sexta-feira, janeiro 17, 2025

cheiro a pólvora

Ninguém sabe o que vai fazer o Trump; mas se houver um mínimo de coerência (e Trump não é só Trump, e o apêndice Musk, mas, por enquanto na sombra, também J. D. Vance, com outra densidade), viverá tranquilamente com consagração de facto das zonas de influência, ou seja "A América para os americanos", o Próximo Oriente e a Europa vizinha para os russos (embora não acredite que lhes entregue os Bálticos e muito menos a Polónia, o que equivaleria a Nato estar morta, o que não é o caso, pelo menos ainda); o Pacífico para quem o apanhar; África de novo uma espécie de self-service, para quem primeiro erigir padrão (estou a exagerar, embora Áfricas existam muitas); e a velha Europa submissa, condenada nos próximos cinco anos a esta mediocridade vassala, perdeu uma oportunidade para contar alguma coisa, harmonizando as diferentes sensibilidades; mas isso seria pedir muito; e ainda estamos longe de uma integração coerente, se é que alguma vez lá chegaremos.

A Inglaterra e a Ucrânia assinaram ontem um acordo para cem anos; a Rússia e o Irão estabeleceram hoje uma parceria estratégica. É o regresso às ententes que tão bons resultados deram, e uma complicação dos diabos. De qualquer modo, a Rússia já ganhou a guerra que lhe foi movida pelos americanos e proxys ucranianos e da UE. Esta estrebucha, até ser tomada por dentro, tornando-se outra coisa -- o que não tem que ser necessariamente mau. Péssimo é aquilo em que se tornou nos últimos anos.

3 versos de Fernando Jorge Fabião

«Tenho cabelos brancos / cor de prata / cor de pranto» 

Nascente da Sede (2000)

quinta-feira, janeiro 16, 2025

o que está a acontecer

«Ao fundo erguia-se, em decoração latríaca, um altar improvisado com o frontal de magnífica escultura de madeira, e um tríptico por cima, em ar de retábulo. / Próximo da escrivaninha descansava, aberta num atril, a obra de Louis Gonse, L'art gothique, e nos extremos da sala duas estantes de coro, que tinham recebido outrora os antifonários e sentido roçar nas suas fibras e desenrolamento grave do cantochão, acolhiam agora magnificências livrescas, piedosamente resguardadas por litúrgicos panos.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

Abbey Lincoln, «When Love Was You and Me»

2 versos de José Agostinho Baptista

«para o fim de uma primavera de fome um velho cargueiro do Pacífico / trouxe-me, louco de dor, aos portos malditos da Península -- barcelona, cadiz, lisboa...»

«México», Deste Lado Onde (1976)

estampanços


Jorge Miguel, Leitora (2022)

 

quarta-feira, janeiro 15, 2025

o que vai acontecer

«O Alfredo não era coxo. Fingia, para mendigar. Era uma vida horrível. Chegava ao fim do dia com uma perna dormente de tanto a ter dobrada, para ninguém a ver, e Alice tinha de lhe fazer massagens com vinagre. / Às vezes, quando aparecia bêbado, tirava a perna e dava com ela nas costas da pobre Alice. Foi por essa razão que ela, um dia, o abandonou.» Miguel Barbosa, «A dança», Retalhos da Vida (1955) 

4 versos de Alberto de Lacerda

«No firme azul do desdobrado céu / decantarei a límpida magia / das sensações mais puras, melodia / da minha infância, onde era apenas Eu.» 

«Imagem», 77 Poemas (1955)

o que está a acontecer

«Em mísulas e sobre os móveis -- uma credência gótica com baldaquino, um contador do século XVI, alguns tamboretes estofados, cadeiras de coiro lavrado e a escrivaninha de pau-santo -- pousavam gessos clássicos, marfins velhos, objectos de culto, cálices, cibórios, sanefas, paramentos, pequenos modelos de relicários e domos, de púlpitos e sarcófagos e, aos montes, desbordando dos móveis e arrastando-se nos tapetes, dispersos por toda a parte, em álbuns, cartões, portafólios, uma aluvião de cópias e reproduções, em todos os processos e formatos, dos quadros célebres dos museus, das obras-primas da arte de todos os tempos.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

«Também ali perto, por uma tarde fosca de Outubro, chegou um gaio voejando, de chaparro em chaparro, a grasnar mal-humorado como é próprio da raça. No saiote desbotado, as duas pinceladas de azul, azul retinto, fulguravam para que se soubesse que um gaio também é gente dos ares.» Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães (1957)

«Não alastro as páginas com dedicatórias: a meu pai, à minha mãe, aos meus parentes e amigos, vivos e finados, para que se não diga de mim o que por aqui se propalou a respeito do Brites, que encheu quatorze folhas da sua tese sobre "cryptococus xantogenico", com oferecimentos, envois e uma reclame a uma certa modista da rua d'Ajuda. / Outros livros virão, meu tio amado. // Afectuoso // Anselmo». Coelho Neto, A Capital Federal (1893)

terça-feira, janeiro 14, 2025

Bruce Springsteen, «The Ties that Bind»

6 versos de Fernando Namora

«Estava eu nisto e chegou-me da Marconi / um telegrama em cifra / vindo de uma masmorra abjecta com pingos de água sobre o crânio / e nele o preso me dizia  que não morrera que não morreria / que não falara que não falaria / pois acreditava na poesia.» 

«Divagação», Marketing (1969)

alhures

«Gracejei com Hemingway acerca da sua próxima novela e rimo-nos muito e divertimo-nos imenso, e depois calçámos umas luvas de boxe e ele partiu-me o nariz. / Naquele inverno Alice Toklas, Picasso e eu alugámos uma vivenda no Sul de França. Eu trabalhava então naquilo que  sentia ser uma grande novela americana, mas os caracteres da máquina eram muito pequenos e não consegui terminá-la.» Woody Allen, «Memórias dos Anos Vinte», Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura (1966)

«"Um moinho de vento e de farinha, sito no vale do Ródano, em pleno coração da Provença, numa encosta coberta de pinheiros e azinheiras; moinho que se encontra abandonado há mais de vinte anos e em estado impróprio para moer, como o demonstram as videiras bravas, o musgo, o alecrim e outras ervas parasitas que trepam por ele até à ponta das suas aspas;» Alphonse Daudet, «Prólogo», Cartas do Meu Moinho (1869) - trad. Fernanda Pinto Rodrigues

«Desde há uns tempos a esta parte eu estava a perder peso; não ao estilo dos amantes do século passado, porque aí havia um certo sentido. Eu, muito simplesmente, emagrecia porque as nuvens que me alimentavam andavam cada dia mais escassas. Eram umas nuvens que o vento de levante enviava expressamente para mim.» Félix Cucurull, «Carta de despedida», Antologia do Conto Moderno - trad. Manuel de Seabra

segunda-feira, janeiro 13, 2025

4 versos de Luísa Dacosta

«Da infinita e impossível distância / trago-te até mim. / respiro contigo a noite / e passeio a tua sombra à beira do mar.» 

«Respiração», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)

domingo, janeiro 12, 2025

uma risota em Moscovo, à custa da Dinamarca

A desconhecida primeira-ministra da Dinamarca (desconhecida para mim, que nem faço ideia a que partido pertence) foi das mais activas vassalas dos americanos, em particular da catastrófica administração cessante. E é esta a paga?... A Gronelândia?... 

A insuportável Ursula salva pela pneumonia, o não menos insuportável Costa -- o tal que falava em derrotar a Rússia... -- calado que nem um mudo. Eu bem achava que ele nos iria envergonhar a todos...

Os palermas dos governantes suecos (200 anos de neutralidade deitados para o lixo) e finlandeses (que prosperaram grandemente com a neutralidade em face da União Soviética, foram meter-se na boca do lobo.

Agora aguentem-se.

Gunar Letzbow / Ars Antiqua Austria, «Karneval in Kremsier - Intrada» (Biber)

Ella Fitzgerald, «Cheek to Cheek»

sábado, janeiro 11, 2025

por aí


Igor Stravinski, por Gjon Mili (1957)

 

sexta-feira, janeiro 10, 2025

sobre o aborto, é simples: sou radical

1. Qualquer mulher adulta que se veja confrontada com a necessidade de fazer um aborto, lamenta-o profundamente, o mesmo se passando com qualquer homem decente. Tal não sucedendo significa psicopatia ou atraso mental severo. Nenhuma mulher mentalmente sã faz um aborto -- é um lugar-comum, de tão verdadeiro.

2. Vivemos num estado laico, felizmente. E como Deus não existe -- a não ser em cabeças frágeis ou simples --, o papel das igrejas deve ser o que está reservado aos seus aderentes, e ponto final. Cada maluco com a sua mania. A Igreja Católica só tem valor para mim, enquanto instituição histórica que está na génese do estado e da nação portugueses, quanto ao resto, interessa-me tanto ou menos que o Benfica ou o ACP. Ter devotos a legislar e a interferir é uma aberração que nos põe ao nível dos aiatolas ou daqueles primitivos que matam e morrem em nome de "Deus".

3. A continuação ou interrupção de uma gravidez por parte de uma mulher adulta é uma questão que só a essa deve respeitar, e na qual nenhum homem deveria ter possibilidade de decisão, técnica, legislativa e muito menos referendária. Claro que defendo a objecção de consciência, que, constituindo-se em problema, cabe ao Estado resolver, respeitando a liberdade de todas as partes. mas não suporto ouvir para aí os beatos a referirem-se aos direitos da mulher, do feto, etc. Um assunto de mulheres é só com as mulheres. Estando em causa compromissos de um casal, não sendo respeitados, o casal separa-se. Nenhuma coerção sobre qualquer mulher e o seu corpo é aceitável. É tão simples.

(a propósito disto)

2 versos de Carlos Queirós

«Ouvir a tua voz, outrora, era o bastante / Para sentir, enfim, justificada, a vida;» 

«Uma história vulgar», Desaparecido (1935)

o que está a acontecer

«Pesadas tapeçarias mascaravam vãos de portas e janelas e das paredes pendiam, entre reproduções de baixos-relevos, de vias sacras, de crucifixos e painéis de azulejos, encarquilhadas telas de fundos negros, onde se salientavam, em luz de catacumba, macerações lívidas de ascetas ou vinolências cruas de mitrados.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

«Ofereço, porém, as minhas primeiras letras ao padre Coriolano, porque, sem ele, meu tio amado, eu seria ainda hoje tão bronco como o Venâncio Dias, do rancho de Santa Engrácia, ou como o José Taborda, da cordoaria. / Outros livros virão, nítidos e pensados; e, dentre eles, escolherei o mais digno dos vossos merecimentos.» Coelho Neto, A Capital Federal (1893)

«Poisou em cima duma fraga, ligeiro como um tira-olhos. Mas novo pé-de-vento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a aleta, tomando-se de imprevisto fôlego, arrebatou-o para mais longe. Foi cair numa mancheia de terra, removida de fresco pelos roçadores do mato, e ali permaneceu à espera que pancada de água ou calcanhar de homem o mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo não o avistasse e engolisse.» Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães (1957)

quinta-feira, janeiro 09, 2025

Crosby, Stills, Nash & Young, «Helpless»

diários

.../... «Na realidade, Benes, reflecte nesse livro -- testemunho viril duma época de renúncia e eclipse -- toda a evolução da vida europeia e da inteligência universal: primeiramente, o advento do pensamento democrático nos alvores helénicos e enciclopedistas, todo ele imbuído do puritanismo liberal; a seguir, as lutas pela consolidação orgânica dos anseios populares após a guerra de 14-18 e, finalmente, o panorama exacto da evolução dos princípios a caminho duma Democracia económica e social que não desprezasse o respeito e a dignificação da pessoa humana.» .../... Vasco da Gama Fernandes, Jornal (1955)

.../... «Subimos depois a escala da evolução urbana, paralela à escala da evolução social, e queremos fixarmo-nos no valor simbólico que dá tipo e localização a esta grande cidade do planeta. E de novo a pergunta ocorre às nossas conjecturas: -- Onde é, onde está Paris?» .../... António de Cértima, Doce França (1963)

.../... «Mesmo que não falemos de nós (é-me difícil falar de mim). Aliás como os outros, desconheço-me. Talvez, também porque me evito. A verdade é que quando me encontro bem pela frente, reconheço-me intragável. Mas enfim as virtudes são também desgostantes. De resto, sou pouco abonado.» .../... Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 1 - (1969-1976) (1980)

2 versos de Cesário Verde

«Os ares, o caminho, a luz reagem; / Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;» 

O Livro de Cesário Verde (póst., 1887)

quarta-feira, janeiro 08, 2025

o triunfo do conselheiro Acácio

O Panteão Nacional é demasiado acanhado para Eça de Queirós. Sim, é verdade, estão alguns dos muito grandes, por exemplo génios como Aquilino Ribeiro e Amália Rodrigues, a quem os portugueses devem tanto como ao grande romancista, enorme cronista e incomparável estilista. No entanto, para além de faltarem por lá muitos, outros há que não se percebe por que lá repousam, para além das comezinhas circunstâncias políticas, que, a propósito, o mesmo Eça detestava -- para não falar das comezainas dos novos-ricos hi-tech.

Mas nem é uma questão de companhias: quando Camilo passar ao Panteão, o que a partir de agora se torna obrigatório, ou Júlio Dinis -- e assim lá estarão reunidos os três grandes romancistas portugueses do século XIX --, não serei eu quem irá contestar a decisão. Mas os autores de Amor de Perdição  e A Morgadinha dos Canaviais são outra loiça, e por sinal bem diferente entre si, felizmente -- e viva a diversidade...

O problema é que trasladar Eça de Queirós para o Panteão, além de ser ridículo, depois de há pouco mais de trinta anos os restos mortais estarem por um triz destinados à vala comum -- não fora o alerta da imprensa --, o seu espírito crítico e com pouca paciência para os arrivismos protagonizados pelo pessoal político, a politicalha monárquica ou a jacobinagem republicana, obrigaria a que se usasse de parcimónia no estadulho deputo-ministerial que se vai empoleirar no frágil esqueleto. Que parte da família em sequer o tenha percebido é quase grotesco, mas também não é de admirar -- refrão: "Como és belo, meu Portugal", canta, irónico e sarcástico, Luís Cília... 

Há pessoas, há espíritos, há intelectos, há sensibilidades incompatíveis com tanto conselheirismo. Antero de Quental é outro caso de incompatibilidade com o Panteão (ainda por cima com o Teófilo por perto, o parvónio, como lhe chamava...) Ponham lá o Cesário Verde e o António Nobre, ainda maiores poetas do que o divinalmente furibundo Antero, que jaz em paz em Ponta Delgada. 

Ou o José Afonso, outro para quem o edifício de Santa Engrácia seria como se jazesse no gavetão das luminárias nacionais. Como se poderia fazer do homem que revolucionou a nossa música, miscigenando-a, ele próprio um revolucionário limpo, num berloque da pátria? 

Antes a vala comum, para onde deixaram ir o Bocage -- sabendo-se nessa altura quem  e o que era Bocage, destino de que Eça se salvou, por um triz. ( refrão: "Como és belo, etc.)

Mas o povo fica feliz -- excepto os bairristas de Baião (ai o turismo...) -- e os acácios impantes, com o assuntozinho despachado, e ala que se faz tarde para a açorda. 

2 versos de Armando Taborda

«mas é de sons / que a escrita é feita.» 

Palavras, Músicas e Blasfémias que Envelheço na Cidade (1986)

terça-feira, janeiro 07, 2025

4 versos de Camões

«E enquanto eu estes canto, e a vós não posso, / Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, / Tomais as rédeas vós do Reino vosso: / Dareis matéria a nunca ouvido canto.» 

Os Lusíadas, I-15 (1572)

segunda-feira, janeiro 06, 2025

Nat Adderley, «The Folks Who Live on the Hill»

2 versos de José Régio

«A culpa é toda minha, / Se a vida não é bela!» 

«O fértil desespero», As Encruzilhadas de Deus (1936)

o que está a acontecer

«Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista! // Precipitado tão de alto do pinheiro solitário, balançou-se num instante e ensaiou um voo oblíquo. A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral.» Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães (1957)

«Entretanto, Luciano, arrancando-se à enlevada adoração, despegou-se da janela e foi sentar-se a uma antiga escrivaninha, remexendo febrilmente pastas repletas de papéis. / O recinto revelava, na verdade, extravagante interior de artista.» Manuel Ribeiro, A Catedral (1920)

«Meu tio, // Há neste livro páginas que vos pertencem, porque eu nunca as teria escrito se a minha Boa Sorte me não tivesse guiado para o retiro de ascetismo voluptuoso onde viveis, em beato sossego, praticando a moral divina de Epicuro e cuidando flores; outras há, e profusas, derivadas da sabedoria fecunda do dr. Gomes, de quem guardo saudades e conceitos; outras, finalmente, que seriam dedicadas à Jesuína se o escrúpulo não existisse na moral privada.» Coelho Neto, A Capital Federal (1893)

domingo, janeiro 05, 2025

estampanços


Francesco Francavilla

 

o que aconteceu

«Para tomar o comboio em Lamares, que ficava a quinze quilómetros de distância, era-lhe preciso atravessar o aberto cenário onde tinha mourejado sonhadoramente: searas espessas de trigo a ondular, sobreirais pardos de tristeza e pousios de esteva florida, babada de mel e de mormaço.» Miguel Torga, O Senhor Ventura (1943)

«--Vi-o! / Também a senhora Emília, cada vez mais apagada e humilde, o espera com o olhar que revela um peso insuportável. / Sentada no lar, não tira os olhos de Fortunato. Vai-lhe falar? Não se atreve. Não bolem, ele negro e curvado, ela em frente com a boca sumida e as cinzas frias ao meio dos dois a separá-los. Amar não é nada. Amar na dor e na desgraça é que é a lei suprema da vida.» Raul Brandão, O Pobre de Pedir (póst., 1931)

«Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso -- como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas, e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus.» Eça de Queirós, O Mandarim (1880)

"Entre Aspas, «Gin»

sábado, janeiro 04, 2025

o que está a acontecer

«1. O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Voltou a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se.» Aquilino Ribeiro, A Casa Grande de Romarigães (1957)

«Ao Revm. padre Ambrósio Coriolano d'Anunciação Lousada, vigário em Tamanduá, como humilde testemunho de gratidão, pelos severos conselhos com que fortaleceu o meu espírito e pelos cascudos com que me abriu a cabeça para que nela entrassem as regras de concordância e os versos de Virgílio, ofereço este livro. // Tamanduá, em Minas -- Janeiro, 93» Coelho Neto, A Capital Federal (1893)

«Dia de calor. Paz à nossa volta. Encontrámo-nos ali sem combinar, um daqueles hábitos que nunca se sabe bem porque começam, talvez por acaso ou pelas razões ocultas que umas vezes nos levam a buscar companhia e doutras nos empurram para a solidão.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003)

sexta-feira, janeiro 03, 2025

Norman Granz Jam Sessions, «Jam Blues»

fragmentos

«A tarefa do crítico é facilitada quando não se trata já duma primeira obra. Uma frase resolve tudo: "É pior que a anterior".» José Bacelar, Revisão 2 -- Anotações à Margem da Vida Quotidiana (1936)

«Ibsen diz-nos em Brandt ou Solness, não me recordo bem: "O que és, deves sê-lo em cheio". És um carpinteiro, um negociante, um pianista ou mesmo um trampolineiro? Sê-o em cheio, completamente. O que tem estragado a vida a muita gente, é o não terem sido nada, a valer. Sempre amadores em tudo, na mesquinha preocupação das almas fracas, de quererem equilibrar, contemporizar, contentar D. Quixote e Sancho Pança, nunca se atrevendo a ser um ou outro e a viver plenamente dentro do caminho traçado. Assim deslizam pela vida, ora recuando de Quichote para Sancho, ora avançando deste para aquele, sempre a procurarem-se sem nunca se encontrarem, sempre a procurarem ser e nunca conseguindo senão parecerEmílio Costa, «A esmo», Filosofia Caseira (1947)

«Luz e trevas são a mesma coisa, em ambas reside a mesma energia. Quem possui ouro no seu âmago tem de aprender a trabalhar com ele, para que as outras pessoas consigam ver que, por trás da aparente escuridão, existe um ser de luz, um ser luminoso. A luz vem das trevas, pois é aí que nasce a luz.» Rui Chafes, «O perfume das buganvílias»Entre o Céu e a Terra (2012)

4 versos de Carlos Queirós

«Um violino geme / Em um barco, singrando / No meu sonho, tão brando / Como a curva do leme.»

«Barcarola», Desaparecido (1935)

ucraniana CCLXXVII - o major-general chama-lhes ignorantes e, por outras palavras, estúpidos; eu acrescento: impostores, vigaristas, farsantes e um longo etc.

 Carlos Branco: "Actos de ignorância e intransigência cognitiva".

quinta-feira, janeiro 02, 2025

1 verso de José Régio

«Ter de mais que dizer... ah, que maçada e que agonia!»

«O papão», As Encruzilhadas de Deus (1936)

"Seja muito bem-vindo Presidente Xi!". disse então Marcelo

Estou perplexo com a mensagem de Ano Novo do Presidente da República, no que respeita à  política externa (deposi, confesso que perdia a atenção). Ver o chefe do estado apontar a China como ameaça, assim às claras, fazendo todos os fretes a países estrangeiros e dizendo nada ao interesse nacional, lembrou-me a calorosa recepção há uns anos a Xi Jinping. Interessava, porque estávamos de mão estendida? É para um tipo sentir-se envergonhado.

Para não falar da questão Russa, como se alguém tivesse perguntado alguma coisa ao PR -- e se alguém perguntou, não foram decerto os portugueses. Finalmente, no que respeita ao interesse nacional e às nossas boas relações com os Estados Unidos, que dada a vizinhança atlântica são do nosso interesse, o Presidente deve ter-se esquecido que a presidência mudou, embora não mude o desejo de vassalagem. Se Trump tirar o tapete a Zelensky, o que dirá Marcelo? Não será difícil tentar adivinhar.

Tudo isto é revelador de uma falta de dimensão e de sentido de estado que não nos deve admirar que outros políticos, entretanto guindados a funções internacionais, não passem de anões funcionais. 

quarta-feira, janeiro 01, 2025

King Oliver's Creole Jazz Band, feat. Louis Armstrong, «Canal Street Blues»

2 versos de José Pascoal

«Os meus desígnios são insondáveis. / É a minha única parecença com Deus.» 

«Imagem e semelhança», Sob Este Título (2017)

começar o ano a ver comer gelados com a testa - a propósito da Geórgia

Chegado a casa, ligo para RTP2, está a falar João Oliveira, no programa "Eurodeputados". João Oliveira, recorde-se, em quem gratamente votei nas últimas Europeias, não sendo do PCP, longe disso -- sou sempre libérrimo para votar como e em quem me apetece. 

E que refrescante foi ouvi-lo, não só em resposta às perguntas inquinadas da simpática Fernanda Gabriel, mas nos comentários aos jovens colegas do PS e do PSD, estes munidos de toda a prosápia bebida nas escolas das juventudes partidárias, mas ignorantinhos (não têm idade para ignorantões), a debitar a sebenta com mais ou menos fluência, e a dizer asneiras, quer sobre a pretérita "invasão" russa -- que mais não foi que uma resposta à de facto invasão georgiana, decorria a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, lembro-me bem --, quer agora sobre as eleições no país, reconhecidas como válidas pela OSCE. 

Bom, nada disto é novidade, nem a inexistência neste debate de Catarina Martins, que quer ser muito anti-nato, mas quando é para retirar todas as consequências, dá uma no cravo e outra na ferradura, outra coisa não seria de esperar. Nisto como em muitas coisas o Bloco não serve para nada -- ou então serve para tirar fotografias de grupo com o Chega à ilharga no meio do Santos Silva, que deus tem.

Uma das coisas de que gosto em João Oliveira é que, sem perder nunca a compostura, chama os bois pelos nomes todos, cheio de determinação, o que obriga os contendores a enterrarem-se mais na asneira ou então a proferirem frases vazias de tão lindas, como as de Catarina Martins. 

Meu rico voto, tão bem empregue -- até limpa a alma, caralho!...

Vale a pena ver aqui.

terça-feira, dezembro 31, 2024

o que está a acontecer

«Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não as observava como que perscrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele.» Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego por Bernardo Soares (póst., 1982) 

«Sob estas capas de vulgaridade há talvez sonho e dor que a ninharia e o hábito não deixam vir à superfície. Afigura-se-me que estes seres estão encerrados num invólucro de pedra: talvez queiram falar, talvez não possam falar.» Raul Brandão, Húmus (2017)

«Muito seu continua o jeito de como ao falar cerra os olhos em duas fendas chinesas, antes risonhas, agora insondáveis. / Sentado na relva à sombra dos castanheiros, o cajado entre as pernas, os cães dum lado, eu do outro, o rebanho espalhado pela ladeira, o murmúrio da água, o tilintar dos chocalhos.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003)

ucraniana CCLXXVI - zero rotundo

Para que serviram os comentários dos generais-falcões e a pobreza vesga, ignorante, carreirista e burra de boa parte do comentariado académico? Para nos enganar. Uns zeros crassos, grossos, rotundos. Zero. 0

música para salvar o ano #6 - «Went to a Party» (Nick Lowe, Los Straitjackets)

4 versos de Sebastião da Gama

«Não conto. Não digo. / Comigo te guardo. / Assim tu, ó estrela, / me guardes contigo...» 

«Madrigal a uma estrela», Pelo Sonho É que Vamos (póst., 1953)

também no cinema, o Vaticano assaltado pelo manicómio





Gosto destes enredos, em que a luta pelo poder e a ambição mais maligna e o mais manso desprendimento coabitam na Igreja do Apóstolo Pedro. Tenho ideia de ter gostado mais do «Habemus Papam», do Nanni Moretti, com o Michel Piccoli, num registo bonacheirão.
«O Conclave», do suíço Edward Berger, de ligeiro nada tem, e tem também um desempenho emocionante de Ralph Fiennes -- ele é o filme -- surpreendentemente estragado pelo assalto do manicómio woke. Quando estava à espera duma saída encostada à Teologia da Libertação (talvez muito previsível), eis que estala o 'wokismo' mais descarado, passe o pleonasmo  Mas o papel do Fiennes vale todos os sacrifícios.

P.S. - A propósito: neste post, atarantado com a pulhice dos americanos & satélites, esqueci-me de como a decência bateu no fundo, com as olimpíadas também transformadas em manicómio woke. O caso nefando da boxeuse italiana esmurrada por um tipo que o manicómio decretou ser mulher. Aqui

segunda-feira, dezembro 30, 2024

vária

«As grandes tabuletas por toda a parte, com indicações breves e terminantes. Os pesados "lorries" só podem rodar pelas estradas principais. As outras estão quase todas fechadas a veículos que não pertençam à Cruz Vermelha. Até uma certa altura do caminho, há ainda um ou outro civil que calca a lama da estrada e arrasta, por esta região devastada, a sua desgraçada amargura. Depois não se vêem senão militares.» Adelino Mendes, «A cidade d'Albert» (A Capital, 29-III-1917), Repórteres e Reportagens de Primeira Página (s.d.)

«--Eu bem na sinto!, eu bem na sinto! É impossível que certas flores sejam filhas das grosseiras plantas de que brotam. Há no colorido delas, na delicadeza, no espírito e no perfume umas elegâncias de tipo, umas aristocracias de carácter, feições por tal forma pur-sang, que a idealização de artista de logo nega graus de parentesco entre flor e planta, mal-grado a evidência das ligações estruturais.» Fialho de Almeida, «Pelos campos», O País das Uvas (1893)

«Fragmentos do Muro de Berlim são vendidos como brinde por espertos negociantes norte-americanos, / Teorias, ideologias -- teorias ditas científicas, ideologias consideradas de pureza incontestável -- que seduziram intelectuais, mobilizaram multidões, massas populares, comandaram lutas, revoltas, guerras em nome da felicidade do homem, dividiram o mundo em dois, um bom, um ruim, se revelam falsas, pérfidas, limitadoras: conduziram à opressão e não à liberdade e à fartura.» Jorge Amado, Navegação de Cabotagem (1992)

música para salvar o ano #5 - «Quando Eu Era Pequenina» (Filipa Vieira)

3 versos de António Salvado

«As palavras humildes que registo / são feitas da manhã interior / à dimensão que satisfaz a vida.» 

«E nelas nada fere...», Recapitulação (2005) / Café dos Poetas (2015)

por aí


Woody Allen por Arnold Newman (1996)

 

domingo, dezembro 29, 2024

música para salva o ano #4 «Praise» (Anthony Branker)

o que melhor e pior me impressionou em 2024: Putin e os asnos do Ocidente, e deste a miséria moral

Apesar de faltarem quase três dias para o fim do ano, e sabermos que a perfídia das indústrias da guerra é ilimitada, e aque té à tomada de posse de Trump seja de esperar qualquer tipo de golpada, arrisco já:

1. O que mais favoravelmente me impressionou. 

1.1.Putin perante os asnos do Ocidente. Sem dúvida, a capacidade de resistência da Rússia pela forma como conseguiu contornar uma preparadíssima ofensiva bélica, não tanto pelas armas, mas nas várias tentativas de estrangulamento económico e político, todas tendo falhado, o que é hilariante no meio da tragédia. Militarmente, Putin optou primeiro pela pressão, no que falhou; depois pela contenção, com custos elevados em vidas e equipamento, porém não varrendo a Ucrânia do mapa, ao contrário do que os israelitas fazem na faixa de Gaza. Depois, a resistência à propaganda manhosa estipendiada pelo complexo militar-indusrial americano: hoje, até um lémure de Madagáscar percebe que a guerra da Ucrânia é um enfrentamento entre russos e americanos e que a Ucrânia é um território em que se combate, com líderes ucranianos que sacrificaram parte do seu (?) povo a interesses estrangeiros, v.g., os dos Estados Unidos e suas corporações.

1.2. A fibra (e os tomates) dos comentadores decentes (o que significa que há comentadores indecentes).  Voltemos a referir-lhes os nomes, uma e outra vez: Agostinho Costa e Carlos Branco em primeiro lugar (dos que têm assento nas televisões). Informados, objectivos, não se deixando intimidar por jornalistas ignorantes e atrevidos nem pelo lixo académico que por aqueles estúdios é despejado. Acrescento ainda os nomes de Mendes Dias e Tiago André Lopes, este da Universidade, uma das poucas excepções para a miséria que a academia enviou para as televisões. Nos jornais, impecável, Viriato Soromenho Marques (ler aqui  a crónica deste sábado no DN); e nas plataformas digitais (pois para as televisões não é convidado, evidentemente) Carlos Vale Ferraz (ler aqui) . Outros existem, felizmente, mas ou são silenciados (onde está o general Pezarat Correia, ainda muito lúcido, nos seus mais de noventa anos?) ou escrevem em media de menor difusão.

2. O lixo

2.1. A miséria moral do Ocidente diante da matança indiscriminada de palestinos em Gaza.

2.2 A cobardia depravada, ignorância, inconsciência, incompetência e oportunismo até à traição da clique que lidera os países europeus mais poderosos (Inglaterra, França. Alemanha e Itália), o seu servilismo canino e as entorses à democracia. Sim, com esta guerra as liberdades regrediram na Rússia -- ela que nunca fora tão livre e próspera como o foi com Putin -- mas regrediram também, e de forma nunca vista desde a derrota do nazismo e do fascismo na Europa Ocidental: manipulação às escâncaras, censura (aos media  russos e às vozes discordantes ou independentes), intervenção nas eleições de países europeus, dentro e fora da UE (Roménia, Geórgia).

O que sairá disto tudo? Não sei. Alemanha e França politicamente nas lonas. A seguir, a própria UE? Ou até à lavagem dos cestos, no final de Janeiro, será vindima? Com criaturas destas é sempre de esperar o pior.

Em tempo: esqueci-me de referir Miguel Sousa Tavares, que, desde o início, honra a profissão do jornalista que foi e tem sido sempre uma das vozes lúcidas do comentário. (visto aqui).

sábado, dezembro 28, 2024

o que está a acontecer

«Vi não sei onde, num jardim abandonado -- Inverno e folhas secas -- entre buxos do tamanho de árvores, estátuas de granito a que o tempo corroera as feições. Puíra-as e a expressão não era grotesca mas dolorosa. Sentia-se um esforço enorme para se arrancarem à pedra. Na realidade isto é como Pompeia um vasto sepulcro; aqui se enterraram todos os nossos sonhos...» Raul Brandão, Húmus (1917)

«Com meias frases, outras que ficam pendentes -- Há dias que pouco falta para que faça uma asneira -- eu à espera de detalhes que não vêm, ele assombrado pelas recordações, entre nós um silêncio incómodo. / Malgrado os anos continua ágil, desempenado, mas o rosto tornou-se-lhe papudo, roxo do vinho.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (2003)

«Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava -- parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito.» Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares (póst., 1982) 

música para salvar o ano #3 - «feelslikeimfallinginlove» (Coldplay)

sexta-feira, dezembro 27, 2024

alhures

«Vim pela primeira vez a Chicago nos anos 20 e foi para ver um combate de boxe. Ernest Hemingway veio comigo e ambos ficámos alojados no campo de treino de Jack Dempsey. Hemingway tinha acabado de completar duas curtas histórias sobre boxeurs e, apesar de tanto Gertrude Stein como eu pensarmos que eram decentes, concordámos que ainda necessitavam de ser bastante trabalhadas.» Woody Allen, «Memórias dos anos vinte», Getting Even / Para Acabar de Vez com a Cultura (1966) - trad. Jorge Leitão Ramos

«Poderia ter feito de ti um fantasma, mas eu amava a tua realidade. Qualquer pessoa dirá que isto é o mais lógico: também tu o poderias ter pensado, mas para que adoptasses esta atitude era necessário que eu fosse um pouco mais corpóreo.» Félix Cucurull, «Carta de despedida» Antologia do Conto Moderno (1959) - trad. Manuel de Seabra

«"Perante mim, Honorat Grapazi, notário com cartório em Pampérigouste, / Compareceu: / O Sr. Gaspard Mitiflo, casado com Vivette Cornille, pequeno proprietário no lugar de Cigalières, onde reside: / O qual, pela presente escritura, vendeu e transmitiu, com todas as garantias e de facto livre de todos os encargos, privilégios e hipotecas / Ao Sr. Alphonse Daudet, poeta, residente em Paris, aqui presente e que declarou aceitar.» Alphonse Daudet, «Prólogo», Cartas do Meu Moinho (1869) - trad. Fernanda Pinto Rodrigues

música para salvar o ano #2 - «Always a Stranger» (Tindersticks)

serviço público - Viriato Soromenho Marques

 «No labirinto do "governo invisível"»

quinta-feira, dezembro 26, 2024

música para salvar o ano #1: «Alone» (The Cure)

uma oitava de Camões

«Nem deixarão meus versos esquecidos / Aqueles que nos Reinos lá da Aurora / Se fizeram por armas tão subidos, / Vossa bandeira sempre vencedora; / Um Pacheco fortíssimo e os temidos / Almeidas, por quem sempre o Tejo chora, / Albuquerque terríbil, Castro forte, / E outros em quem poder não teve a morte.» 

Os Lusíadas I-14 (1572)

o que está a acontecer

«-- Compreende? / Digo que sim, que compreendo, intrigado pela confidência e aquele olhar que mostra o desespero de quem anseia por absolvição. Mas custa a acompanhá-lo no emaranhado de casos e pensamentos, de mágoas, o comezinho misturado ao trágico, a indiferença de tornar simultâneos o passado e o presente.» J. Rentes de Carvalho, A Amante Holandesa (1903)

«A torre -- a porta da Sé com os santos nos seus nichos --, a praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. Nos corredores as aranhas tecem imutáveis teias de silêncio e tédio e uma cinza invisível, manias, regras, hábitos, vai lentamente soterrando tudo.» Raul Brandão, Húmus (1917)

«Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida. / O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-me, em um período da minha vida, a ser frequente em uma sobreloja dessas. Sucedia que quando calhava jantar pelas sete horas quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspecto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-me.» Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares (póst., 1982)

quarta-feira, dezembro 25, 2024

serviço público - Carlos Matos Gomes

 «Que este ano haja coragem e não haja Natal!»

7 versos de Antero Abreu

«Canta e dança o povo / Erguem-se bem alto os recém-nascidos / Para que vejam o sol do país e suas águas / Brincam as crianças / Fazem amor os namorados / E corta-se em comum o pão sagrado / Porque são de todos a terra e o futuro.» 

«Música para cordas, percussão e celesta», Poesia Intermitente (1987)

terça-feira, dezembro 24, 2024

Feliz Natal


Marge

 

La Capella Sanctæ Crucis / Tiago Simas Freire, «Ai Dina, Dina, Dana» (anónimo português, c. 1646)

2 versos de Luísa Dacosta

 «a tua ausência / sinto-a como um corpo.» 

«Penélope», A Maresia e o Sargaço dos Dias (2011)

o que vai acontecer

«-- Mestre Romão lá vem, pai José, disse a vizinha. / -- Eh! eh! adeus, sinhá, até logo. / Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas.» Machado de Assis, «Cantiga de esponsais», Histórias sem Data (1884)

«A casa grande de Manel Libório quase se encostava à toca negra de Melo Bichão. Saía-se à porta, dobrava-se a esquina, e ficava-se de caras para o aprisco. Um aprisco que nem palácio, amplo e todo coberto, onde as ovelhas felizes do vizinho rico baliam alegres da fartura, que Manel Libório tinha pasto seu e muitos braços para lho juntarem em casa.» Mário Braga, «A balada», Serranos (1949)

«Chamava-se Alfredo e usava uma perna de pau. A Alice tivera curiosidade em ver como um homem daqueles amava. Porém até nisso a sua vida foi um erro. Ele, à noite, tirava a perna de pau e guardava-a debaixo da cama.» Miguel Barbosa, «A dança», Retalhos da Vida (1955)

segunda-feira, dezembro 23, 2024

domingo, dezembro 22, 2024

elogio dos imigrantes bengalis, nepaleses e mais o que houver

Um estudo recente sobre a imigração dava conta que este povo de analfabetos funcionais que dá pelo nome de Portugueses não gostava lá muito do grupo de asiáticos que nos varre as ruas, serve às mesas, dispensa bens e entrega refeições porta a porta. Parece que são muito escuros (como se nós fôssemos especialmente loiros...)... Como disse, com acerto, Rogério Alves uma noite destas, o que eles queriam era que os imigrantes se volatilizassem durante a noite e, ao raiar da aurora, estivessem de avental posto ou de vassoura na mão prontos para trabalhar.

Eu contacto com alguns, diariamente, vindos do Nepal, do Bangladesh e até da Índia. Amigáveis, cordatos, atenciosos, educados, pacíficos. Não percebo o que mais quer a ralé nacional. Insegurança? Não estou a ver. Dou frequentes passeios com a minha cadela boxer por volta da uma da manhã, uma vezes só, outras acompanhado pelo meu filho, por sítios movimentados ou ermos, a cerca de um quilómetro do centro de Cascais. Cruzo-me com vários, saudamo-nos com um boa noite. Nunca me sinto inseguro.

Martim Moniz? Como escrevi aqui, há quase um ano, antes de haver imigrantes aquilo era um sítio chulo. Agora tem outra cor, outro asseio. 

Há problemas? Polícia cívica e esquadras de proximidade nos bairros, em diálogo constante com a população. Não há dinheiro? Há pois. é uma questão de governança.

sábado, dezembro 21, 2024

Byron Stripling, «I'm Confessin' That I Love You»

ucraniana CCLXXV - em bicos de pés

O impacto de um míssil ou drone, ou lá o que terá sido, em Kiev, serviu para Costa se fazer reparado, pelo menos aqui na parvónia, depois das palavras vazias dos últimos dias; e para a Ursula escrever uma porcaria qualquer em português. Houve um morto ali por perto, o que é sempre trágico; como trágico são estes tipos em Bruxelas. A Úrsula falou em ataque hediondo... Bolas, ainda bem que foram os russos em Kiev, pois se fossem os israelitas em Gaza, teriam sido pelo menos uns cem, os mortos, entre mulheres, crianças, velhos -- assim ao calhas e sem que esta criatura soltasse um grasnido. Estou tão farto destes estúpidos.

o que está a acontecer

«Não importa detalhar o insucesso. Direi apenas que a queda não foi tão espectacular que me levasse a acreditar no destino, nem tão imperceptível que não me envergonhasse. Foi um fracasso ordinário e marcante. No final nem sequer tive direito a uma depressão, à varanda de onde pudesse usufruir da contemplação pantanosa de uma vida cheia de estilhaços.» Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas (2013)

«Então nós lembramo-nos comovidamente desse actor num papel de inspector de polícia que particularmente nos entusiasmara, pois além de uma inesquecível cena de tiros nos esgotos de uma cidade americana, em que matava trinta e quatro "gangsters" sem sofrer uma beliscadura, contracenava com uma actriz lindíssima, responsável por manchas suspeitas nos lençóis da nossa adolescência -- e esta série de emoções heróicas, eróticas ou plangentes consubstancia-se num desejo irreprimível de ir ao cinema mal badalam nos campanários os ecos da ressurreição.» António Victorino de Almeida, Coca-Cola Killer (1981)

«Longe, muito lá cima, onde o médico mantinha os olhos presos, no cerrado e extenso pinhal que abrigava dos temporais a derradeira povoação de Moura Morta, é que o dia parecia escolher sempre campa para o seu canseiroso jordanear.» Guedes de Amorim, Aldeia das Águias (1939)

sexta-feira, dezembro 20, 2024

ucraniana CCLXXIV - deixa-me cá criticar forte e feio o Putin, que está na mó de cima, graças a deus

Eu sei que é preciso ter uma paciência infinita para lidar com a idiotia do Ocidente, a bandidagem de Washington, os serventuários da UE, os múltiplos palhaços da "comunicação", da cnn internacional para baixo, mas -- do pouco que pude observar nos telejornais --  não gostei nada do tom de piadola do Putin sobre duelos... Isso é bravata para líderes de terceiro mundo e também para os trumps e outros mileis, não para estadistas civilizados ou decentes.*

Muitas vezes também tenho vontade de rir, mas eu não só não sou um líder político, como não tenho que arcar com o peso de milhares de mortos, mesmo que numa guerra provocada pelos patifes dos americanos e respectivos lacaios.

* É verdade que Biden é um senhor, podre e senil, mas um senhor. No que também não veio nenhum bem ao mundo...