terça-feira, julho 23, 2024

A CURVA DA ESTRADA

«Encontravam-se os três à mesa de jantar e o velho relógio de pêndulo marcava onze horas menos um quarto. Mercedes mostrava-se impaciente. / -- Ramona! -- gritou. -- Então o café? -- E dirigindo-se ao irmão e ao sobrinho: -- Esta mulher está cada vez pior!» Ferreira de Castro, A Curva da Estrada (1950) § «Em longos anos de rotina diária, meu pai afeiçoara-se de tal modo ao armazém de panos onde era o principal empregado, que ali fazia inúmeros serões, gozando raivosamente a ausência do patrão. Nessa noite de Julho, ao regressar a casa, deve ter parado, atónito, no meio da rua deserta: embora passasse da meia-noite, havia, na janela da frente, um risco de luz vertical!» Francisco Costa, Cárcere Invisível (1949) §  «Acima do portão, na verga quase vestida pela hereira que já amortalhara a pedra heráldica, a valer de baetão que a amantasse nos lutos, ainda lá se lia uma data, 1654, avivada pelo caseiro, por mimo, no tempo da poda, a riscos de caco.» Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947) § «Era a hora do estudo da tarde, e Lelito pensava. As Catilinárias abertas na carreira, o dicionário à direita, o caderno de significados à esquerda e o lápis à mão -- pareciam demonstrar que Lelito preparava a sua lição de latim. Mas Lelito não pensava nas Catilinárias. Na realidade, nem pensava.» José Régio, Uma Gota de Sangue A Velha Casa I (1945) § «Por um claro domingo de Julho, à hora da missa, um landau desembocava a trote no campo da Feira, em Guimarães, indo estacar em frente do palácio dos condes de Vila-Torre -- casarão envelhecido pelas chuvas e sóis de quase dois séculos, cuja frontaria de solar e convento tomava todo um lado da praça, hasteando sobre um portal enorme, de coiçoeiras denegridas, as armas nobres dos senhorios.» Carlos Malheiro Dias, Os Teles de Albergaria (1901) § «A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete.» Eça de Queirós, Os Maias (1888) 

2 comentários:

Manuel M Pinto disse...

«Além da francesia da forma, torna-se visível a quem compulse os seus primeiros escritos, que Eça de Queirós não punha grande recato em aproveitar-se do que era dos outros. Em aproveitar-se, chamando-lhe seu. Uma frase com sainete, uma adjectivação feliz, um pensamento singular; aquilo que é de bom quilate e por azar não brotou ao bico da pena; a imagem que assentaria como uma luva em tal ou tal lance da narrativa e que não ocorreu aos olhos do entendimento; a nota psicológica que vai a matar no indivíduo de tal e lhe dá carácter como o grão de beleza põe especial salero na face duma mulher bonita -- desde menino que se habituou a tirá-los para o seu cofre de jóias lá donde estivessem. E não seria ele capaz de forjar outras iguais, se não superiores? Se era! Pois que as tem de sua lavra, aquela pecha entra para o seu complexo de inferioridades, manifesto desde que pela primeira vez pegou da pena para exercer a maravilhosa sina. Até ao fim da carreira, Eça sofrerá de cleptomania literária.»
Aquilino Ribeiro, " Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais" (1949)

R. disse...

Já dizia não sei quem que os grandes roubam; os medíocres copiam...