sexta-feira, setembro 23, 2022

marginália

 

Anátema (1851), o primeiro romance de Camilo, meia dúzia de anos depois da estreia, em verso, com o bonito título Os Pundonores Desagravados...

Diz a contracapa da minha edição que o Camilo do futuro já lá está, e é verdade. O Camilo sarcástico, corrécio, inconveniente e iconoclasta; o escritor a metro, mas um metro abençoado, pois havia que fazer render o peixe do folhetim, diz-me o Alexandre Cabral. naquele invejável Dicionário, que publicado em 2-jornais-2, em Lisboa e no Porto --, o estilista límpido e poderoso. 

Completava vinte e seis anos, e os grandes eram então Garrett, Herculano e Castilho, aparecendo dizendo estar-se nas tintas para o romantismo e respectivos ideais revolucionários, que desprezava. «Escola militante» e «sociedade aspiradora», são duas expressões que dão ideia do vezo polémico deste grande reaccionário, que foi temível e destrutivo, quando queria. E em tom de desafio encerra a apresentação do livro: 

«O escritor destas coisas ainda não abriu matrícula, nem pede que o inscrevam ainda à custa de uma boa reputação de folhetinista. Se a escola, em nome do século, do futuro e da humanidade, o interrogar pela substância útil deste apontoado de palavras, o autor não lhe dá resposta alguma. / Dito isto, começa-se.»

É impossível não adorar este desavergonhado de génio.

8 comentários:

Manuel M Pinto disse...

Ainda o genial Camilo:
(...) Estava Honorata nos trinta e três anos, quando Silveira a encontrou nos Pombais. O delegado era um romântico. Emigrara em 28, sendo estudante,
quando alguns membros da sociedade dos 'Divodignos' padeceram o suplício
da forca pelo homicídio dos lentes. Completara a formatura em 38 e fora despachado. Muito lido em Schiller e Arlincourt. Fazia solaus em que havia
abencerragens e infantas cristãs apaixonadas que tocavam arrabis, banhadas de lua nos revelins dos castelos roqueiros. Também fazia prosa na gazeta literária
do Porto — cenas dramáticas em que se jurava pela gorja e havia homens de prol que arrastavam mantos negros, cravavam lâminas de Toledo às portas de
D. Fuas, e, cruzando os braços, rugiam cavernosamente: “Ah! Dom ribaldo! Dom ribaldo!” e depois, os arrepios de uma casquinada seca, de um estridente grasnido de gaivotas que se espicaçam por sobre o mar banzeiro."...
"A Brasileira de Prazins" (cap. IV)

R. disse...

Muito obrigado! É um consolo lê-lo, até na palha. Neste excerto, ocorreu-me o grande Aquilino. Vou aproveitar para fazer uma pequena nota.

Manuel M Pinto disse...

"É talvez o nome de Camilo Castelo Branco aquele que os vindouros mais venham a aproximar do de Aquilino Ribeiro. Pela grandeza, variedade e vigor da sua obra, cultura vasta e profunda, e pela linguagem incomparável em que se exprime, este beirão que abria olhos para a vida, na costura das serras da Lapa e da Nave, quando o autor de 'Amor de Perdição' estoirava os miolos em S. Miguel de Seide por se lhe ir apagando a luz dos mesmos olhos, é o seu mais próximo parente."
"Jornal do Comércio" - Raul Rego

R. disse...

Nem mais -- obrigado outra vez!

Manuel M Pinto disse...

Mestre Aquilino: um admirador de Camilo!

https://youtu.be/3LqcwfnnNf8

Aquilino Ribeiro: "...nasci no ano em que se casou o Camilo..."
(ao minuto 02:23 do vídeo)
Entrevista transmitida no Rádio Clube Português, na rubrica "Perfil de um Artista", a 16 de Julho de 1957. Realização de Igrejas Caeiro.

R. disse...

Obrigado, de novo. Temos a voz do Aquilino, mas não com imagem. A censura nunca o deixou passar na televisão.

Manuel M Pinto disse...

Prezado Ricardo Alves:

Em complemento dos comentários anteriores em torno dos dois gigantes das letras portuguesas, tomo a liberdade de transcrever alguns excertos da "Nota preliminar" ao livro de Aquilino: "O Romance de Camilo" (3 volumes).

(...)"Que se não conformem com a análise espectral os discípulos de Pangloss: os que trazem às costas a opinião dos outros como uma mochila do regimento; os fetichistas do ídolo absoluto; os filhos desmiolados de papá, desatentos de tudo o que não seja o volante e a bola do seu clube; todos os lentaços e letrados, escaravelhos das ideias que andam pelo chão, e ainda aqueles que transformam os seus preitos em sacramentalidade--não se conformem e fujam de ler este livro que pode provocar-lhes a erisipela.
Mas sempre lhes digo: a história literária não é uma ladainha, nem uma lixívia; antes uma prospecção. Escava--se no indivíduo até encontrar o escritor como se removem as entranhas do monte até pôr a nu o veio aurífero.
(...)
Portanto, nada mais legítimo, ia antepor, mais necessário à curiosidade, fonte de todo o saber, o inquirir como vivia tal ínclito cidadão, se era rico por herança, porque o ganhou na Bolsa ou a cultivar melões, se era pobre e comia do seu salário, ou moinava, e como se comportava com o belo sexo. Fora disto, literatura, ciência, arte, tudo é paisagem.
Por conseguinte, exploremos o humano para devassarmos a essência, as raízes, razão, forma, do espiritual. Aqui está o que pretendi fazer escrevendo o 'Romance de Camilo': procurar o homem picado do génio e das bexigas, que até à idade madura passou as passas do Algarve, foi pai de dois filhos loucos, brigou, confessando-se plebeu, a coroa de visconde, matrimoniou-se no tarde com a pobre matrona desencaminhada do lar, era desdenhado das mulheres, contemptor de Deus e do seu semelhante, animal de nervos, irregular em tudo. Cometi esta empresa sem o mínimo preconcebimento e cuidadoso de não incorrer na excomunhão dos arciprestes da hiperdulia. (...). Eu escrevo-o com Camilo morto, de cuja vida me coloco em espectador imperturbável, embora admirando-o, assombrado da obra que nos legou. Pimentel tolhia-se de tocar no homem abscôndito e trazer à plana o que lhe fosse molesto. Eu espreito sempre esse Proteu, na mira de explicar os complexos dum cérebro a quem se devem tão soberanas manifestações. Encarar o gigante, sem o dealbar da ganga terrena no rio Letes ou na água de misericórdia, tal como foi em seu vero ser, meio e comparsaria, é, quanto a mim, prestar-lhe uma homenagem racional pela obra do espírito.(...)
E, posso alegar, é porque os olhos do meu entendimento nunca se desfitaram da verdade, santo sudário da vida, voz da consciência, essa verdade verdadinha a que, nestes tempos tão astrais como latrinários, trazem emporcalhada, de toda a sujice de que são capazes, os sectários de créditos batidos em brecha, os parvajolas das ideias feitas, os sucateiros das letras que desbastam o papel almaço, e certa ordem de coleópteros, como os que rolam a maçã camiliana." (...).
Lisboa, Primavera de 1961.
Aquilino Ribeiro

R. disse...

Ele também não era nada meigo -- antes, granítico!...
Obrigado, mais uma vez, fico a dever-lhe o humilde post...