sexta-feira, maio 26, 2023

casas de pasto acolhedoras & outros caracteres móveis

 «Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto [em] que sobre uma loja com feitio de taberna decente se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios.» Fernando Pessoa, Livro do Desassossego (póst., 1982) - «Rumorejou um corpo que devia saltar da cama, uns passos rápidos soaram na escuridão e logo, atrás da portinhola que se abriu, entrou no recinto uma fosca claridade.» Ferreira de Castro, A Selva (1930) - «O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam freneticos.» José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira (1995) - «É verdade que voltara ao bairro várias vezes, para visitar a minha mãe, para o funeral de Fernando, para votar na antiga sala de aulas onde escrevi uma composição imberbe dizendo que o amor não tem definição, e que, nesses breves regressos, era a mim próprio, e ao homem em que me tornara, e não ao lugar da minha infância, que eu contemplava, ingenuamente satisfeito com o meu trajecto.» Bruno Vieira Amaral, As Primeiras Coisas (2013)

6 comentários:

Manuel M Pinto disse...

« Ao contrário do que proclamou Alberto Pimentel, parece-nos que a vida de Ana Plácido em Seide se não possa chamar trinta anos de agonia. Como podia isso ser, castelã de facto, com a sua corte, os seus abades, os afilhados de Camilo que eram legião, correspondendo-se com príncipes de sangue e das letras, fumando o seu charuto e dirigindo uma útil e truculenta labregada na vinha e nas veigas que deixara o Pinheiro Alves? As agonias, de resto, são sempre limitadas no tempo. Ana Plácido, demais, tinha saúde. Di-lo o próprio Camilo: "Como inimiga da farmácia e refractária a discursos farmacológicos, não ingere nas vísceras coisa que não seja feijão, bacalhau e algum vinho de enforcado. Quanto a fumo é uma fábrica de Manchester."
Por necessidade da prosopopeia literária ou da sua política, Camilo punha-a muitas vezes às portas da morte. Quantas vezes lhe não diagnosticou a héctica e a dar as últimas com uma pneumonia!? Sena Freitas chegou a enviar-lhe pêsames, intempestivos, logrado por uma destas pranteantes e inconsoláveis cartas, em que se estava a ver a pobre senhora de ablativo para o cemitério!»

Aquilino Ribeiro, "O ROMANCE DE CAMILO" (1961) -(Terceira Parte- Da Prisão à Morte)

R. disse...

Olha que dois... O Camilo do Séc. XX a escrever sobre o Aquilino do XIX?

Manuel M Pinto disse...

Equiparação com muito acerto!...

R. disse...

Ninguém terá escrito com tanto e tão poderoso estilo quanto eles dois, no tempo respectivo em que viveram.

Manuel M Pinto disse...

AQUILINO RIBEIRO, "Um dos maiores escritores de Língua Portuguesa de todos os tempos", faleceu há 60 anos: 27 de Maio de 1963.

«Aquilino, no seu saber de amor feito, conhecedor profundo de aldeias e vilas, e suas gentes, campónios, fidalgos, brasileiros, padres, almocreves, da meseta lusitana, cantor do sol e da noite e dos próprios lobos companheiro. Romancista da inteligência e da coragem, da rebeldia mas também da astúcia, da paixão concentrada e também do desejo à solta, observador prodigioso, mestre da língua como nenhum outro escritor deste século.»
Urbano Tavares Rodrigues

«Aquilino possuía, como nenhum outro, a sabedoria da língua e dos segredos gramaticais e estilísticos: metáforas, sinédoques, parábolas, fábulas, analogias, um arsenal de conhecimentos que aplicava nos livros com alegre desenvoltura.»
Armando Baptista-Bastos

«Para mim, novamente, Aquilino é uno, a sua personalidade de artista e de homem, está sempre presente em tudo quanto escreve, seja ele o romance ou o conto, a crónica ou a história. Também não separo, não isolo nele, o artista do prosador, como vejo por vezes fazerem, porquanto se me afigura que o artista que ele é requer a prosa de que se serve, e que essa prosa, que lhe é consubstancial, já é em si mesma um valor artístico pessoal, “aquiliniano”. Por isso no autor da “Via Sinuosa” vejo eu um dos mais raros e preciosos casos do perfeito encontro do escritor com o seu estilo. Não é um escritor à procura de um estilo, nem um estilo à procura de um escritor, se assim me posso exprimir. E esta é, ao que se me antolha, a grande vitória de Aquilino Ribeiro sobre tantos dos seus confrades nas actuais letras portuguesas.»
Fernando Lopes Graça, em "Comércio do Porto", 23/4/1963

R. disse...

O Lopes-Graça foi um extraordinário escritor de ideias, ensaísta e crítico, como aliás se vê.