«Eu tinha chupado a vida por uma palhinha e o que restava dela e de mim era um monte de ossos com algum sebo! Acabara de ter uma desilusão de amor com uma cadastrada e estava a reaprender a amar na altura em que estes sinistros crimes se passaram. Vivia sem grande futuro e pior presente numa mansarda perto das Portas do Sol na Rua da Judiaria. Por companhia tinha um lavatório de ferro com tantos gatos como os que passavam miando pelo telhado e um desenho a lápis do Hogan preso na parede por um adesivo onde se viam os dedos impressos pela fome. A única divisão servia-me também de escritório e, pendurado na porta da rua, tinha porto um letreiro com uma letra gorda dizendo "Agência Privada de Detectives". E para disfarçar a crise e enganar os clientes, com uma opulência fictícia, comprara um telefone a fingir e uma velha máquina de escrever na Feira da Ladra. Luxos que não podiam esconder o prédio, um pardieiro quase a cair, , alcunhado o "P.I.B. de Alfama", porque estava tão deficiente como a situação do país. De tal modo a casa se tornara popular no bairro que na taberna em frente se apostava, entre dois copos de tinto, quem ia dar primeiro com as trombas no chão: o prédio, o governo ou eu, vítima do meu arriscado ofício de impoluto investigador.»
Rusty Brown (Miguel Barbosa, 1925-2019), Os Crimes do Buraco da Fechadura (2010)
Sem comentários:
Enviar um comentário