quarta-feira, novembro 06, 2024

diários

.../... «Benes era, sem dúvida, um homem de excepcional envergadura intelectual e moral. / Quem teve a ventura de ler o seu livro "Democracia de hoje e de amanhã" verificou, sem esforço, que o antigo Presidente da República checoslovaca não conseguiu, sòmente, de maneira superior, interpretar os grandes problemas do nosso tempo. Não se limitou a isso. Foi mais longe.» .../... Vasco da Gama Fernandes, Jornal (1955)

tempo de romance

«Mas o marido gritara qualquer coisa: interrogativa, ela deu meia volta e viu John, que agitava um braço e abria e fechava a boca. Dizendo o quê? E Mary aproximou-se novamente do David, regressando o marido à posição anterior, a máquina preparada. "Talvez o primeiro retrato fique melhor do que o segundo", murmura Giovanni, como se fosse ele o interessado.» Augusto Abelaira, A Cidade das Flores (1959)

ucraniana CCLXVI - e agora?

A retumbante vitória de Trump não vai deixar apenas Zelensky certamente de malas aviadas e em maus lençóis; deixa-nos também, UE, com uma relação com a Rússia em cacos. Não vale a pena repisar a subserviência e a estupidez das lideranças europeias, que, com honrosas excepções, se esqueceram de que tinham não apenas um vizinho poderoso a Ocidente, mas também a Leste -- que, seguindo a "estratégia" burra dos neocons que mandam em Washington, menorizaram o colosso russo, pobres coitados. Menorizaram a Rússia, hostilizaram-na e lançaram-na nos braços da China. Mais uma vez na história da política externa norte-americana, conseguiram o oposto do que pretendiam.

E agora as von der Leyen, a fulana da Estónia que ficou com a alegada política externa europeia, o chanfrada do Parlamento Europeu e o Costa e as suas pontes vazias e para lado nenhum?... Vamos ter cinco anos com estes tipos ou tratarão rapidamente de virar o bico ao prego, ou, melhor, serão esvaziados do excesso de protagonismo que, principalmente a Ursula se autoatribuiu, no meio dos scholz e outros macrons?

Sim, Trump é imprevisível, mas não é estúpido, e tem instinto, como se vê. E J. D. Vance, que provavelmente lhe sucederá na presidência dos Estados Unidos, tem um pensamento bastante estruturado. É isolacionista e não vai em wokismos anti-Putin. Há uns meses ainda antes de Kamala, picava: "Queres que o teu filho morra no estrangeiro numa guerra estúpida? Vota em Biden." Eloquente, ainda mais se nos lembrarmos que Vance é um antigo combatente, no Afeganistão. 

Mais ou menos à margem: quem ainda vai atrás de televisões, centrais de propaganda como a cnn central, reproduzindo-a bovinamente? "Empate técnico", não era? Eu sempre tive um feeling de que Trump ganharia, mas nunca desta maneira. Aliás, creio que nem o próprio.

2 versos de José Agostinho Baptista

«OH crepúsculos lentos onde me suicidei no verão enquanto / no mundo aldeias e aldeias eram devoradas pelo fogo yankee...» 

Deste Lado Onde (1976)

(sempre a tempo) Camilo Mortágua (1934-2024)


 

quinta-feira, outubro 31, 2024

2 versos de José Alberto Oliveira

«Foi tudo precioso, o silêncio flutuou / e deteve-se perto de servir um mal-entendido,» 

O que Vai Acontecer?(1997) 

sábado, no Porto - AJHLP


 

quarta-feira, outubro 30, 2024

Byron Stripling, «Struttin' with Some Barbecue»

4 versos de Cesário Verde

«"Ela aí vem!" disse eu para os demais; / E pus-me a olhar, vexado e suspirando, / O teu corpo que pulsa, alegre e brando, / Na frescura dos linhos matinais.» 

«A débil», O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)

terça-feira, outubro 29, 2024

por aí


Edward Weston, Nova Iorque. Interior
(1941)

 

tempo de romance

«As poucas pessoas do costume cumpriram religiosamente aquela invocação sentida do caseiro. Resignadas, aceitavam agora a metódica explicação. / -- Esta Torre não se sabe bem de quantos séculos podemos datá-la, mas o certo é que Dom Raymundo da Barbela (crê-se que tenha sido o primeiro grande home da família da Torre) saiu destas bandas para ajudar com os seus homes as cargas de Dom Afonso Henriques, seu primo colateral.» Ruben A.,  A Torre da Barbela (1964)

«Resoluto, Manuel da Bouça levantou-se e, pisa aqui, arrasta ali o pé dolorido, atravessou o pinhal. / Quando, porém, o outeiro, em curva suave de ventre feminino, se cosia ao sinuoso caminho que dava acesso à aldeia, deteve-se, meditativo, a contemplar a sua casita, quase debruçada no Caima.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

«Encostou-se ao pedestal da estátua, tirou o lenço da cabeça e olhou para o marido. Este baixou-se um pouco, apontou demoradamente a máquina e disparou por fim. / Mary virara-se outra vez de costas e Giovanni quis adivinhar-lhe a direcção dos olhos, acompanhá-los depois no voo extasiado que terminava na torre do Palazzo Vecchio.» Augusto Abelaira, A Cidade das Flores (1959)

palavras odiosas

aprendizagens...

parabenizar... 

recepcionar...

ucraniana CCLXV - a fita sobre os coreanos e outras cenas cómicas

* O Pentágono, a Nato, a UE -- o pai-filho-espírito santo da Guerra da Ucrânia -- julgam assustar-nos (e assustam mesmo os mais débeis de entendimento) com a historieta dos dez mil soldados norte-coreanos exportados pelo rei da Coreia, como se aquilo interessasse para alguma coisa; é carne para canhão, como uns milhares de polacos (entre outros), alegada ou efectivamente mercenários, que estão na Ucrânia desde o princípio. Como é da História, várias vezes repetida (do Vietname a Cuba) os idiotas dos americanos lançam os adversários/inimigos nos braços dos outros, e depois queixam-se. 

* Quem acredita que o Joe Biden riscou alguma coisa na Guerra da Ucrânia, ponha o dedo no ar!   

* O Zelensky recusou-se receber Guterres. Mais uma medalha para Guterres.

* Entretanto, que raio veio cá fazer a Zelenska?...

* Na Geórgia, o "Ocidente" está também muito angustiado, tendo mesmo a francesa que ocupa a cadeira presidencial recusado aceitar a vitória do partido que está no poder. O Blinken pronunciou-se logo, o que é sempre sinal de envolvimento da CIA e doutras organizações beneméritas. Diz-se que é pró-russo. Só se fossem estúpidos não o seriam. E, que horror!, têm uma lei que obriga que as empresas que tenham acima de um determinado montante de capital estrangeiro o declarem, exactamente como sucede nos Estados Unidos e noutros países -- ultraje! Além disso, também têm para lá umas leis semelhantes às dos russos e dos húngaros (e dos polacos, mas esses já não interessa mencionar) que propõem proteger as criancinhas do manicómio woke e lgbt. Parece que lá é proibido ministrar "horas do conto" com leituras por drag queens, verdadeiro atentado à diversidade e à inclusão.

* Afinal, os russos são uns bárbaros e os norte-americanos la crème, não é verdade?

* Duas anedotas: nos tempos da Guerra Fria contava-se, com grande sucesso que na Rússia não havia homossexuais; então porquê? Resposta: "Eles não podem abrir a boca, quanto mais o cu!..." Em relação aos estadunidenses: "-- O que distingue um americano a mascar chiclete duma vaca?" "-- Hum?" "--O olhar inteligente da vaca."

* Despeço-me, com amizade e nenhuma paciência.

2 versos de Carlos Queirós

«E um silêncio caiu, suave como a neve, / Numa paisagem portuguesa.» 

«Passeio», Desaparecido (1935)

segunda-feira, outubro 28, 2024

quadrinhos


Moebius - Victor Hugo

 

2 versos de João Miguel Fernandes Jorge

«é da palavra errante que / devemos falar, da distância,» 

Sob Sobre a Voz (1971) / A Pequena Pátria (2002)

diários

«Agosto, 14  [1961] / Na esplanada do George V, às 6 da tarde. Esta sensação de estar "aqui", no centro vital (e mundano) da Grande Cidade, não encontra fundura ou medida para compará-la com qualquer outra que nos possa advir não importa em que solene paisagem ou ponto geográfico do mundo. Vivemos a vida em cachão, no cume das ideias e dos sentimentos.» .../... António de Cértima, Doce França (1963)

«JANEIRO O Bernardino Machado telegrafa-me de Madrid, onde se tem eternizado: "Fica aí? Cumprimentos". Este telegrama põe-me fora de mim. Assim este homem não tem outra coisa a dizer-me depois do que se passou! Se fico aqui? Onde quer ele que eu fique?» João Chagas, Diário - 1918 (póst., 1930) 

«Junho, 6 [1948] - Terminou há dias a longa e dolorosa agonia de Eduardo Benes. / A notícia, embora esperada, deixou-me triste. Senti, verdadeiramente, que se apagara uma luz forte nos horizontes daquela Democracia, que julgo ser a única solução para as prementes necessidades humanas, nesta encruzilhada demoníaca que é a vida dos nossos dias.» .../... Vasco da Gama Fernandes, Jornal (1955)

sábado, outubro 26, 2024

tempo de romance

«Sentado, as pernas cruzadas, uma das mãos no bolso e a outra a brincar com o lápis, Giovanni Fazio observava os passos, para diante e para trás, dum casal de ingleses. Ele -- chamar-te-ás John, decidiu -- recuar dois ou três metros, e ela -- Mary -- dirigia-se devagar para os degraus do palácio, sob o olhar indiferente do David.» Augusto Abelaira, A Cidade das Flores (1959)

«Dava a impressão de que tudo degenerava; mesmo os turistas já só faziam perguntas à toa, alimentando o orgulho com que o caseiro da Barbela desfiava aquela lengalenga sem reparar no nariz pacóvio dos viajantes. / -- Aqui estamos em frente da Torre. Meus senhores, peço que se descubram e ao mesmo tempo um minuto de silêncio pela alminha dos Senhores que já lá estão.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)

«Um ponto negro, pouco maior do que cabeça de alfinete, mas tão doloroso como raiz de dente. Com muito cuidado, devagar, para que a lâmina não resvalasse, extraiu o espinho. E uma gota de sangue veio borbulhar no orifício que ele deixara. / Lá em baixo, no campanário, o relógio deu três horas.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

Abbey Lincoln, «First Song»

sexta-feira, outubro 25, 2024

o que vale é que Putin está isoladíssimo; o que vale é que temos lideranças europeias esclarecidas, verdadeiros estadistas / comentadores e alegados "jornalistas", está a chegar a hora do vómito

 





Eu só gostaria de ver alguns comentadores com a cara pintada de preto. Quanto à maioria dos alegados jornalistas, com orelhas de burro e virados para um canto.

(Não sei se repararam na expressão fúnebre do gabinete ucraniano reunido com o secretário da Defesa americano.)

correspondências

(José da Cunha Brochado a desconhecido) «O respeito que sempre tive e devo ter à pessoa e ao carácter de V. Ex.ª, me levou sempre à veneração de suas altas prendas pelo seguro caminho de uma pura e fiel contemplação, entendendo que, como V. Ex.ª é todo espírito e todo inteligência, mais se pagaria das respeitosas meditações da minha fé, que das intrometidas assistências da minha dignidade.» .../... Cartas*


(1) José da Cunha Brochado, Cartas (ed. António Álvaro Dória, 1944)

quinta-feira, outubro 24, 2024

o que esperavam?

Depois de quatro anos do "genocida social" (Alberto João dixit), com Passos Coelho e o seu governo, seguiram-se oito anos da parlapatice de António Costa, e a governação para as contas públicas, o que implicou que o país esteja de finanças consolidadas mas preso por arames em tudo. Se isso é governar, vou ali e já venho. Falta de polícia de proximidade (como de professores, médicos, enfermeiros), fim dos mediadores sociais nos bairros, etc., etc. -- a juntar falta de civilidade geral, da polícia aos outros cidadãos, a potenciação da cultura de gangue e de gueto -- estavam à espera de quê, de milagres?

E é escusado virem falar de racismo, que isso é bom para a Mortágua fazer comícios no parlamento, em pendant com o Chega: isto é puro desgoverno, e que vem de há décadas, não se fica pelo genocida social e pelo parlapatão. 

CHARLOTTE MENSUEL


Reclama a herança de Charlie Mensuel, editado por Wolinski, que dizia da sua revista ser a única publicação de BD destinada àqueles que também liam outras coisas. Se Charlie apareceu sob a égide de Charlie Brown, esta evoca a praticamente desconhecida Charlotte Braun, que passou fugazmente pelos Peanuts e que Schulz eliminou (e de que maneira!...). Parece que os leitores não gostavam dela. É de aproveitar, pois mesmo na galáxia franco-belga, só a velha Spirou (desde 1938), para um público infanto-juvenil (ou todos os públicos) e a Fluide Glacial (1975), humorística adulta. Charlotte apresenta-se como a revista de todas as bandas-desenhadas, e não amostras de pré-publicações. 

 

quarta-feira, outubro 23, 2024

vária

«Transplantado, não produz flor. Tem uma folhagem pequena, curta, verde retinto, mui recortada nos bordos, e agora, na Primavera, esbracejando sobre as barreiras, tolda os pegos com caramanchéis duma vaporosidade incomparável. A sua flor é o que há de mais mimoso, mais pequenino, mais aéreo: uma joiazinha coquete, que antes diríeis insecto, pela vivacidade e esbelteza da figura.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893) 

"a situação exige perguntas"*

Não vou pôr-me aqui a atirar postas de pescada relativamente a uma situação tão complexa e com sérios capitais de queixa, quer de moradores, pela forma como são tratados pelas autoridades (ou parte delas), quer de polícias mal pagos e certamente desmotivados, de há longos anos. 

Tenho ouvido idiotas, "especialistas" em segurança, que, em vez de analisarem os factos e darem os contornos da situação -- o mínimo exigível --, se põem a fazer comícios em estúdio. Também tenho ouvido dizer que o Estado está a falhar, porque os cidadãos pagam os seus impostos para viverem descansados ao abrigo de motins -- certíssimo, a começar pelos cidadãos que vivem nesses bairros periféricos, tão cidadãos como os demais, e com direito a não serem desrespeitados apenas pelo facto de serem pobres ou imigrantes. Porque se há certamente vandalismo, e talvez coisas ainda piores (até que ponto a balbúrdia não serve as organizações criminosas?), também a revolta e o desespero são visíveis.

Há duas entidades que devem estar a amealhar com a situação: o Chega e o seu porquito, o Correio da Manha, cuja estação televisiva se baba com os faroestes que engendra.

* Alberto Pimenta

terça-feira, outubro 22, 2024

o que vai acontecer

«Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia Mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. Não que a missa fosse dele; este, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais» Histórias sem Data (1884)

séculos de civilização e civilidade construída não nos deixam dizer tudo o que pensamos

Nesta história da disciplina de Cidadania, não é verdadeiramente a educação sexual que incomoda as pessoas, nem propriamente a questão da homossexualidade, pois creio que hoje em dia apenas os sectores mais cavernícolas da sociedade sabem que a condição homossexual não resulta de qualquer escolha, antes se trata de uma característica congénita duma percentagem, apesar de tudo muito reduzida em termos relativos -- li algures, e há muito tempo, que abrangerá seis por cento da população. Enfim, algo natural, mas minoritário, e que deverá ser encarado com naturalidade.

O que verdadeiramente chateia a maioria das pessoas é ver os filhos nas mãos de um eventual maluco que lhes saia na rifa com rabichice tóxica. Isto é que realmente os assusta e/ou repugna. Como não podemos dizer tudo o que pensamos, sem a seguir nos matarmos, os que estão contra, refugiam-se em generalidades que lhes empresta o bom senso; e os defensores armam-se com sofismas, mentirolices -- ou fogem com o rabo à seringa.

Ontem, Catarina Martins num frente-a-frente com Cecília Meireles, passou num ápice do tema, para as grandes questões da escola pública, e quando foi interrompida já ia no magno problema da habitação...

É claro: como se pode defender o indefensável, negando a Biologia? Mesmo havendo sempre patologias, todas atendíveis, ninguém engole patranhas como o género se diferenciar do sexo devido a um "constructo" social.

Por isso, noutro debate, quando Pedro Frazão do Chega lhe escapou a boca para a verdade, referindo-se àquilo como uma "porcaria", Joana Mortágua, com a devida desonestidade intelectual (já tinha antes falado dos sinais de trânsito, da separação do lixo e da literacia financeira...), pergunta agressivamente se é "porcaria" a luta contra a violência doméstica ou o anti-racismo.  Pois, pois...

Muitos de nós, pessoas de todas as religiões ou sem religião, à esquerda e à direita, embora sabendo que a família pode ser infernal (como a escola e a sociedade em geral), sabe também que naquelas em que o amor existe, e são quase todas, não há melhor porto de abrigo para as complicações da vida. E que os que contestam a família nuclear, pais, filhos, avós, e de preferência também a mais alargada, só têm para oferecer fantasias e o salve-se-quem-puder, uma espécie de tudo ou nada, mas somente o vazio. É por isso que é na família que se educa, e não na escola, com as crianças à mercê sabe-se lá de que avestruz, e dos doutos programas congeminados pelo governo de turno, como sucedeu com esse retrocesso intelectual que dá pelo nome de João Costa.

quadrinhos

Moebius, Tenente Blueberry (1991)

 

tempo de romance

«Sempre que do portão se avizinhava mero turista ou descobridor de mistérios e o sino ficava longo tempo a retinir pela ribeira, ouviam-se pesados bate-lajedos de caseiro em movimento. / A história que o homem contava nada tinha de comum com a verdade. Era pura invenção de traz-no-bolso, lérias de almanaque recreativo para uso nos comboios do Minho.» Ruben A., A Torre da Barbela (1964)

«Então, ele colocou a perna esquerda sobre a direita, e pôs-se a examinar a planta do pé -- os olhos atentos e o indicador tacteando. Era ali... / Do bolso do colete sacou o canivete, abriu-o e começou a tirar fatias de pele dura e gretada. Lá estava o maldito.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

«Súbito, uma revoada de vozes escapou-se em surdina do âmago da igreja e derramou pelo claustros o clamor inquietante duma dolência arrastada. O murmúrio alteou-se, alastrou no silêncio, depois ficou suspenso no mesmo tom percuciente de lamentação e de queixume.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

segunda-feira, outubro 21, 2024

a ideologia é a de libertar a escola da ideologia lgbt

1. As crianças são educadas pelos pais e em família. ponto final, parágrafo.

2. O Estado tem uma missão supletiva e de defesa das crianças em risco. Ou deveria ter, se não estivesse pejado de burocratas com o intelecto em ponto-morto -- veja-se o grotesco caso de Inês Teotónio Pereira.

3. O PS, minado e vesgo (e nas tintas para o seu eleitorado) diz parvoíces, cede à técnica de amalgamar alhos com bugalhos, para além de querer marcar pontinhos políticos, encostando o PSD ao porquito do Chega. Não só se marimba em boa parte do seu eleitorado que vê com repulsa estes avanços do lóbi lgbt, como não quer saber o que defende por exemplo a Confederação das Associações de Pais. Há-de ter um lindo enterro.

4. O incomensurável ex-ministro João Costa, que se distinguiu como sec. de Estado por perseguir dois adolescentes, cujos pais determinaram que não queriam os filhos expostos a badalhoquices, tinha de reagir. É o campeão desta coisa, devidamente medalhado, apesar de ter sido um zero como ministro. É ver o estado em que deixou a escola pública.

5. Técnica do amálgama: fazer de conta que não é disto que estamos todos a falar, mas falar no ambiente, na recolha do lixo, noas regras do trânsito, no empreendedorismo... Ou, forçando a nota, falar do racismo, da homofobia, encostar a sensatez à extrema-direita.

6. No meu caso, gosto sempre de o dizer, é para o lado que durmo melhor. Não reconheço autoridade a ninguém para dizer se sou de esquerda ou de direita; muito menos a uns quantos que têm sonhos pedagógicos em organizar horas do conto infantis lidas por drag queens... (não estou a inventar).

Banda do Casaco, «Argila de luz»

domingo, outubro 20, 2024

tempo de novela

«Ele levantara os olhos devagar, num esforço, e fora então que as ancas da mulher, assim sentada, lhe pareceram mais amplas do que quando ele estava em pé. Os seus olhos fugiram imediatamente do diabo que se escondia ali, sob as saias, redondo que nem uma abóbora; mas logo se enredaram no sorriso que a mulher luzia -- um sorriso brando e húmido.» Ferreira de Castro, A Missão (1954)

serviço público - Viriato Soromenho Marques

 «A Paz não pode ser uma língua morta» -- a propósito do Prémio Nobel.

vou lá estar


 

correspondências

(Eugénio de Andrade a Jorge de Sena) «Porto, 30 de Maio de 1955 // Meu querido Jorge: se o Proust não tivesse dito ao Gide palavras semelhantes, eu dir-lhe-ia: valeu a pena ter perdido o prémio só pelo prazer de ter recebido a sua bela carta.» .../... Cartas de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena (3)

(Afonso de Barros a João de Barros) «Figueira, 26-6º-1926 // Meu querido João // Obrigado pela tua pronta resposta à minha precedente carta, e oxalá que o teu optimismo se realize, mas as prisões já começaram!... Cautela meu João! / E conta sempre comigo para tudo (que não poderá ser muito) que eu possa fazer. / Beija os meus queridos netos e querida Raquel, e a ti, beijo-te // e abraço-te de todo o meu coração / Afonso // Faz favor de dar à irrequieta Teresa o papelinho junto e ela que entregue ao [...?]» Cartas a João de Barros (2)

(Raul Brandão a Teixeira de Pascoais) «Meu Exm.º Amigo // Li ontem dum fôlego o Verbo Escuro. Eu gosto imenso de livros assim, mas o seu, tão profundo e tão belo, há-de ser compreendido por poucos leitores. É o livro dum grande poeta e dum filósofo. / Felicito-o e abraço-o. Creia-me sempre / De V. Ex.ª/ad.or e a.º agr.º / Raul Brandão // Alto / 27 Março / 1914» Correspondência (1)



(1) Raul Brandão - Teixeira de Pascoaes, Correspondência (ed. António Mateus Vilhena e Margarida Marques Mano, 1994.

(2) Cartas a João de Barros (ed. Manuela de Azevedo) s.d.

(3)  Cartas de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena (ed. António Oliveira, 2015)

sábado, outubro 19, 2024

vária

«A vida militar palpita por toda a parte. A estrada vai cheia de camions, que giram com a lentidão com que se arrastam monstros. De quando em quando, desfilam a nosso lado grandes forças de infantaria inglesa. Os acampamentos sucedem-se, ora de lona, quase da cor da terra, ora de madeira, pintados de várias cores, para não serem descobertos pelos aeroplanos..» Adelino Mendes, «A cidade d'Albert», A Capital, 29-III-1917.

«Quanto aos apontamentos não datados, traduzem a experiência adquirida no correr dos anos: sentimentos, emoções, conjeturas. Se alguém desejar as lembranças da infância do autor deve recorrer a um texto datado de 1980, publicado em livro sob o título de O Menino Grapiúna -- as ilustrações de Floriano Teixeira compensam o preço do volume.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1990)

«E por esses pomares, entre sebes de silvados e canaviais, que florações simpáticas, feitas com gotinhas de néctar e salpicos de sangue arterial! / Conhecem talvez o pilriteiro? É um arbusto dos valados, peculiar às regiões montanhosas do Alentejo, que se defende  com os espinhos de que se arma e não gosta de habitar jardins.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)

eu vou


 

sexta-feira, outubro 18, 2024

por aí


Sargão o Grande, rei da Acádia
(Sécs. XIV-XIII a.C.)

 

ouvir portugueses pró-ladrões a atacar Guterres dá-me voltas ao estômago

Não sou de patrioteirices, mas ouvir portugueses pró-ladrões a atacar Guterres, dá-me voltas ao estômago.

Não verto uma lágrima, era o que me faltava!, após ver as impressionantes imagens de Yahya Sinwar, antes de ser abatido como um bicho. Apesar da minha compreensão pela sua revolta (nasceu num campo de refugiados), abater civis pacíficos, como os massacres de que terá sido o cérebro, a 7 de Outubro do ano passado, é um crime indesculpável. Percebo a estratégia -- que funcionou, e continua --, mas quando os fins justificam os meios, o ser humano involui para o mais execrável dos animais.

Dito isto, não lamentarei se os actuais governantes israelitas -- ainda mais criminosos do que os assassinos do Hamas, pois assassinam para roubar a terra dos outros --, não me lamentarei se qualquer destes seres vier a ter destino idêntico.  Violência gera violência, mas é injusto que sejam só uns a comer pela medida grande.

3 versos de A. M. Pires Cabral

«Que voz interior as traz para o solo, / de asa retraída, renunciando ao voo, / negando-se, traindo a vocação original?» 

«Andorinhas no chão», Caderneta de Lembranças (2021)

quinta-feira, outubro 17, 2024

tempo de romance

«Dias depois do enterro, apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o "Joli". A criada entrara com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, que tinha vagas semelhanças com o pároco. Com o hábito das batinas, ávido de um dono, apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo.» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80)

«Luciano tinha-se deixado ficar à janela e contemplava, com alvoroço e flama estranha no olhar, a basílica que se erguia já doirada nos cumes pelo sol matutino. Vista do ramo transversal do claustro e no prolongamento do eixo da igreja, a ábside desenrolava em frente do espectador a sua elegante redondeza, e o frémito alado dos arcobotantes, com a ossatura frágil em pleno equilíbrio aéreo, dava-lhe tal ar de vida palpitante, que era de recear que a uma carícia mais quente do sol filtrando-se nos poros da pedra, a catedral abrisse as asas e erguesse o largo voo nessa lúcida manhã de tempo claro.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

«"Aqui se erguerá uma casa para pobres da vida pobre, quando Deus for servido!" -- dissera ele. E daí o ficar a água da nascente de muita virtude nas moléstias da tripa, e o lauto senhor Pero Gil, pelo ano de 1443, com autoridade da Sé Apostólica, lançar os fundamentos daquela casa, que tanto edificou a santa Ordem da Penitência em varões pios e de saber.» Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa (1918)

3 versos de Alberto de Lacerda

«Pobres mulheres que tanto / desejáveis ter um filho! / Eu sou, desconhecido, a vossa própria vida.» 

«O órfão», 77 Poemas (1955)

o que vai acontecer

«Manel Libório vivia em casa de bom conchego, rodeado de família. Melo Bichão dormia quase na rua e apenas tinha um filho amalucado. Manel Libório e o seu rebanho passavam vida farta. Melo Bichão, o filho e as suas sete ovelhas curtiam fome como danados. E ambos eram criaturas de Deus, naturais de Sequeiros.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1949)

«Que velho malandro não era aquele respeitável senhor que lhe dava sempre a roupa suja de bâton? E quem melhor do que ela sabia que o senhor Sousa, um dos banqueiros mais reputados do país, estava, apesar das festas e do luxo, completamente arruinado? Bastava olhar para as meias e camisas passajadas.» Miguel Barbosa, «A dança», Retalhos da Vida (1955)

«Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma cousa em tal matéria e naquele tempo. "Quem rege a missa é mestre Romão", -- equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; -- ou então: "O ator Martinho cantará uma de suas melhores árias". Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)

quarta-feira, outubro 16, 2024

Cat Stevens, «Tea for the Tillerman»

mas, graças a deus, existe a Rússia e existe Putin...

Não acompanho em tudo este (mais um) estimulante artigo de Carlos Matos Gomes, que equipara as lideranças israelitas a nazis, sem lhes retirar nenhujm qualificativo, de criminosos a oportunistas, do Bibi à corja religiosa a que se aliou, embora seja certo que onde o nazismo via raças superiores e inferiores e terraplanava o futuro espaço vital, o capitalismo selvático vê os cidadãos como ora mercadoria ora gado que consome, e o espaço vital seja os mercados, vastos bordéis, com os seus proxenetas e sicários pagos onde for preciso, dos me(r)dia à política. 

Sem poder discorrer muito a propósito, deixo o último parágrafo:

"Quem está já fora da mesa do jogo de xadrez é o esforçado Zelenski, porque a Ucrânia passou à condição de causa perdida e o Irão passou a ser o objetivo principal para chegar à China."

Felizmente, na questão da Ucrânia e noutras, há a Rússia do Putin para pôr estes patifes em sentido, embora a estupidez dos rafeiros que dirigem a UE não seja de menosprezar.

(Quando leio o nome "Zelensky" só me vem à cabeça um punhado de pivôs analfabetos e outro de académicos marrões, que sabem tudo e não percebem nada. Vontade de rir. Não incluo uns quantos, que sabem muito bem o que dizem e fazem. Esses são doutra casta.)

3 versos de António Salvado

«conjuntos e migalhas de fonemas / aguardam sempre o gesto do aceno / que os faça perdurar ao serem escritos» 

«Volta», Os Dias (2000) / Café dos Poetas (2015)

terça-feira, outubro 15, 2024

há monstros na floresta e mistérios debaixo da cama

Chega-me da Gradiva um presente de Natal antecipado, creio que o primeiro trabalho publicado por Bill Watterson (Washington DC, 1958) desde que suspendeu a publicação de Calvin & Hobbes, em 1995. Desta vez, apenas o texto é seu, e os desenhos do caricaturista  John Kascht, aqui co-autor e extraordinário ilustrador.

Trata-se de Os Mistérios, uma alegoria sobre o medo, que nos assola a todos, das eras mais antigas até ao presente -- quando, após a euforia das conquistas científicas, julgando-nos invencíveis, quase imortais, verificamos que afinal continuamos pasto para guerras e vírus, receosos do mistério  que é o outro, desconhecido e diferente, e contra quem novos muros se erguem; e (in)conscientes de uma nova devastação ambiental com marca demasiado humana. No mundo medieval, antes da modernidade, a floresta era o lugar interdito, onde habitavam criaturas misteriosas e assustadoras; tal como os mares eram povoados por seres fantásticos, monstros marinhos. No fundo, em face do desconhecido e do inalcançável, continuamos pré-modernos. Façamos o que fizermos, o mistério continuará. O Homem diante do horizonte infinito e eterno; 

1 verso de Antero Abreu

«Ao longe é um tropel de gazelas em fuga...» 

«Música», Poesia Intermitente (1987)

segunda-feira, outubro 14, 2024

Frank Sinatra, «Embraceable You»

livros que me apetecem



 

2 versos de Armando Taborda

«A alma Ibérica tem raízes de pedra / e sonhos de azinheira» 

Palavras, Músicas e Blasfémias que Envelheço na Cidade (1980)

domingo, outubro 13, 2024

por aí


Gordon Parks, Rapaz com Escaravelho (1962)

 

tempo de romance

«Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o cónego Campos contou-a à noite ao chá em casa do deputado Novais; foi celebrada com risos deleitados; todos exaltaram as virtudes do chantre, e afirmou-se com respeito -- que Sua Excelência tinha muita pilhéria!» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80)

«Já rente à água longa tira de praias se divisa e, mais avançados, dois cabos de nítido contorno: o da Roca e o Espichel. / Vencem-se mais rapidamente as distâncias, com a maior profusão de pontos de referência e a diminuição gradual do horizonte no alargamento do cenário em redor.« Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933)

«A monarquia visigótica procurou imitar o luxo do império que morrera e ela substituíra. Toletum quis ser a imagem de Roma ou de Constantinopla. Esta causa principal, ajudada por muitas outras, nascidas em grande parte da mesma origem, gerou dissolução política, por via da dissolução moral.» Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero (1844)

sábado, outubro 12, 2024

tempo de novela

«Acodem os jornaleiros secos e ressecos, as velhas das cabanas e outros -- lá dos altos, para ouvirem o Manco. À noite, nos sítios ermos, juntam-se em bando o Ai-Jesus, o Ladrão, o Seringa, o Abelheiro e alguns tipos escalavrados, e todos eles o querem ver e ouvir.» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931)

«Tinha nesse tempo vinte anos. Chegou à idade, foi às inspecções, ficou apurado, e lá vem ele para Lisboa fazer o serviço militar. / Era então um rapaz entroncado, maciço, que trocara há uns anos já o cajado de pastor pela rabiça de ganhão, no Farrobo, uma das herdades do senhor Gaudêncio. Mas, quer a apascentar ovelhas ou a lavrar terra, as léguas largas e quentes da charneca tinham-lhe entrado no sangue.» Miguel Torga, O Senhor Ventura (1943)

«No escuro e no silêncio, luziu a alguns passos o fogo de um cigarro. / -- O comboio já passou -- disse o camarada a despropósito. / Como em resposta, por três vezes o pequeno clarão do cigarro piscou no escuro. Aproximaram-se. O vulto do fumador precisou-se melhor, aproximando-se também. / -- É este o amigo -- disse o camarada. / Não se sabia se falava deste, do fumador ou dos dois.» Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites (1975)

sexta-feira, outubro 11, 2024

Thelonious Monk Trio, «Bemsha Swing»

o Prémio Nobel da Paz, é um recado para quem pôs a Europa em pé de guerra -- e quem foram eles, quem foram?... Não, pá, não foram os russos...

Histórias da carochinha para adormecer meninos, patranhas para tapados, em especial "especialistas" em Relações Internacionais e Direito Internacional, pobrezinhos que tão boa conta de si têm dado. Ainda ontem, em "debate" (boa piada) com o major-general Agostinho Costa.

(Por falar nisso: nunca mais vi o embaixador Seixas da Costa, desde que num dos momentos mais hilariantes destes debates, a propósito do míssil hipersónico disparado do Iémen, Agostinho Costa disse qualquer coisa como isto: "Se o senhor embaixador acha que foram os hutis* a disparar um míssil hipersónico, eu tenho uma ponte para lhe vender..." Não foi brilhante?) 

Ah, o Nobel da Paz parece ter sido muitíssimo bem atribuído.


O corrector corrige mal: houti, como ele quer é à francesa; portanto, hutis.

quinta-feira, outubro 10, 2024

serviço público - Carlos Matos Gomes, quase lapidar: «O direito à "defesa de Israel" é o mesmo de qualquer guarnição romana nos confins do império.»

Uma grande frase em mais um grande texto do coronel Carlos Matos Gomes -- que, recordo, além de oficial comando na Guerra Colonial e historiador do período, é também o romancista que assina as suas obras literárias sob o nome de Carlos Vale Ferraz.

Análise sedutora e fina, à qual, não sendo um especialista, me permito levantar duas objecções: se a minha leitura não foi demasiado apressada (detesto ler no computador), o autor parece não valorizar a permanência contínua de população judaica nos territórios israelo-palestinos desde a segunda destruição do templo de Salomão, em Jerusalém; bem como o impulso do movimento sionista estabelecido por Theodore Herzl, no final do século XIX, aliás inspirado pelo Caso Dreyfus 

[-- uma das histórias de perseguição mais abjectas da história do nosso querido continente, em que do lado do supliciado e inocente capitão estiveram Zola (heróico), Octave Mirbeau, Anatole France, entre tantos mais, incluindo o nosso Eça de Queirós, sempre do lado certo; e, do outro lado a bestiaria selvagem protofascista e colaboracionista francesa -- os próprios ou os seus descendentes, em linha directa até ao presente na recauchutada Frente Nacional e outros -- rever, a propósito, o filme do grande Polanski];

outra ausência com que me deparo, apesar da referência ao xiismo e as suas razões, é o papel do sempre pestífero sectarismo religioso, que não devemos varrer para debaixo do tapete. A religião, quando sai da esfera individual, do núcleo familiar e do confinamento dos templos -- e passa para a esfera sóciopolítica, será sempre inimigo a abater, católica, xiita ou o raio que as partam a todas.

Do papel dos aiatolas no derrube do primeiro-ministro patriota Mohamed Mossaddegh, aqueles transformados em joguetes dos americanos, entre os quais circulava um tal Khomeiny -- que bem os gratificou -- agradecimentos à moda de bin Laden.

Como disse esse quase santo que deu pelo nome de Piotr (Pedro) Kropótkin, a única igreja que ilumina é a igreja que arde... -- experiências ensaiadas na Guerra Civil de Espanha -- e com razão, como se viu pelo comportamento da instituição durante o franquismo; e até recentemente, no Chile -- mas aqui devido a essa tendência que por lá teve guarida, a do abuso de menores.

Posto isto, que o governo israelita não passa de uma guarda avançada do imperialismo americano, entra-nos pelos olhos todos os dias -- não muito diferente, de resto, do que protagoniza o judeu-ucraniano de língua russa Zelensky.

quadrinhos

Al Taliaferro e Bob Karp

 

quarta-feira, outubro 09, 2024

Byron Stripling, «On the Sunny Side of the Street»

3 versos de A. M. Pires Cabral

«O lento, exasperante rolar do tempo é / a única moeda que circula / nessas brumosas paragens.» 

«Em torno duma litografia em papel couché», Caderneta de Lembranças  (2021)

terça-feira, outubro 08, 2024

3 versos de José Pascoal

«O incêndio na floresta / Negra dos alfabetos / Devora os meus cadernos.» 

«O desejo do fogo», Sob Este Título  (2017)

tempo de romance

«Conservava-se ainda correcto aquele vivo exemplar do Hércules escultural. / Pedro era, de facto, o tipo da beleza masculina, como a compreendiam os antigos. O gosto moderno tem-se modificado, ao que parece, exigindo nos seus tipos de adopção o que quer que seja de franzino e delicado, que não foi por certo o característico dos mais perfeitos homens de outras eras.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867) 

«Felizes tempos esses em que pastoreava a cabra pelas barrocas, roubava maçãs na quinta do Almeida e seguia, na Primavera, o voo dos pássaros de ramo em ramo! / Fincou a mão enegrecida e calejada sobre a caruma e, retesando os músculos, ergueu-se. Logo, porém, uma dor vivíssima o obrigou a sentar-se de novo.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

«O melhor prólogo é o que contem menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesmo é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. / BRÁS CUBAS.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) 

segunda-feira, outubro 07, 2024

Abbey Lincoln, «The World Is Falling Down»

um ano depois do 7 de Outubro

A questão israelo-palestina foi um problema criado pela má consciência do Ocidente -- desde a primeira perseguição aos judeus, em Inglaterra, no Século XII, quando Ricardo Coração-de-Leão pretendeu sacar dinheiro fácil para financiar a sua Cruzada, até ao Holocausto da Alemanha de Hitler e seus nazis. Pelo meio histórias de horror, com a expulsão em Espanha e depois em Portugal (Século XV -- D. Manuel I a ceder contrariado aos fanáticos Reis Católicos, em troca da mão da filha), passando pela prática dos pogroms, na Rússia, na Ucrânia, na Polónia. A decência da tolerância, nesses séculos passados, só morava nas antigas Províncias Unidas (os Países Baixos) e entre os turcos do Império Otomano. ao compreensível sionismo do Século XIX, a Inglaterra, a maior potência da época, responde com a Declaração Balfour (1917). Como acontecera décadas antes na Conferência de Berlim (1884-85), as potências imperiais traçaram fronteiras sem que a existência dos indígenas lhe passasse pela cabeça. Era o apogeu do Euromundo e da sua "missão civilizadora", como paternalisticamente se designava o domínio colonial. 

Israel está hoje numa posição muito mais débil que há um ano, por causa de lideranças de oportunistas políticos -- Netanyahú, também cada vez mais extremista -- e dos fanáticos nacionalistas e religiosos que o sustentam. A legitimidade da sua existência enquanto estado independente está politicamente posta em causa, quando a um massacre nefando reage com a brutalidade bíblica que se sabe. Eu, que tanto admirei o estado de Israel, deixei de ter ânimo para defender o indefensável -- um estado liderado por bandidos, teocratas e dementes perigosos.

Mas os palestinos estão também mais enfraquecidos, sem liderança credível, entre outros fanáticos religiosos e os restos da OLP / Fatah, comprada pelo Ocidente. A Palestina precisava de um Gandhi ou de um Mandela. talvez precise mesmo de um Barghouti, há 22 anos nos cárceres israelitas. 

Fui ler a minha primeira reacção, a quente. Confirmo tudo, e ainda mais.


6 versos de Fernando Jorge Fabião

«Caminhas na terra liberta / pelo arado indecifrável do vento / reúnes resto de cereal, canas, pedaços de musgo // e as tuas mãos acendem / o verde mais verde / que habita nos campos.» 

Nascente da Sede (1999)

sexta-feira, outubro 04, 2024

quinta-feira, outubro 03, 2024

por aí


Félix Nadar, retrato de Piotr Kropótkin

 

o que vai acontecer

«Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção. / Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)

«Depois, morre a erva, já pouca, queimada pelo gelo, seca o leite das fêmeas, e cresce a fome dos pastores. / Manuel Libório era homem rico, senhor de terras e de muitas cabeças. Melo Bichão era pastor velho e pobre, a quem já ninguém confiava o gado.» Mário Braga, «Balada», Serranos (1949)

«Agarrou numa camisinha de seda, diáfana, com rendas. Quem diria que aquela senhora, sempre de preto, ar inconsolável de viúva, usava por dentro coisas tão supérfluas? / Começou a lavar. A Alice conhecia pelas manchas da roupa a vida do freguês e o seu carácter.» Miguel Barbosa, «A dança»Retalhos da Vida (1955)

quarta-feira, outubro 02, 2024

Daniel Hope, «Spiegel im Spiegel» (Arvo Pärt)

é para 'isto' que Israel tem direito a existir? tragicamente não é -- e há responsáveis

Como de costume, esta é uma guerra em que as vítimas e os inocentes são os povos: os palestinos, os israelitas, os libaneses. Não verto lágrimas nem por aiatolas xiitas nem por fanáticos religiosos, árabes ou judeus. Nada disto é preciso para reconhecer crimes quando ocorrem. 

Que o governo israelita é constituído por criminosos de diversa índole, é um facto. Que está à margem da lei ao ocupar território que não lhe pertence, é outro. 

Ao contrário do que se possa pensar, a política de Netanyahu é altamente lesiva para os interesses israelitas.

Alguém como eu, que sempre nutri uma forte simpatia por Israel, por varias razões, dou por mim a pensar: é para isto que Israel tem direito a existir? A resposta é simplicíssima: não tem -- ou deixou de ter. Quem não se dá ao respeito, não pode ser respeitado (banalidade acertadíssima); quem massacra civis põe-se do lado de fora da humanidade,  e isto serve para o Hamas, como para o governo israelita que -- tragicamente -- é composto por partidos que tiveram a maioria dos votos do eleitorado.

Como não se pode dizer que o eleitorado foi ao engano. Ao fim de mais de 30 anos de sabotagem dos Acordos de Oslo, com este Netanyahu à frente, o eleitorado israelita tornou-se co-responsável pela actuação reiterada do seu governo.

Resumindo: com esta actuação continuada, Israel perde a sua legitimidade primeira: a do direito à existência. Claro que isto não absolve os teocratas do Líbano e do Irão -- mesmo que estejam, supostamente, do lado do povo palestino -- ou seja, do lado certo, nesta altura do campeonato. Os teocratas do Irão são para ser derrubados e corridos a chicote lá para as alfurjas das mesquitas -- e, claro, não para serem substituídos por aventureiros chulos, como o último xá. O Irão tem na sua história, grandes e bons exemplos. 

Quanto à última diatribe deste governo israelita fora da lei contra Guterres, proibindo-o de entrar em Israel, tal é mais uma medalha para o secretário-geral da ONU. É que há acusações e animosidades que só nos dignificam. Ora, os indignos, pela sua própria natureza, são inaptos, jurídica e moralmente, de produzir conteúdo que seja entendido como tal. Ou seja: têm mais significado os latidos da minha cadela, do que as proclamações (ainda por cima com mentiras) do ministro dos estrangeiros israelita. Um bicho nunca pode ser desqualificado pelos seus actos; já um ser humano...  Quem, que não seja um tontinho, quer ver-se associado a uma quadrilha destas? 

4 versos de Sebastião da Gama

«Um vento manso traz o aroma das cidades. // E eis que a cidade toda é um presépio. / Ouve-se a tropeada dos camelos, / o riso dos pastores...»

«Crepuscular» Pelo Sonho É que Vamos (póst. 1953)

terça-feira, outubro 01, 2024

por aí


Lucien Clergue
Nu do Mar. Camargue (1958=

 

ai, F-16, F-16...

Dizem à opinião pública que é com os 34 F-16 que a Ucrânia receberá que agora é que vai ser. Quem não se lembra dos tanques Leopard a evoluírem nos ecrãs da cnn-internacional, esse órgão oficioso da democracy?...

E nós, os papalvos que supostamente andamos aqui para comer e calar (com o contributo inestimável da homuluncaria política e do jornalismo servil), engolimos estas patranhas, como, de resto, é de uso.

Será uma dúzia de pilotos ucranianos recém-formados no manejo do F-16 que irá defrontar a força aérea russa, com centenas de caças e outras aeronaves?

Aqui, uma tangente de um Sukhoi russo a um F-16 americano, que interceptava um Tupolev estratégico, também russo, perto do Alasca. Giro, não é?




2 versos de Alberto de Lacerda

«Tão poucas as lembranças que nos ficam / da beleza imortal que foi de outrora!»

«Véu», 77 Poemas (1955)

toda a escrita

«De logo quero avisar que não assumo qualquer responsabilidade pela precisão das datas, sempre fui ruim para as datas, elas me perseguem desde os tempos de colégio interno. Estudante de história, interessado nas figuras e nos feitos, esquecia as datas e eram as datas que os professores exigiam. A referência a ano e a local destina-se apenas a situar no tempo e no espaço o acontecido, a recordação.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1992)

«Os murmúrios da água, que pelos regatos vai, como um sangue robusto, espalhando juventudes na cultura, dizem às velhas árvores histórias duma suavíssima poesia; e pelos ramos tufados de verdura húmida, tenra, tamisada de cintilas solares, entra a repovoar-se a cidade dos ninhos, grande cidade moderna, com avenidas, concertos, five o'clock e toilettes de plumas, e exibições de caudas roçagantes. Ontem me dizia na Tapada um velho pintassilgo.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)

«Nessa manhã hostil toda a campesina está deserta. À beira da estrada, as duas filas de altas e esbeltas árvores, martirizadas pelo frio, parecem sentinelas que não se fatigam nunca, guardando e vigiando este pedaço de terra francesa... / O automóvel roda apressado, galgando covas, trepidando, queixando-se da aspereza do caminho.» Adelino Mendes, «A cidade d'Albert» (A Capital, 29-III-1917), Repórteres e Reportagens de Primeira Página (s.d.)

segunda-feira, setembro 30, 2024

Cat Stevens, «Father and Son»

tempo de romance

«O chantre estimava-o. Chamava-lhe "Frei Hércules". / -- "Hércules" pela força -- explicava sorrindo -- "Frei" pela gula. / No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava oferecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cónegos, baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra: / -- É a última pitada que lhe dou.» Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro (1875/80)

«Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas de opinião. / Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo.» Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)

«Arrastava-me até casa, subia às apalpadelas, despia-me rezando fragmentos de velhas orações; e adormecia dum sono que parecia não dever ter fim. Mas outras noites, cansava-me: Depois de ter começado as minhas deambulações onanísticas -- sentia que me seria impossível prosseguir. Resolvia, então, renunciar, e acabar a noite como qualquer outro.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934)

«Foram pouco a pouco erguendo-se para o céu, avolumando-se, os vultos das duas serras. Eram agora duas ilhas extensas, negras de cor, encosta a pique sobre o mar, o que aparentavam ser. / Mas no mar não há visões definitivas. Atrás de uma logo outra se forma, todas diferentes, variadas. Ilhas de ainda há pouco não sois mais agora do que os baluartes soberbos, altaneiros, da terra que vos destacou para indicar caminho ao mareante.» Joaquim Paço d'Arcos, Herói Derradeiro (1933)

«De quando em quando, o desânimo vencia-o -- o desânimo e as sezões. / Se a terra fosse sua, quantas vezes se deixaria ficar na poisada a refazer o corpo. Mas se não andasse, quem havia de cuidar daquilo?... / Nunca patrão algum lhe atirara remoque por desmazelo no trabalho. Ele pertencia à família dos Milhanos de Marinhais, sempre famosos no Ribatejo como arrozeiros sabidos e safos de mândria.» Alves Redol, Gaibéus (1939) 

5 versos de Carlos de Oliveira

«No alto choupo torcido / da invernia e da seca, / enchiam de raiva os olhos / -- que os olhos vivem de raiva / na solidão da charneca.» 

«Gândara», Turismo (1942)