terça-feira, dezembro 20, 2022

«--Compreende?»

Assim começa o romance A Amante Holandesa (2003), de J. Rentes de Carvalho (1930), narrativa de qualidades assinaláveis, que não posso enumerar num mero post. De qualquer modo, subscrevo a opinião de Saramago, trazida à capa da minha edição: «O prazer  de uma linguagem em que a simplicidade vai de par com a riqueza.» 

Talvez não haja maior qualidade literária do que a expressão simples; e como é difícil e trabalhoso atingir a simplicidade na escrita...  Simplicidade sem simplismo, como é, ou devia ser, óbvio: a consistência de um escritor afere-se pelo que diz na forma como o diz. Quanto mais claro, o estilo, e quanto melhor souber sugerir, maior o escritor. Sem estas qualidades, nem sei se o qualificativo será bem empregue. Escrever é muito mais que alinhar palavras e encadear frases.

Por outro lado, A Amante Holandesa inscreve-se na tradição realista do melhor romance português. Contemporâneo na linguagem, é ao mesmo tempo expressão da nação que o pariu, o que a mim me interessa sobremaneira.

 Vamos pois a este incipit  minimalista: «--Compreende?»

O quê? Impossível dizer. Entramos mo meio de um diálogo que não é de circunstância, como nos assegura a interrogação. Quem? Não é possível identificar; quando e onde?, omisso; como e porquê?, idem.  Em resumo, nada nos é dado, a não ser  um diálogo em andamento.

O título não ajuda, a não ser indicar que a trama andará em torno ou terá como fundo uma mulher estrangeira, e que uma relação existe ou existiu entre ela e alguém.

A epígrafe reproduz uma passagem de uma carta do Marquês de Sade ao seu procurador: «Je ne suis pas heureux, mais je me sens bien.» -- frase que só por si daria um ensaio, e que sem acrescentar outra informação ao incipit, serve para adensar a atenção do leitor.

Que se trata de um diálogo entre o protagonista-narrador e Amadeu, dito "o Gato" -- uma personagem da nossa literatura --, amigo de infância, num reencontro de muitos anos, cujo tempo torna distante ou algo cerimonioso, na aldeia natal, em Trás-os-Montes, isso o leitor verá em seguida.

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