tendo assim -- malcriadamente e desrespeitando também os telespectadores -- a última palavra...
Nada disto é novo, e no que respeita à guerra da Ucrânia (entre a Rússia e os Estados Unidos, q.e.d.) há três anos que estamos a aguentar esta pocilga informativa.
2 versos de Dick Hard
«Pau Pau / Beijo Beijo»
«História breve de meretriz que trocava favores sexuais por sanduíches de queijo» /
/ De Boas Erecções Está o Inferno Cheio (2004)
terça-feira, fevereiro 18, 2025
o que está a acontecer
«Pastas sobre pastas de nuvens álgidas, que a noite transforma em crepes, amontoam-se na escuridão. O granito revê água. E sob a chuva ininterrupta, sob as cordas incessantes, a vila, envolta na treva glacial, parece lavada em lágrimas...» Raul Brandão, A Farsa (1903)
«Avançava cautelosamente, inclinando a cabeça para não tocar no tecto. À medida que se aproximava da claridade exterior, via-se que se tratava de um homem novo. O polícia sabia a sua idade exacta. Mas não era necessário ler o papel que o polícia trazia no bolso: Januário de Sousa, filho de Ana Maria e de pai incógnito, etc.; bastava deitar o rabo do olho à sua pele morena, lisa e macia, que nem a água passada a ferro na popa dos barcos, para se ver que ele não tinha mais de vinte anos, apesar de os seus olhos parecerem exaustos por não se sabia quantas madrugadas do princípio do mundo.» Ferreira de Castro, A Experiência (1954)
«Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa "o D. Galeão", descendo uma tarde pela Travessa da Trabuqueta, rente de um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto -- até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o lixo.» Eça de Queirós, A Cidade e as Serras (póst., 1901)
segunda-feira, fevereiro 17, 2025
2 versos de Fernando Jorge Fabião
«as veias dos mapas são fundas / como minas abandonadas»
Nascente da Sede (2000)
domingo, fevereiro 16, 2025
sábado, fevereiro 15, 2025
o que vai acontecer
«E uma ideia nasceu no cérebro velho do pastor esfaimado. Tosas as ovelhas eram iguais, feitas por Deus: então, porque baliam as suas de fome e as do vizinho de fartura? E não achava resposta boa para mistério tamanho. Não pensava em si, na sua fome; se os homens eram também iguais, por as ter a todos feito o mesmo Deus, não sabia ele, nem isso o preocupava.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1948)
«A lavadeira voltou para a realidade ao meter as mãos na água. O Inverno só agora começava e o riacho gelara já nalguns sítios. O frio, excitado como um animal selvagem que se apanha finalmente à solta, rasgava-lhe a pele e mordia-lhe os ossos. Escurecia, mas a Alice não podia parar. A roupa era muita.» Miguel Barbosa, «A dança», Retalhos da Vida (1955)
«Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)
ucraniana CCLXXX - o telefonema de 7 minutos de Trump a Zelensky e o 'jornalismo' doloso
Se o jornalismo era já uma actividade pouco prestigiada e prestigiante, não obstante a percentagem reduzida de grandes profissionais que sempre se verificou existir, é já uma banalidade referir o quão fétida e cadaverosa está uma actividade que deveria ser nobre, mas que se degrada e prostitui todos os dias, a todas as horas. Ainda hoje ouvi um rui qualquer do Expresso, que pouco mais deve saber do que contar até dez a evolucionar verbalmente sobre a Conferência de Munique...
No que respeita à guerra da Ucrânia os exemplos de incompetência e principalmente ignorância são diários -- e estou a referir-me apenas a jornalistas, dos pivôs, quase todos uma desgraça, aos patéticos enviados especiais.
Mas há subtilezas que mostram a má-fé e o propósito de confundir e esconder. Por exemplo: os já célebres telefonemas de Trump a Zelensky. Nessa madrugada ouvi num canal, que neste momento não posso jurar qual tenha sido (muito zapping tenho feito nos últimos dias), que amalgamava os dois telefonemas, referindo-se à duração de hora e meia. No fim, ficara com uma estranha sensação de que Trump falara longamente com ambos, achando estranho a coincidência da duração idêntica de ambos, a tal hora e meia, foi assim que a coisa ficou a pairar. Às vezes há coincidências... Foi preciso, no dia seguinte, ouvir Agostinho Costa, para ficar a saber que de facto, a conversa com Putin durara noventa minutos, enquanto Zelensky foi despachado em sete-minutos-sete.
É risível? Quase, mas não há aqui nenhuma novidade. Estes três anos de guerra não se caracterizam apenas pela manipulação da informação que as partes fazem, mas da activa participação nesse renegar do jornalismo sério em que tem participado uma extensa parte dos profissionais, todos os dias e a todas as horas.
sexta-feira, fevereiro 14, 2025
4 versos de Luísa Dacosta
«Só o voo dos meus olhos / te persegue / e tenta / trazer-te até mim.»
«Tentativa», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)
quinta-feira, fevereiro 13, 2025
ucraniana CCLXXIX - o amigo americano
O amigo americano da Ucrânia usou-a primeiro para impor uma "derrota estratégica" à Rússia. Serviu-se para isso, não apenas dos neo-nazis da terra, como dos fantoches europeus que fizeram o que o amigo lhes mandou fazer. Com a provocação à Rússia conseguiram um país destruído, milhares de mortos e amputação de uma parte do território (tudo isto tem o que se lhe diga). Para compensar tanta ajuda, o novo amigo americano decide ser reembolsado. É ou não é um génio, o Zelensky? Os vigaristas e os analfabetos que por cá comentam acham que sim.
Entretanto, nunca esta crise me deu tanta vontade de rir ao ouvir o secretário-de-estado da Defesa na reunião da Nato. Não tive a ventura de ver as carinhas dos ministros presentes, a começar pela do nosso, que nesta questão da Ucrânia foi sempre um atraso de vida, para não destoar.
Vi também o horrífico eunuco que está como sec-geral da Nato a ameaçar ameaçadoramente Putin, que se atacasse um país da Nato a resposta seria esmagadora, etc. Ora se há uma coisa que Putin não tem é estupidez e cretinismo, Se ele joga xadrez, este patetas nem o chinquilho.
No entanto, percebe-se que há alguns que não vão largar o osso e continuar a hostilização da Rússia à espera que mude a maré. Parece, porém, que esta amizade se estenderá, depois de Trump a Vance, sem esquecer o que se desenha por essa Europa. Mas isso já é outra história.
quarta-feira, fevereiro 12, 2025
2 versos de José Régio
«Procurei fugir de mim, / Mas sei que sou meu exclusivo fim.»
««Poema do silêncio», As Encruzilhadas de Deus (1936)
terça-feira, fevereiro 11, 2025
o que está a acontecer
«A luz, ao entrar, varreu os pontos que o ralo projectava ali, uns pontos brancos aglomerados no jeito das cavidades dos favos e que constituíam a única luminosidade existente lá dentro quando a porta se encontrava fechada. / Dois bancos laterais corriam de um extremo a outro, no interior da furgoneta. Um homem levantou-se e começou a andar em direcção à porta.» Ferreira de Castro, A Experiência (1954)
«-- Ai que ma levam!, ai que ma levam! / Uma nuvem desce da serra: arrastam-se rolos pelas encostas pedregosas e depois as baforadas espessas abafam de todo a vila. E noite, cerração compacta, névoa e granito formam um todo homogéneo para construírem um imenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho.» Raul Brandão, A Farsa (1903)
«A sua quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Agra até ao mar de Âncora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios, n.º 202.» Eça de Queirós, A Cidade e as Serras (póst., 1901)
e que tal darem a medalha devida a Angela Carini?
Refiro-me à atleta italiana a quem os guardiães do manicómio no COI arrebataram a medalha olímpica para darem a esta belíssima moçoila. Direitos humanos, não é, ó palermas? Levam (levamos todos) agora com o Trump e os mais que se avizinham. Obrigadinhos...
2 versos de Alberto de Lacerda
«Na noite, na chuva, sem ti, / sou apenas o ritmo que diz o teu nome.»
«Depois de teres partido», 77 Poemas (1955)
segunda-feira, fevereiro 10, 2025
a autobiografia de Eric Hobsbawm - .I impressões gerais
Terminei há pouco a leitura da autobiografia de Eric Hobsbawm (1917-2012), Tempos Interessantes -- Uma Vida no Século XX (2002). Nascido em Alexandria, filhos de um judeu inglês e de uma judia austríaca, a infância e adolescência decorrem na Viena pós-imperial, terminando na Alemanha hitleriana, onde se torna jovem comunista, e da qual se desterra para o seu país, a Inglaterra, onde tinha família que só então conhece, pouco depois da ascensão nazi.
Hobsbawm foi um dos grandes historiadores do seu tempo, aliando a análise marxista de base a um espírito simultaneamente crítico e criativo e não-dogmático. Pertencem-lhe ou desenvolveu conceitos como o da dupla revolução (Revolução Industrial e Revolução Francesa), "invenção da tradição", "o longo século XIX" (1789-1914) ou o "curto século XX" (1914-1991), nas suas obras mais emblemáticas: A Era das Revoluções: Europa 1789-1848 (1962), A Era do Capital: 1848-1875 (1975), A Era dos Impérios (1875-1914) (1987) e A Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914-1991) (1994). Foi também pela atracção pela cultura popular e pelo ethos dos marginais que escreve a esplêndida História Social do Jazz (1959) ou Bandidos (1969), entre outros títulos.
Nestas memórias assume erros de avaliação, como observador-historiador e como político-intelectual. Crítico acérrimo do estalinismo, mas sem nunca cair na apologia do capitalismo ou inflectir para a direita, como sucedeu com tantos intelectuais, à medida que a leitura se desenrola estamos sempre à espera que ele anuncie a sua desvinculação do Partido Comunista da Grã-Bretanha, ao qual aderiu em meados da década de 1930: por exemplo, a tomada de Budapeste pelas tropas do Pacto de Varsóvia, em 1956 (que entre nós está na origem do abandono do PCP por Mário Dionísio). Quando verificamos que ele se mantém no PCGB -- a seu modo, é claro, e como intelectual de espírito objectivo -- por ocasião da Primavera de Praga e a repressão da liderança de Dubcek e do seu "comunismo de rosto humano", percebemos que ele nunca abandonará o Partido -- com maiúscula. No fundo, é o partido que se extingue (em 1991) com ele lá dentro. Percebe-se: velho comunista, renegar o partido seria, na minha interpretação, renegar-se a si próprio e ao trajecto em que consolidou o seu edifício historiográfico: mantendo-se marxista, mantém-se no Partido Comunista, no entanto com outra distensão, diferente da do jovem militante dos anos 30 a 50. Percebe-se também que se sente atraído pelo eurocomunismo de Berlinguer, criando fortes laços com o PCI, nomeadamente com Giorgio Napolitano, intelectual que viria a ser Presidente da República já neste século.
O meu desapontamento prende-se com ausência de referências a Portugal -- apenas duas, uma das quais certeiríssima, ao caracterizá-lo, num parênteses de um capítulo sobre a Espanha, como um "país enclausurado". Não aparecer o 25 de Abril e a revolução que se lhe segue é lastimável (nessa altura andava por outras paragens, mas ainda assim). Não aparece Cunhal, para o qual suponho não tivesse já grande paciência, mas duvido que não se entusiasmasse com Vasco Gonçalves e muito provavelmente com a Reforma Agrária. Há referências indirectas à Guiné Portuguesa e aos "criminosos da Unita"; o Brasil, com um pouco mais de sorte: Prestes, Kubitschek, Niemeyer e principalmente Lula, com quem priva, deliciado com a ascensão do PT. Também não aparecem os escritores, como os comunistas mais internacionalizados, Jorge Amado ou José Saramago, já Nobel e, pela igual ausência, parece que já não terá dado pelo Pessoa do Livro do Desassossego, cujas primeiras traduções na língua inglesa datam de 1991.
Judeu nascido no dealbar do seu short century, meio inglês-meio austríaco, e no olho do furacão nazi quando o extermínio começava, comunista num irrelevante PCGB, historiador assumidamente marxista e de largo alcance, excepto para lá da Cortina de Ferro, onde só foi traduzido na Hungria (sem esquecer a Iugoslávia, outra realidade, em esloveno), noutro post farei uma recolha de frases destes Tempos Interessantes.
(ver também aqui, Hobsbawm a propósito de Louis Armstrong)
duplo elogio a Pedro Nuno Santos, entre a falsa esquerda 'woke' e os cães-de-guarda do capital
Já me impacientei com ele, agora duplamente o elogio.
O primeiro, a propósito da suas mais do que sensatas declarações a propósito da emigração. Não me pronunciei logo, porque a circunstância de haver um desgraçado sem escrúpulos chamado André Ventura que está a subir na vida à custa da boçalidade primária ou do oportunismo dos portugueses, coibiu-me de o fazer. E, no fundo, fiz mal. Assuntos sérios -- reais ou percepcionados -- não podem ser deixados nem à pseudo-direita avinhada nem â falsa esquerda woke. E se há um problema real ou inventado que os venturas cavalgam, é obrigação de toda a esquerda decente e inteligente de o não deixar à mercê dos oportunistas incendiários de serviço.
Quando Pedro Nuno Santos, mais ou menos inabilmente, se referiu na preservação dos nossos valores culturais, eu li-o uma chamada de atenção para a precária situação das mulheres na maior parte do mundo islâmico -- 'maior parte', pois ainda agora vemos como tudo é bem diferente por exemplo entre os muçulmanos ismaelitas. Assim sendo, fez o líder do PS muito bem em elevar a fasquia para os parâmetros ocidentais at large (Portugal e a sua realidade de violência doméstica é um país subdesenvolvido do Ocidente). A suposta esquerda woke -- a começar pela que mina o PS -- caiu-lhe em cima. Em nome dos seus absurdos padrões duplos de manicómio, convive bem com a domesticação das mulheres islâmicas -- e portanto, lá teve Santos de arcar com o lixo ideológico do costume.
Agora, parece que terá falado em salvaguardar as pensões dos portugueses da economia de casino, dos fundos de investimento e de toda essa panóplia de alavancas da ganância, para choque dos azeiteiros do costume.
Quando alguém se diz de esquerda, convém dizer coisas de esquerda. Uma delas é o da defesa das mulheres e da necessidade da sua igualdade intrínseca -- se possível contra os neo-fachos woke; a outra é mostrar repugnância pela 'economia de casino' que é uma economia de bordel, em que se movem muito bem todas as traficâncias, e cuja defesa tem também os seus rafeiros a ladrar na praça pública.
2 versos de Rui Knopfli
«A minha infância é um cão malhado. / Chama-se Foxie e ladra aos passantes.»
«Tempo morto», O País dos Outros (1959)
domingo, fevereiro 09, 2025
alhures
«"Apesar do que, e tal como está e se encontra -- com a grande mó partida e a erva a crescer por entre os tijolos da plataforma -- declara o Sr. Daudet achar o dito moinho de acordo com as suas conveniências e capaz de servir para os seus trabalhos de poesia, pelo que o aceita com todos os riscos e perigos e sem nenhum recurso contra o vendedor no tocante às reparações de que porventura careça.» Alphonse Daudet, «Prólogo», Cartas do Meu Moinho (1869) - trad. Fernanda Pinto Rodrigues
«São fabricadas por um taumaturgo que habita um continente longínquo; agora já está velho e sofre de arteriosclerose. O pobre homem aborrece-se e cada vez se torna menos ágil. / Vejo-me obrigado a dizer-te adeus...» Félix Cucurrul, «Carta de despedida», Antologia do Conto Moderno - trad. Manuel de Seabra
«Pela tarde, Gertrude Stein e eu costumávamos ir à caça de antiguidades nas lojas locais e eu lembro-me de uma vez lhe perguntar se ela pensava que eu me havia de tornar um escritor. No seu modo tipicamente crítico que tanto nos encantava, respondeu "Não". Tomei isso como um assentimento e zarpei para Itália no dia seguinte.» Woody Allen, «Memórias dos anos vinte», Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura (1966) - trad. Jorge Leitão Ramos
sábado, fevereiro 08, 2025
o que está a acontecer,
«O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival. / No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já entulhava grão e plantava cepa em tempos de el-rei D. Dinis.» Eça de Queirós, As Cidades e as Serras (1901)
«O próprio gato, depois de ter brincado algum tempo à roda das saias da dona -- "Sape-gato, já me arranhaste!" -- pulou de leve para o lar da chaminé, e dorme agora enroscado na auréola de calor do fogareiro. / Há quantas horas dura a tarefa? Deram as onze na Sé, depois no relógio aguitarrado da casa de entrada, e as duas mãos param um instante na toalha branca, sob o comando da reflexão.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)
«O polícia, que vinha sentado junto do motorista, chupou, quatro vezes seguidas, a ponta mungida do cigarro, atirou-a fora -- e desceu. Sentindo os olhares despejados lá de cima, que davam maior vaidade ao seus gestos, ladeou a furgoneta e, atrás, abriu a porta, que era chapeada e sólida como a de um cofre.» Ferreira de Castro, A Experiência (1954)
sexta-feira, fevereiro 07, 2025
quando os sionistas se tornam muito parecidos com os nazis, só lhe faltando o fornozinho crematório para acomodar os palestinos
Os governantes israelitas (e quem os elege) são não só miseráveis, como dão razão a quantos acham que Israel não deve existir. Se é para isto não deve mesmo existir.
Uma coisa os bandidos que governam Israel já conseguiram demonstrar: aquilo não é um país, mas, como bem escreveu Carlos Matos Gomes (cito de memória), não passa de uma poderosa guarnição destaca do Império.
Eu, que tanto aprecio o povo judeu, que os considero uma das grandes vítimas da História, que a sua expulsão de Portugal -- desumana e cruel, assim como a perseguição maniáca aos cristãos-novo -- um dos mais graves erros (e crimes) da história de Portugal; que considero o Holocausto como um crime incomparável na sua maldade assumida na história contemporânea -- ao contrário dos patetas que equipara os crimes do stalinismo aos do nazismo -- deixei de ter qualquer simpatia por Israel. Ao contrário, só me causa horror e repulsa.
Quem dera que aquela porcaria de estado acabasse, ficando só as livres comunidades dos kibutz.
4 versos de José Alberto Oliveira
«Riscadas a esferográfica preta / as frases de que vivia, quase sem graça, / como se a literatura / fosse a alma de quem as procura.»
«A parábola dos cegos», O que Vai Acontecer? (1997)
'como és belo, meu Portugal'
O Chega... Nada deste lixo surpreende -- ao contrário, só espanta que a imprensa tenha levado tanto tempo a raspar-lhe o sarro, depois de eleitos 50 deputados 50. É um manancial que já não vai largar. Até a recaptura dos dois assassinos a monte ficou para segundo plano. Mas, repito: alguém se admira de dar com isto e o que mais houver?
quinta-feira, fevereiro 06, 2025
um dia bom para as mulheres e para os feministas
Se alguém se disser feminista e defender ao mesmo tempo que é aceitável transexuais competirem com mulheres no desporto, ou é uma fraude ou está alienado.
(Eu sei que é chato estar a elogiar o Trump quando ele tira da cartola a Riviera de Gaza, uma trumpice; mas nunca esqueçamos que o massacre dos palestinos e a pulsão genocida foi toda articulada na administração Biden, com as falinhas mansas desse extraordinário democrata e humanista que todos conhecemos.)
Voltando ao manicómio: não me canso de falar no caso infame do roubo do título olímpico a uma boxeuse italiana -- das coisas mais degradantes e revoltantes a que assisti na minha vida --, incluindo a retratação pública a que ela se sentiu obrigada. Mas já é tempo de denunciar e desmascarar todas as mentiras, e as estratégias de vitimização, relativização e intimidação woke.
Mentiras chapadas quando chamam "mulheres" e "meninas" a transexuais, como este patético e nauseabundo título do Globo, jornal de tradição progressista, como se sabe...; quando se relativiza sempre com o número exíguo das pessoas em causa -- tão exíguo que até ganham medalhas olímpicas, para desânimo das mulheres que com eles têm de competir --; ou quando vêm com a historieta dos "direitos humanos", ou usam do poder mediático de que dispõem para cilindrar quem se lhes opõe. O que vi naquele "combate", entre o desespero da mulher e a sua retratação, foi um treinador com medo, a tentar justificar a sua atleta, e sem palavras para articular algo a respeito da insanidade onde ambos haviam sido metidos, receando naturalmente pela carreira de treinado e pela da sua atleta.
Em suma: um escarro que tem a conivência não só dos cobardes como daqueles que acham que há coisas mais importantes pelas quais lutar. Mas não há: a injustiça, quando atinge um, atinge todos. E manifesta-se quando famílias são chacinadas num kibutz, quando um povo é massacrado num território, e sempre, quando um indivíduo é cilindrado por qualquer tipo de mundividência, por norma absurda e anormal, nesta altura gozando da conivência dos estados. Não há assuntos menores quando a dignidade e a justiça são comprometidas.
2 versos de José Emílio-Nelson
«Um fio de mar, parece-me, inclinava a terra / num poço de luz silenciosa.»
O Anjo Relicário (1999)
quarta-feira, fevereiro 05, 2025
o que aconteceu
«Oh! moços que vos dirigíeis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletós caros onde alvejava a gravata de soirée! Oh! tipóias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros quantas vezes me fizestes suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil réis por mês e o meu jeito encolhido de enguiço, me excluíam para sempre dessas alegrias sociais, vinha-me então ferir o peito -- como uma frecha que se crava num tronco, e fica muito tempo vibrando!» Eça de Queirós, O Mandarim (1880)
«À saída da aldeia, recuou estarrecido. Vira um fantasma branco a destacar das trevas, e agachado na raiz dum castanheiro. / -- Ó Zé da Mónica, és tu? -- perguntou o suspeito fantasma. / -- Sou eu, tia Brites -- respondeu o rapaz suspirando ofegante. / Credo! Que medo você me fez!» Camilo Castelo Branco, Maria Moisés (1876-77)
a Rússia e a Europa Ocidental
Leio no jornal mais um artigo medíocre e cheio de lugares-comuns dum especialista qualquer em relações internacionais e matérias conexas (parece que se reproduzem em viveiros, tantos são). Com argúcia de marrão (ou marrona), sustenta que a Europa nos últimos anos se pôs nas mãos de uma potência hostil. Entre a desonestidade e a debilidade intelectuais, convém dizer que a Rússia era tudo menos hostil à UE, até ao momento em que esta passou a portar-se como rafeiro amestrado dos Estados Unidos. Estes, obviamente (está-lhes na natureza pioneira do oeste selvagem), à cooperação preferiram o domínio -- e os resultados estão aí. Putin referiu-se com justificado desprezo aos líderes europeus como cães-de-guarda da América -- e já nem a palavra vassalos utiliza, socorrendo-se antes da imagem do animal doméstico que abana a cauda e se senta aos pés do dono.
Isto para dizer que a Europa deve tratar da sua defesa, etc. Esquecem-se, porém, de referir a necessidade que há em modificar a arquitectura institucional europeia com redefinição de poderes de acordo com legitimidades democráticas, o que, a 27, é virtualmente impossível, pois os países têm os seus interesses próprios, que muitas vezes não são coincidentes, quando não resultam conflituantes. Como sabem disso mesmo, o que dizem e escrevem estes especialistas de trazer por casa? Nada. Fazem de conta que se esquecem ou que o problema não existe.
Tudo isto, que nos levou ao ponto a que chegámos, está mais do que documentado e é sabido pelos verdadeiros historiadores e intelectuais impolutos; não vale a pena gastar latim com estas nulidades, que só serviram para ajudar a condicionar a opinião pública, que, no entanto, não é completamente cega. A situação teria tudo para piorar, continuasse a política dos neocons na Casa Branca, e iria correr mal (ou ainda pior) para o nosso lado. A crise política, económica e institucional na UE ainda agora está a começar -- e se o intento de Putin foi o de desmantelá-la, está a consegui-lo, paulatinamente. No entanto, o fantoche da Casa Branca foi substituído por Trump, que virou tudo de pernas para o ar -- para já, com uma diplomacia inenarrável e perigosamente divertida (nunca a política internacional, que me lembre esteve tão sísmica desde a implosão da União Soviética) -- o que sairá daqui, para além da divisão do planeta por áreas de influência -- ninguém sabe.
Voltando ao início: não sabemos que União Europeia vai sobrar à medida que os nacionalismos forem ganhando poder. Ficaria admirado se a UE tivesse em si as lideranças com determinação e coragem de arrepiar caminho. Para já, vamos continuar, em Bruxelas, Estrasburgo, em diversas capitais, como até aqui, e com a maioria dos paupérrimos colunistas e comentadores a insistir em banalidades e análise (de) sebenta.
terça-feira, fevereiro 04, 2025
1 verso de José Régio
«Soube, afinal, que de mim próprio é que sou rico.»
«Evasão», As Encruzilhadas de Deus (1936)
Maria Teresa Horta (1937-2025) uma aristocrata do espírito que pairou sobre as elites que não prestam e um povo embrutecido que ela gostaria de ver elevar-se
diários
{1/2/1969] .../... «Segundo a Regina, as virtudes que tenho têm mesmo raízes viciosas: tolerância por fraqueza, interesse pela arte, por vaidade e coisas assim. Não digo que aconteça isso com todas as ditas virtudes; mas com algumas deve ser verdade. Chega.» Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 1 (1969-1976) (1980)
[6/6/1948] .../... «É precisamente essa Democracia de que somos servidores e discípulos. / Daí a tristeza de ver Eduardo Benes desaparecer, para sempre, do Mundo que ele tanto amou, roubando-se ao universo sensível um dos espíritos luminosos que mais trabalhou e se sacrificou pelo progresso e desenvolvimento material e espiritual do homem e da sociedade.» Vasco da Gama Fernandes, Jornal (1955)
[14/8/1961] .../... «À procura da resposta, desci esta manhã a vertente triunfal dos Campos Elísios e, acotovelando-me entre os perfis erectos da mulher parisiense e o cosmopolitismo berrante dos visitantes estivais, cheguei ao fim da perspectiva, a belíssima Praça da Concórdia -- primitiva Place Neuve e depois Praça da Revolução, onde, no cesto da guilhotina, caíram as cabeças de Maria Antonieta e de Carlota Corday.» António de Cértima, Doce França (1963)
segunda-feira, fevereiro 03, 2025
3 versos de José Pascoal
«Passam aves rapaces sobre palavras / De todos os sentidos, aparecem / Linces nos longos dedos do desejo.»
«A margem de erro», Sob Este Título (2017)
domingo, fevereiro 02, 2025
o que está a acontecer
«A furgoneta deteve-se. Era nova, blindada, de um escuro brilhante, quase negro. A banda esquerda dir-se-ia feita de uma só placa, inteiramente lisa; na outra havia um ralo, pequeno e redondo, que filtrava o ar de todas as más tentações, como os crivos, no fundo dos lavatórios, libertam a água suja de todos os elementos obstrutores.» Ferreira de Castro, A Experiência (1954)
«Alvas de neve e cuidadosamente dobradas, vão-se empilhando na mesa as peças dum minúsculo enxoval. / Duas mãos ternas e jeitosas, vermelhas e antes do tempo deformadas, passeiam as roupinhas húmidas do borrifo, alisam-nas, empunham de novo o ferro que muitos anos de uso poliram: são elas, em toda a casa, o único sinal de vida.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)
«O rapaz magro esteve um momento raspando o chão com a bengala -- e foi andando devagar ao comprido da plataforma. Reparara agora no rapaz do campo, que supunha ia a Lisboa embarcar para o Brasil: e, sensibilizado pela face tão desolada da velha, ia pensando que o Emigrante seria um motivo tocante de poesia social: daria quadros de cor rica -- os vastos azuis do mar contemplados duma amurada de paquete, as noites saudosas, longe, numa fazenda do Brasil, quando a lua é muito clara e os engenhos estão calados; e aqui no casebre da aldeia, os pais chorando à lareira e esperando os correios...» Eça de Queirós, A Capital (1877/1925)
sábado, fevereiro 01, 2025
sexta-feira, janeiro 31, 2025
fortes e fracos na política internacional: a propósito da futura Gronelândia americana
Ou seja: queiram ou não os dinamarqueses, se os americanos consideraram que a Gronelândia é um território essencial, por razões assumidas (a questão estratégica) e oculta(da)s, as riquezas que encerra, a Dinamarca pode dizer-lhe adeus.
Há que dizer o seguinte: Mette Frederiksen, p-m dinamarquesa tem carradas de razão quando diz que a Gronelândia pertence aos gronelandeses, cuja população é, em mais de 90% esquimó. São estes que têm a legitimidade: mas território contíguo ao continente americano, não lhes resta outra alternativa que não a de entregarem-se ao vizinho colossal.
O mundo não é perfeito, e muito menos os seres humanos que o habitam. O Direito Internacional é civilização, tentativa dessa perfeição, uma camada fina que procura conter os expansionismos e oferecer garantias aos mais fracos -- porém, como a natureza humana não muda desde o o tempo das cavernas, o poder está sempre do lado dos mais fortes -- a não ser que nos chamemos Gandhi ou Mandela. Mas mesmo estes estavam longe de ser fracos; ao contrário, houve alturas em que apenas eles e poucos mais viam a força que detinham. Depois, foi só aproveitar a conjuntura (II Guerra Mundial; fim da Guerra Fria), no que foram eficazes, e felizes.
Nem a Índia nem a África do Sul eram, contudo, um território vasto e rico habitado por cinquenta mil esquimós. Quando o interesse (e a cobiça) desperta no estado vizinho, militarmente o mais poderosos do mundo, o destino está traçado.
4 versos de Fernando Namora
«Um dia a memória / Há-de falar-me desta chuva / e do que dentro da chuva foi / tédio distância pausa»
«Calendário», Marketing (1969)
quinta-feira, janeiro 30, 2025
fragmentos
«Pela escrita levamos / a vida que temos.» Liberto Cruz, «Livro de registos», Última Colheita (2022)
«Importunamos os outros se lhes pedimos a respeito do que escrevemos a sua opinião; ofendemo-los se não lha pedirmos.» José Bacelar, Revisão 2 -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana (1936)
«Aprender a aceitar os limites da linguagem, aprender a alargar os limites da ideia. Ser sempre capaz de mais. A Beleza como dever, a coragem como único caminho para o futuro. Suave medo escuro.» Rui Chafes, «O perfume das buganvílias», Entre o Céu e a Terra (2012)
2 versos de José Agostinho Baptista
«possivelmente terias seis anos / mas sempre me fascinaram o vermelho antigo dos lábios»
«Retrato» Deste Lado Onde (1976)
quarta-feira, janeiro 29, 2025
UE em hibernação
A Úrsula deve estar em hibernação numa qualquer caverna, talvez na Gronelândia-- tão vocal que ela era.
Scholz disse os mínimos; Macron mandou o ministro dizer por ele alguma coisinha mais.
Não é fácil passar de lacaio a algo que se dê ao respeito de um dia para o outro. Espera-se cambalhotas, pois mudanças de dirigentes só por incapacidade adveniente.
4 versos de António Salvado
«Invoco-te, esperança, / porque vejo que as árvores não floram / e um silêncio de outono a terra cobre / e as gentes transparecem em desânimo.»
Poesia de António Salvado (2015)
terça-feira, janeiro 28, 2025
o que está a acontecer
«Na mansarda, de outro modo silenciosa, paira uma inquietação. Só ali na cozinha brilha a luz amarela e tranquila, que o abajur de papelão concentra na mesa e na tábua de engomar. Ao lado, pelo respiradouro em ogiva do ferro, espreita um lume quase branco, de inferno em miniatura, que espalha o aroma e o calor reconfortantes do sobro queimado.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)
«-- É um horário absurdo o nosso. Quando estive emigrado em França e na Bélgica, é que dei conta disso. Nós desalinhamos a digestão da Europa, pois no momento em que os espanhóis começam a encher o estômago já os outros povos estão a esvaziar o deles...» Ferreira de Castro, A Curva da Estrada (1950)
«O chefe da estação, um gordo com os queixos amarrados num lenço de seda preta, o bonnet de galão sujo muito posto ao lado, apareceu então, à porta da sala das bagagens, de charuto nos dentes. O rapaz magro dirigiu-se timidamente para ele, disse: / -- Creio que o comboio vem atrasado... / O chefe afirmou silenciosamente com a cabeça; e depois duma fumaça: / -- Vem sempre atrasado aos sábados... É a demora em Espinho.» Eça de Queirós, A Capital (1877/1925)
a visita do eunuco
Rutte aos papéis. Vir cá ou não vir, diga o que disser, neste momento não vale um caracol. Nem ele sabe o que se vai passar, estando os Estados Unidos e a Rússia a negociar a sua guerra na Ucrânia. Aliás, todos sabem que nada sabem, a começar por este tipo, que conseguiu num ápice ser pior do que o secretário-geral anterior. Montenegro, que é cágado, respondeu-lhe com um 'tá bem abelha, à espera do que manda o dono disto tudo, que é Trump.
Os Açores, felizmente, ficam longe do Árctico, contudo convém portarmo-nos bem, não vá aparecer aí outra FLA, criada outra vez pelos americanos.
(Piadola: E a propósito do Árctico, irá a Dinamarca evocar o art,º 5.º do Tratado do Atlântico Norte?)
6 versos de Dick Hard
«Cravaram a glosa / em minha pena / sexo, álcool, poesia // Preferia uma rasca prosa / ou talvez uma faena / de cornos, farpas e razia»
«Sexo, álcool, poesia», De Boas Erecções Está o Inferno Cheio (2004)
segunda-feira, janeiro 27, 2025
Auschwitz e o 'antissionismo'
Não tenho ideia de maior ignomínia do que o inferno nazi. Auschwitz não foi apenas obra de uma mente doentia, mas de muitas mentes depravadas; e foi-o também de largos milhares de funcionários, civis e militares, que se "limitaram" a cumprir ordens. Não há desculpas para a separação de famílias, o assassínio programado de crianças (ou de quaisquer outras pessoas), o tratamento do ser humano como gado para abate. Há ordens que nunca se cumprem
Escrevem os jornais, preguiçosos, que o antissemitismo está a aumentar. Não sei. O antissionismo parece que sim, e ainda bem. Não terão os jornais mordido o isco do governo racista israelita, em que cada crítica que se lhe faz é desonestamente classificada como antissemita? (Se calhar sou demasiado objectivo, e não levo em conta que a maioria das pessoas mete tudo no mesmo saco.)
O que é trágico é os descendentes de muitos dos que estiveram internados nos campos de concentração estejam agora a dizimar um povo, não olhando a alvos -- ou seja, estes sionistas-racistas conspurcam a memória de todos os judeus que pereceram vítimas da besta nazi.
E não se venha com a conversa estafada, porém verdadeira, de que o Hamas usa o povo como escudo, pois a partir do momento em que para abater dez guerrilheiros se sabe que cem civis vão ser eliminados, os executantes e os mandantes dessa acção estão moralmente equiparados aos que cometeram o acto terrorista de 7 de Outubro de 2023 sobre civis indefesos. Merecem-se, nada os distingue.
4 versos de Cesário Verde
«Agonizava o Sol gostosa e lentamente, / Um sino que tangia, austero e com vagar, / Vestia de tristeza esta paixão veemente, / Esta doença, enfim, que a morte há-de curar.»
«Flores velhas», O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)
domingo, janeiro 26, 2025
correspondências
(António Cândido a João de Barros, 1907) .../... «O Conselho só conhece dos recursos da comissão quando eles têm por fundamento qualquer infracção por formalidades legais. / Doutros recursos só o Ministro conhece. / Como podia ter havido alguma irregularidade grave no julgamento da Comissão, escrevi a dois colegas meus. / Sou, com a maior consideração, e com verd.ª estima, // De V. Ex.ª / Adm.or e am.º certo e obgd.º // António Cândido // 20-8-907» Cartas Políticas a João de Barros ***
(Eugénio de Andrade a Jorge de Sena, 1955) .../... «Devo até dizer-lhes que o melhor de mim, passada a decepção que inicialmente tive, se alegrou com a notícia de o prémio ter sido atribuído a um livro do José Terra, com quem simpatizo imenso. Se tiver ocasião de falar com o Cochofel peço-lhe que lhe diga isto mesmo. / Pela vida fora terá o Jorge, com certeza, testemunho de que lhe digo rigorosamente a verdade» .../... Cartas de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena**
(José da Cunha Brochado a desconhecido, 1696) .../... «Viva V. Ex.ª para ilustre distinção do nosso reino, pois, se este invejou a outro a fortuna do nascimento de V. Ex.ª, outros lhe invejam agora a glória da sua adopção. Cante Lisboa os triunfos que por V. Ex.ª logra na corte de Viena, que, se outra pátria teve a fortuna de fazer seu a V. Ex.ª, ela granjeou o crédito de que V. Ex.ª a fizesse sua.» .../... Cartas*
*** Cartas Políticas a João de Barros (ed. Manuela de Azevedo, 1982)
** Cartas de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena (ed. António Oliveira, 2015)
* José da Cunha Brochado, Cartas (ed. António Álvaro Dória, 1944)
sábado, janeiro 25, 2025
sexta-feira, janeiro 24, 2025
o que está a acontecer
«O vento mia e rabeia no telhado, abala a casa, parece que leva tudo pelos ares, engolfa-se a espaços pela chaminé abaixo, espevita o lume onde a chaleira canta, vai fazer oscilar a chama do candeeiro de petróleo e arranca-lhe um vèuzinho de fumo negro. Algures, uma porta mal engonçada bate no trinco, enfurecida, como se quisesse libertar-se e partir com o vento à grande aventura.» José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso (1960)
«Ramona não se justificou, mas, pelos seus modos, Soriano compreendeu que ela resmungava por dentro. E parecia que o silêncio e a imobilidade de Paco apoiavam e aumentavam a razão de Mercedes. / -- Em Espanha janta-se sempre tarde de mais -- disse Soriano, em tom conciliador, assim que a criada saiu, depois de ter servido o café.» Ferreira de Castro, A Curva da Estrada (1950)
«Na estação havia apenas um passageiro, esperando o comboio: era um mocetão do campo, que não se movia, encostado à parede, com as mãos nos bolsos, os olhos inchados de ter chorado duramente cravados no chão e ao lado sentadas sobre uma arca de pinho nova, estavam duas mulheres, uma velha, e uma rapariga grossa e sardenta, ambas muito desconsoladas, tendo aos pés entre si, um saco de chita e um pequeno farnel de onde saía o gargalo negro duma garrafa.» Eça de Queirós, A Capital! (1877/1925)
quinta-feira, janeiro 23, 2025
vária
«O exército ocupa tudo, tomou conta de tudo, instalou-se por toda a parte. É ele quem domina, porque é ele, afinal, quem terá de arrancar das mãos dos alemães a terra sagrada que eles violaram e que há quase três anos geme sob a sua pata selvagem.» Adelino Mendes, «A cidade d'Albert» (A Capital, 29-III-1917), Repórteres e Reportagens de Primeira Página (s.d.)
«É o que eu digo do grosseiro pilriteiro campónio, o dos espinhos hirsutos, que, destinado a não ter filhos, provavelmente adoptou as deliciosas flores de que se veste. / Elas são bem singulares, na verdade!» Olhando-as, por vezes, sinto que uma reminiscência longínqua me turba, acordada não sei como, e vinda não sei donde, a qual se esgarça em brumas de legenda, reminiscência dalguém que amei num tempo, sob outra forma, noutras idades, países...» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)
«Proletários de todos os países, perdoai-nos!, lia-se na faixa conduzida pelos moscovitas na Praça Vermelha durante o desfile de um 7 de Novembro recente. / O que parecia definitivo se desintegra, deixa simplesmente de existir. A História acontece diante de nós, nos vídeos de televisão, transformações espantosas, mudanças inimagináveis, num ritmo tão rápido, tão absurdamente rápido que um dia vale anos, a semana tem a medida de um século.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1992)
ucraniana CCLXXVIII - ui, que medo...
A bardaimprensa ontem borbulhava de gozo com o que lhes mandaram escrever/dizer: Trump ameaça Putin com tarifas... O linguajar destes asnos... Que obviamente não é inocente nem, quem sabe, inconsequente, por parte de quem manda falazar estas talking heads...
(E já agora: afinal o Trump não era uma marioneta do Putin?...)
2 versos de Alberto de Lacerda
«Ignoram e sabem. São o vento / que orienta os caminhos verdadeiros»
«Os poetas e os amantes», 77 Poemas (1955)
quarta-feira, janeiro 22, 2025
4 versos de A. M. Pires Cabral
«Alguma coisa se há-de fazer quando / não há nada que fazer e o tempo se desdobra / até um ponto em que deixa de haver ontem / ou amanhã, e muito menos hoje.»
«Carreiro de formigas», Caderneta de Lembranças (2021)
terça-feira, janeiro 21, 2025
'Tempos Interessantes'
Tempos Interessantes (2002) é o título da autobiografia de Eric Hobsbawm, à qual me lancei depois de ter arrastado penosamente a leitura duma porcaria de um livro, que era forçoso terminar. Como escrevia aqui o Jorge Amado, a propósito da implosão da União Soviética, é a História a desenrolar-se diante dos nossos olhos, desde ontem, com a tomada de posse de Donald Trump, a História a acelerar-se debaixo dos nossos narizes. A América assume o seu imperialismo (monroviano, para começar) e vai procurar, tant bien que mal, fazer as suas ententes com a China e com a Rússia.
A UE, a continuar com uma nulidade política como a Ursula -- espelhos doutras nulidades várias --, não sei como sairá daqui cinco anos, quando a senhora se reformar -- se é que ela se aguenta até lá. As outras flores da cúpula europeia são pau para toda a colher, fazem o que lhes mandam; como de costume, não contam. Porém, não estou a ver a UE aguentar-se na nova ordem mundial que se desenha sem uma profunda reformulação política e institucional, que será sempre impossível, creio, com a quantidade de estados que a compõem. A única solução para que a UE não acabe ou retroceda ao estádio de uma espécie de antiga CEE, é a do confederalismo (falo de algo sério, não de simulacros para inglês ver); mas os tempos não estão para isso. Ou estarão?... De qualquer modo, tratar-se-á de uma impossibilidade no actual quadro institucional.
No meio disto tudo, a grotesca vassalagem da Dinamarca (país tão estimável) diante da América, vai ter como paga a Gronelândia, a que de uma maneira ou de outra vai ter que dizer farewell (em dinamarquês). Mais uma vez: seria para rir, não fora trágico para a Europa, como se estava a ver desde o início, quando a UE aceitou subordinar-se à estratégia americana de confrontação com a Rússia -- estúpida estratégia delineada por estúpidos, com derrota certa.
4 versos de Antero Abreu
«A terra húmida cheira a maternidade / E um leite morno / Penetra suavemente / Nas artérias do que foi e já se muda.»
«Térmite», Poesia Intermitente (1987)