quarta-feira, outubro 21, 2020

"O Cânone" de quem? - do que falta numa lista (4)

(Continuação do comentário à lista de O Cânone, edição de António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen).

Quarenta e quatro nomes, 66% da lista para os escritores do século XX, em que os três primeiros começam a publicar ainda no século anterior, e a antepenútlima, em data de nascimento, felizmente ainda viva e a publicar:Camilo Pessanha (1867-1926), Raul Brandão (1867-1930),Teixeira de Pascoais (1877-1952),Aquilino Ribeiro (1885-1963),Fernando Pessoa (1888-1935),Mário de Sá‑Carneiro (1890-1916),Irene Lisboa (1892-1958),José de Almada Negreiros (1893-1970), Florbela Espanca (1894-1930),José Régio (1901-1969),José Rodrigues Miguéis (1901-1980),Vitorino Nemésio (1901-1978) Miguel Torga (1907-1995), Jorge de Sena (1919-1978),Ruben A. (1920-1975), Carlos de Oliveira (1921-1981),Maria Judite de Carvalho (1921-1988), Agustina Bessa‑Luís (1922-2019),José Saramago (1922-2010), Mário Cesariny (1923-2006), Alexandre O’Neill (1924-1986), Herberto Helder (1930-2015),Ruy Belo (1933-1978),Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), Luiza Neto Jorge (1939-1969),  Ruy Belo (1933-1978), "As Três Marias": Maria Teresa Horta (1937), Maria Velho da Costa (1938-2020) e Maria Isabel Barreno (1939-2016). Não discuto nenhum: mesmo os poucos que aqui estão que dificilmente podem ser considerados grandes terão o seu lugar no cânone literário português. Estranho algumas ausências, como as do António Botto (1897-1959) ou Vergílio Ferreira (1916-1996), sem grande escândalo, porém: eu sei que daqui a cem anos o Aquilino será lido, não sei se com o V.F. sucederá o mesmo, quem saberá dizê-lo?...

Continuando a ser restritivo -- poderiam estar aqui dezenas de nomes, não atirados a esmo, em especial na poesia --, avanço com nove escritores, cuja ausência dir-se-ia escandalosa se houvesse lugar a escândalos, num livro que se apresenta como o cânone. A constatação dessa ausência significa que o livro, com título pomposo e definitivo, serve para pouco, relativamente àquilo a que se propõe: M. Teixeira-Gomes (1860-1941), ou o primado da estética, sem par. Ninguém tem a mesma elegância informada, desassombrada, cultíssima. Manuel Laranjeira (1877-1912), uma escavação interior desapiedada, que vim a encontrar num Cioran; o tal que levou o Unamuno nos qualificasse como povo de suicidas. Jaime Cortesão (1884-1960), porventura o maior historiador português do século (está para ele como Herculano para o anterior), portador de uma ideia de país que foi confirmá-la nas fontes. Ferreira de Castro (1898-1974), o romance português era uma coisa antes dele e foi outra depois; ninguém falara do país da maneira como o fez. Foi o pai do neo-realismo. A partir de Emigrantes (1928) não tem um só romance menor.  Tomaz de Figueiredo (1902-1970) é uma outra estética, não cosmopolita à maneira do Teixeira-Gomes, mas castiça. É o nosso Lampedusa antes de O Leopardo, como se dos olhos de um príncipe criança. Saul Dias -- o pintor Júlio [Maria dos Reis Pereira], irmão de Régio, poeta da palavra essencial, justa e definitiva. Alves Redol (1911-1969), ficcionista de sangue quente, duma têmpera  de romancista como poucos, de longe um dos grandes do século, como o século fará questão de registar. Manuel da Fonseca (1911-1993,) tão neo-realista e tão singular, ele é o Alentejo profundo e dramático, por vezes trágico, no romance, no conto, na poesia. Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), como não?, a palavra decantada, o canto dos tópicos nacionais, o mar, as navegações, mas também a liberdade, a dignidade, que é o contrário da servidão e do aviltamento. E Rui Knopfli (1932-1997), uma expressão eloquente e desafiante, que se faz também de uma interpelação ao cânone. Poderia continuar, mas creio que será suficiente.

Em conclusão: um título desastroso dum livro que certamente terá as suas virtualidades. Mas um título é o mais importante de um livro, depois de tudo o que está lá dentro. 

O organizador Miguel Tamen, em declarações ao Obervador: sustentou«Quem acha que certos nomes deviam estar lá, tem bom remédio, escreva um livro. É disso que precisamos.» Como não concordar?

em tempo: vou passar a limpo e postar o texto completo



7 comentários:

sincera-mente disse...

Aposto que o A. Lobo Antunes está que nem um touro...

Manuel Nunes disse...

E ponha mais o José Cardoso Pires, o Ramos Rosa, a Maria Gabriela Llansol... Nunca mais acabávamos. O Lobo Antunes também entrará, mas primeiro é preciso tê-lo na eternidade... Maria Teresa Horta, graças a Deus viva, entrou à boleia das Três Marias. E agora uma curiosidade: o Carlos Reis mete no cânone os discursos políticos de Mouzinho da Silveira. E esta, hem?

R. disse...

Fernando, o Lobo Antunes é como diz o Manel. Mas lá chegará, possivelmente.

Manel.50 nomes para estes séculos todos... Não me esqueci desses, mas ainda é tudo muito recente. Mas claro podemos ter as nossas percepções.
E onde está isso do Carlos Reis?

Manuel Nunes disse...

Meu caro, está em "O Conhecimento da Literatura", Coimbra, Livraria Almedina, 1995, p. 72. Diz o professor que o cânone literário de uma determinada literatura envolve um conjunto de autores e obras literárias canónicas, mas também outras obras (filosóficas, historiográficas, religiosas, pedagógicas, ensaísticas, etc.) que com aquelas de alguma forma se relacionam. E cito: « (...) aquilo que poderemos entender como o cânone literário português engloba o teatro de Gil Vicente e "Os Lusíadas", mas também as obras de João de Barros e Diogo do Couto, os romances históricos de Herculano, a par das obras historiográficas do mesmo autor e do pensamento político de Mouzinho da Silveira, "Os Maias" de Eça, o "Portugal Contemporâneo" de Oliveira Martins, etc. etc.» Ficou pelos etc. etc. e não se atreveu a chegar aos 50. :)

R. disse...

Obrigadíssimo, meu caro. E tem ele toda a razão. Ainda havemos de chegar aos discursos do Salazar, admire-se.

Manuel Nunes disse...

Quanto a esses discursos, cito Sophia, "Livro Sexto":

«O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas.»

R. disse...

Vejo com agrado que a próxima sessão dará que falar.