sábado, maio 31, 2014

um acontecimento editorial: A EXPERIÊNCIA, de Ferreira de Castro (hoje, na Feira do Livro)

Durante sessenta anos (desde 1954, data da primeira edição), A Experiência ficou escondida, no mesmo livro, entre a novela A Missão e o conto O Senhor dos Navegantes. A primeira, objecto também de edições à parte -- foi um dos volumes inaugurais da histórica colecção "Livros de Bolso Europa-América", e da própria editora original, a Guimarães, quando escolhido como um dos livros de leitura curriculares do então ensino unificado, na década de 1970. O Senhor dos Navegantes, em tempos gravado e dito por Ferreira de Castro, num disco editado pela Orfeu, em 1998, através da direcção avisada e culta de Vasco Graça Moura e António Mega Ferreira, foi também objecto de uma edição em separado, na colecção da Expo "'98 Mares".

E A Experiência, no meio da boa fortuna das outras duas narrativas, o único romance que integrava o volume A Missão?; essa história incrível de duas crianças de asilo, Januário e Clarinda, evoluindo para a marginalidade como se uma nuvem negra que sobre eles pairasse não lhes oferecesse outra saída?; essa narrativa modelar, moderna na sua estrutura, com vários planos espácio-temporais, mostrando que, como qualquer grande escritor, Ferreira de Castro não queria dormir à sombra dos louros conquistados, procurando superar-se de livro para livro?...

Foi preciso um editor culto, percebendo que tinha em mãos um romance notável, de grande mestria (um dos meus preferidos), para que A Experiência pudesse  sair da obscuridade a que não tinha direito. Sai, infelizmente, num tempo em que o detrito literário domina os escaparates, e o lixo quotidiano nos empesta a vida. Mas, ao contrário do que queria Ferreira de Castro, a grande literatura, aquela que experimenta e questiona, sempre esteve ao alcance de poucos. Podia ser outra coisa? Podia. Mas então Portugal não seria Portugal, mas outra coisa, menos rústica, menos suburbana.

A edição é cuidada, com referências bibliográficas diversificadas. Deixo duas, de conspícuos ensaístas e críticos, ideologicamente nos antípodas (Ferreira de Castro tem esse atributo dos grandes: seja qual for a nossa mundividência, encontramos sempre nos seus livros algo que nos emociona e faz sentido):

Óscar Lopes: «Ferreira de Castro foi o primeiro grande romancista português deste século [XX] que se determinou por problemas objectivos e não apenas por impulsos íntimos.»
e
Pinharanda Gomes: «Todas as situações são pontos limite, agonísticos, neste romance onde as personagens [...] bebem o cálice até à inverosímil agrura e, todavia, tudo é verosímil e, cotejado com a vida, é crível.»

Uma última palavra para Susana Villar, autora das capas dos livros de Ferreira de Castro na Cavalo de Ferro. Num autor que foi visitado pelos maiores capistas, de Stuart Carvalhais a Bernardo Marques, e até pelos maiores pintores, nas edições ilustradas de Portinari a Pomar, o óptimo trabalho de Susana Villar tem feito jus a também a esse legado.

Hoje, na Feira do Livro de Lisboa, Miguel Real falará sobre.

sexta-feira, maio 30, 2014

o primeiro da primeira

O primeiro da Primeira de Beethoven, Allegro molto. Allegro con brio. Ainda tão clássico, tão Haydn, os seu mestre, mas também já tão Beethoven, pujante, destemperado e romântico...




quinta-feira, maio 29, 2014

criador & criaturas

 Chic Young
Blondie (& Dagwood)

falou o Rocha

As circunstâncias rocambolescas da Coroa portuguesa depois da morte de D. João VI (1826), com D. Miguel no exílio, regência da infanta Isabel Maria, império de D. Pedro no Brasil, entourage da rainha viúva Carlota Joaquina... uf!, e o povo de Lisboa, bem guardado, mas na expectativa... 
A circunstância de não se fazer hoje historiografia assim, tão colada ao conjuntural, mesmo quando a pequena história possa espoletar os efeitos mais momentosos e inesperados, a verdade é que o acontecimento, o facto -- ou a percepção que dele possamos ter -- não pode nem deve ser ignorado, nem o papel do indivíduo pode ser subestimado, pesem todas a condicionantes.
Rocha Martins é um excelente exemplo. Os grossos volumes sobre o fim da monarquia são interessantíssimos e até essenciais para se comprovar a temperatura política do tempo. Monárquico liberal, opositor activo ao Estado Novo, estes escritos tinham também um objectivo cívico e político. Repare-se no antetítulo, "Liberdade Portuguesa"; tal como o explicit, nada inocente:  «A Liberdade [com maiúscula...] estava implantada. Cabia aos seus adeptos defender o estatuto que D. Pedro IV outorgara, mas praticando as virtudes que exigem as doutrinas dos homens livres: o respeito pela opiniões alheias, dentro da Lei, e sem ofensa das que professamos. / Só assim existirá o verdadeiro equilíbrio do espírito democrático e liberal.»
Rocha Martins, A Carta Constitucional (s.d.)

quarta-feira, maio 28, 2014

Bartók resume



O Concerto para Orquestra (1943) é uma das minhas peças preferidas, de todos os tempos e em todos os géneros. Para além da intensa melancolia e da grande tensão que conjuga, como um estado de prostração com súbitos espasmos nervosos, nunca posso esquecer que Béla Bartók estava no seu exílio norte-americano, com a saúde em baixo (morreria não muito depois) e a Europa em guerra. Este primeiro andamento resume tudo isso

terça-feira, maio 27, 2014

acordes nocturnos


Hugo lido




Quasimodo é património mundial e Esmeralda não lhe fica atrás. Grande obra da literatura romântica, excessiva e destemperada, é crítica dos poderes (o retrato de Luís XI é cruelmente  impressivo) e anseia pelo progresso. 
Victor Hugo, Nossa Senhora de Paris (Notre Dame de Paris, 1831).

segunda-feira, maio 26, 2014

Socialistas europeus: o horizonte da irrelevância

A magra vitória do PS, as derrotas do PSOE e do Labour, a hecatombe do PSF, o desaparecimento do Pasok (atrás dos neo-nazis), não pode deixar de inquietar todos os democratas e liberais (no sentido histórico do termo). Se eu fosse optimista, veria nisto a oportunidade óptima para a social-democracia europeia se repensar, voltando a ser uma força comprometida com os interesses dos povos, deixando de ser (no melhor dos casos) gestores do capitalismo selvagem, que é o grande inimigo presente das democracias; ou,  meros empregados dos interesses financeiros, colonizados pela mediocridade aparelhística.
Não se pretende que os socialistas adoptassem um discurso de língua de pau à PCP -- desacreditado pela História, quando não o fosse já pela própria ideologia messiânica --;  nem se tornasse numa salada ideológica como o Bloco, uma espécie de PSD da esquerda; apenas que fosse consequente com a designação que ostenta e estivessem à altura dos seus maiores.
Como sou pessimista, não creio que isso vá acontecer, a não ser pela força das circunstâncias. O que estas podem vir a ser, será algo a que assistiremos nos próximos anos; e em muitos casos pouco bonito de se ver.  

Eco lido

Um mergulho de Eco nos conceitos de beleza abordados nos grandes textos teológicos da Igreja medieval. Não havendo discurso teórico enquanto tal, a estética estava associada à acção divina de que resultava o belo, porque forçosamente associado à ideia de bem. Bem e belo confundem-se nas noções de harmonia e proporção, na Natureza como na acção humana. Tudo o que se afaste da norma -- o mundo à volta da paz dos mosteiros, onde se meditava e reflectia --, acaba por configurar uma transgressão ao ideal de que a obra de Deus não se ocupou.

Umberto Eco, Arte e Beleza na Estética Medieval (Arte e Bellezza nell'Estetica Medievale, 1987)

domingo, maio 25, 2014

as eleições

Agradou-me a pequena vitória do PS e, ainda mais, a estrondosa derrota do PSD e do CDS. Também gostei que o BE não tivesse desaparecido do Parlamento Europeu.
Tive pena do insucesso do Livre. O que fará o candidato do MPT é para mim uma incógnita; o que farão os deputados do PCP é uma certeza.
Lá fora, adorei a vitória do Syriza, na Grécia, e não me surpreendeu nada a da Frente Nacional em França. O que me assusta são os 14% do PSF.

valsa triste


«Abertura (Gare d'Austerlitz)», de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades. Valsinha triste com os sons da estação de comboios em Paris, cidade de emigrantes portugueses fugidos à pobreza do país, dos desertores da Guerra Colonial, dos exilados políticos perseguidos pelo Estado Novo. Também desertor e exilado político (fora preso pela PIDE em 1962, e preparavam-se para lhe dar o castigo de combater no conflito criminoso de Portugal em África, em entrevista a Adelino Gomes, nesse ano de 1971, dizia José Mário Branco: "Eu, como os 700 mil portugueses que estão aqui em França, nunca abandono a ideia de que Austerlitz se transforme um dia numa estação de regresso ao meu país" (livreto do CD, 1995)







sábado, maio 24, 2014

quanto é doce




Abre Fura Fura (1979), um dos meus discos preferidos.  Todo o lado A é preenchido com a música que José Afonso compôs para a peça «Zé do Telhado», levada à cena pelo grupo A Barraca. A voz de Zeca é particularmente calorosa (a letra é do nosso cancioneiro popular), dando o coro, a cargo dos Trovante, o contraponto vigoroso que o solista não se permite.












sexta-feira, maio 23, 2014

nunca totalmente

Concerto de 1805-1806, o Génio Romântico de Beethoven apaziguado, porém não totalmente, nunca totalmente. Zimerman e Bernstein em conjugação plena.


estampa CLXXVIII - Ernst Ludwig Kirchner

Um Grupo de Artistas (1927)´
Museu Ludwig, Colónia

quinta-feira, maio 22, 2014

um prodígio de fusão

«Wasted Words», de Gregg Allman, aqui já o único brother sobrevivente, a dar a voz. Um prodígio de fusão country, blues e soul, e em que o todo instrumental é relevante (estou a pensar na secção rítmica), pese o destaque das guitarras. O diálogo entre a guitarra e o piano, com intromissão da bateria em fade out, consegue ser esfuziante.De Brothers And Sisters (1973). Em baixo, Gregg Allman em Los Angeles, 40 anos depois.


quarta-feira, maio 21, 2014

um texto limpíssimo

Nota de uma peregrinação à capela de S. João d'Arga, por ocasião das festas anuais em intenção do orago, publicada em Páginas V (1965), contemporânea, pois, do romance A Torre da Barbela (1964), para a memória do qual nos remete irresistivelmente este relato de ascensão devocional, lembrando o improvisado guia conduzindo turistas indiferenciados ao cimo da barbacã medieval.

Aqui, não se trata de turismo, mas sim tradição milenar, religiosa e profana, que Ruben nos participa como uma espécie de repórter, entre o divertido e o cúmplice com esta multidão minhota que, anualmente, sobe e desce, cumprindo promessas ("patas são quatro, sobe-se de gatas, voltar atrás é perder o equilíbrio"), com as provações exigidas pela crença arreigada ("Estão na Idade Média. Todos os anos o 28 de Agosto é corrido a carpir e a borgar naquelas alturas.").


O texto é limpíssimo de precisão, de quem se sente parte daquele habitat, apesar de fazer vida por Porto e Lisboa, praias da Granja e  Cascais, como lhe proporcionava o estatuto familiar de bem-nascido, e mais franças e araganças, como lhe exigiam as funções diplomáticas e universitárias. Prosa aliciante, recurso a efeitos de estilo como a repetição, transmitindo uma viva noção das dificuldades daquele custoso passeio ("[...] começa o planalto de pedras, pedras sempre pedras, pedras desde o princípio do mundo, pedras poemas, sabendo que são pedras, pedras sim."; "Cá vamos subindo, sempre subindo, subindo de cabeça baixa [...]"). Vencidas as dificuldades e cumpridos os preceitos que as promessas ao santo exigem, é tempo de folguedo, de borga.


O incipit«S. João d'Arga - 28 de Agosto.»
Um parágrafo: «Pusemos arraial na encosta, pedra ao pé de pedra. Lá fomos entre o formigueiro. A capela é mesmo viva pelas coisas de pedra colorida e pela situação escondida do altar-mor. Tem uma estátua do Santo Miguel a cutilar o Senhor Diabo que é uma maravilha. Todos entre Lima e Minho têm respeito ao Senhor Diabo para ele estar quietinho. Nada de obras do Diabo! O Senhor Diabo merece toda a consideração. Deitei lá umas cinco coroas para não ter nada com as iras e más disposições do Senhor Diabo.»
Ruben A., Antologia, organização de Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz, Lisboa, Roma Editora, 2009, pp. 89-94.

terça-feira, maio 20, 2014

a poesia não tem hora marcada / não se compra ao quilo ou ao vintém
Dick Hard

o romance em 1930



Teresa Leitão de Barros (1898-1983), escritora e crítica literária do Notícias Ilustrado, quando se publicou A Selva (1930) escreveu, entre outras, duas coisas importantes, que o tempo, que é mauzinho, veio confirmar: a primeira é que, publicados os dois romances, este e Emigrantes, dois anos antes, Castro sobressaía como o grande romancista da sua geração: «Ferreira de Castro consagrou-se a si próprio, quando escreveu as mais admiráveis páginas dos seus últimos romances. Os seus personagens, que ficam bem de pé, bem erguidos perante a nossa mais incondicional admiração, esmagam e afugentam os fantoches de tanto romanceco que contribuiu para divinizar alguns autores de sorte. São colossos amesquinhando pigmeus.»
Na verdade, quem, de 1930, importa hoje? Só Castro e Aquilino, que era da geração anterior. Morto Raul Brandão, nesse preciso ano, Assis Esperança não resistiu ao tempo (pese embora o magnífico Servidão, de 1946). Da geração de Ferreira de Castro, Régio avançaria com o importante Jogo da Cabra Cega, em 1934, que então passou despercebido, como seria de esperar; Miguéis terá o modesto Páscoa Feliz em 1932, esperando ainda cerca duas décadas para voltar a publicar; Nemésio, com o modestíssimo Varanda de Pilatos (1927), só em 1944 virá com o assombroso Mau Tempo no Canal; João Gaspar Simões romancista menor, nem é deste campeonato (o interessante Elói, também de 1932, não ganha no confronto com a Cabra Cega regiana); e Francisco Costa e Tomás de Figueiredo só nos anos 40 começam a publicar romances. Para além do que pululava pelos jornais, no elogio mútuo ou interessado, só mesmo Aquilino e Castro hoje importam.
Acrescenta também Teresa Leitão de Barros no Notícias da Tarde, acertadamente, podemos dizê-lo agora, à distância de 83 anos: «Como obra literária integralmente bem realizada, "A Selva" pertencerá, um dia, à História onde se analisam os livros definitivos e grandes que neste século foram escritos em língua portuguesa.»
"Neste século", atrevia-se a crítica, ainda em 1930. Olhando para trás, verificamos que acertou na mouche, mesmo com todos os grandes textos romanescos, e foram felizmente alguns, que se imprimiram até ao ano 2000...

Teresa Leitão de Barros, «Um grande livro do século XX», apud Jaime Brasil, Ferreira de Castro e a Sua Obra, Porto, Livraria Civilização, 1931.

foto: Maria Antónia Fiadeiro (org.), Mulheres Século XX -- 101 Livros, Lisboa, Câmara Municipal [2001]

segunda-feira, maio 19, 2014

Fender vs. Gibson: Joe Perry e Steve Hackett



um homem tatuado

Numa casa de praia na costa americana, Abe gasta as horas da reforma na pesca, em companhia do cão. Sally, a mulher, chama-o para o almoço, ao mesmo tempo que o cocker spaniel está inquieto, procurando atrair o dono para um local mais afastado das rochas, onde jaz o corpo de um homem ainda novo. Com ténues sinais vitais, Abe e Sally transportam-no até à moradia. O homem vai chamar uma médica, e Sally, procurando acomodar o estranho sinistrado o mais confortavelmente possível, detecta uma tatuagem por cima da clavícula.
Creio que, antes de XIII, apenas Fort Navajo, de Charlier e Gir, me haviam provocado tanto interesse nas categorias das bedês fleuve, de álbum para álbum, a ver como tudo aquilo se desenrolava. Não admira, pois, em ambos os casos estamos a falar de dois dos maiores argumentistas da bd franco-belga: Jean-Michel Charlier e Jean Van Hamme; e se Vance não é Giraud, teve a envergadura suficiente para lhe traçar um Blueberry.

W. Vance & J, Van Hamme, XIII -- O Dia do Sol Negro, tradução anónima, Lisboa, Meribérica / Liber, s.d., pranchas 1-2.

domingo, maio 18, 2014

acordes diurnos


tornar seu

Armstrong fora (?) do jazz, nesta gravação de 1964 (o meu ano), música que fez sua, não o sendo: ...This is Lewissss, Dolly! O não ser jazz era algo para que ele se estava nas tintas, como o estavam o Duke, o Ray e o King, que, abaixo, o acompanham, num concerto lendário no Madison Square Garden.






sábado, maio 17, 2014

convalescer com os clássicos



Durante um mês de convalescença, o narrador empreende a leitura dos clássicos do pensamento ocidental, levando-o, por sua vez, em duas tardes, a desenvolver um corpus pessoal de divagações metafísicas, cuja publicação pretende seja póstuma. Generosamente, faculta ao leitor três esboços do edifício teórico que construiu: a "Crítica do Terror Puro", "A Dialéctica Escatológica como Meio de Enfrentar os Seixos" e "O Cosmos a Cinco Dólares por Dia", e mais, generoso, "Duas parábolas" e uma mancheia de "Aforismos".
É de Woody Allen, e do realizador de "Manhattan" só se espera a irrisão dos lugares-comuns contemporâneos, do mais rasteiro à alta cultura dos maîtres-à-penser.

incipit: «O desenvolvimento da minha filosofia aconteceu como segue: a minha mulher, tendo-me convidado para provar o seu primeiro soufflé, deixou cair uma colher dele no meu pé, fracturando vários ossinhos.»
um parágrafo: «O universo é apenas uma ideia passageira na mente de Deus -- um pensamento bonito e incómodo, sobretudo se se acabou de pagar a "entrada" para comprar uma casa.»

Woody Allen, «a minha filosofia», Para Acabar de Vez com a Cultura, tradução de Jorge Leitão Ramos, 4.ª ed., Amadora, Livraria Bertrand, 1981, pp. 31-36. 

sexta-feira, maio 16, 2014

só canta só como ele sabe

That Old Feeling, standard de 1937, gravado vinte anos depois, no encontro de Louie com Oscar Peterson. Satchmo só canta só como ele sabe, e não recorre à trompete; Oscar, nada torrencial, acompanha com subtileza, até dar o sinal de término, scat de Pops, dedilhar da guitarra de Herb Ellis -- e acabou.
Em baixo, Anita O'Day, também enorme, talvez a maior cantora branca de jazz.








criadores & criatura

Walt Disney (Mickey Mouse) Ub Iwerks

quinta-feira, maio 15, 2014

como uma prece

imagem daqui
Um tom de litania, palavras do baiano Ildásio Tavares, música de Gerônimo, a abrir o esplêndido álbum Brasileirinho (2004), um disco que nos transporta para o mais profundo ethos brasileiro, português, índio e africano. Bethânia acompanhada pelos mineiros do Grupo Uakti; pelo meio o maranhense Ferreira Gullar (Prémio Camões) diz -- e que bem! -- um excerto dum poema do paulista Mário de Andrade, o livreto, atravessado por frases de João Guimarães Rosa. Ouvir, reouvir, muitas vezes, como uma prece.





quarta-feira, maio 14, 2014

estampa CLXXVII - Mark Rothko

Sem Título (Metro), c. 1937
National Gallery of Art, Washington

Couldn't nobody get me out of New Orleans but him!

imagem
Uma das primeiras gravações de Louis Armstrong (Abril de 1923), acabado de chegar de Nova Orleães, chamado por Oliver, em Chicago desde 1918. Ralph J. Gleason transcreve no livreto a evocação de Satchmo: "He sent for me to play second cornet [...] Couldn't nobody get me out of New Orleans but him! I wouldn't take that chance. / I hadn't heard his band till I got back to Chicago. When I heard it at the door I said 'I ain't good enough for this  band, I think I'll go back...'" Da autoria de Oliver e Bill Johnson, é desopilante e (minuto 1'-1'40") irresistível.

terça-feira, maio 13, 2014

o prédio


A primeira prancha apresenta-nos, em vinheta única, um edifício de esquina com 14 pisos, construído em finais do século XIX, inícios do seguinte. Um edifício em que, por algumas gerações, se viveu, nasceu e morreu, com tudo o que isso implica. Até que o prédio foi demolido, e com ele o lastro imaterial de aspirações humanas que acolheu.

Tratam disto as duas primeiras pranchas de um dos livros da minha biblioteca de BD que mais prezo: O Edifício, do enorme Will Eisner (1907-2005). No prefácio a esta sua obra, Eisner diz-se convicto de que não é impunemente que estes imóveis acolhem vidas durante vidas: «[...] estou certo de que essas estruturas marcadas por risos e manchadas por lágrimas são mais do que edifícios inertes»; e o livro é também uma insurgência contra a depredação dum património cultural, arquitectónico, artístico e imaterial a que se assiste numa cidade. Nada mais eloquente do que a epígrafe de John Ruskin: «Os edifícios antigos não nos pertencem. Em parte, são propriedade daqueles que os construíram; em parte das gerações que estão por vir. Os mortos ainda têm direitos sobre eles: aquilo por que se empenharam não cabe a nós tomar.»
Will Eisner, O Edifício [The Building, 1987], tradução anónima, São Paulo, Editora Abril, 1989, pranchas 1-2.

um cafis de apodrecidos cereais nas húmidas matamorras

Durante a Guerra Civil de 1245-1247 -- que também opôs dois irmãos, D. Sancho II, deposto pelo papa, e o Conde de Bolonha, futuro Afonso III --, conta-se uma estória lendária, protagonizada pelo alcaide-mor de Celorico da Beira, Fernão Rodrigues Pacheco (o primeiro deste nome).

H. Lopes de Mendonça, por Columbano
Sitiado pelo próprio infante, que o alcaide tinha por usurpador, Afonso quis vergar Celorico pela fome, até que, em intervenção supostamente divina, uma águia trazendo nas garras uma truta que acabara de caçar, deixa-a cair milagrosamente no recinto sitiado, levando a um estratagema que tem sido glosado noutras situações semelhantes (v. g. Deuladeu Martins): com o pouco de farinha que restava, Pacheco manda fazer pães, que, envolvendo o peixe de água doce, vai oferecer ao Bolonhês, através dum emissário, como preito respeitoso ao irmão do rei -- o único legítimo que reconhecia. D. Afonso levantará o cerco nesse mesmo dia.

Henrique Lopes de Mendonça (Lisboa, 1856-1931), foi um oficial de Marinha, grande historiador dos Descobrimentos e da Expansão, poeta (autor dos versos de A Portuguesa, recorde-se), dramaturgo e ficcionista com acentuada inclinação para a narrativa histórica. A História era a sua paixão, como historiador das Navegações ou ficcionista.
Neste conto, publicado originalmente em Capa e Espada (1922), Mendonça dá lastro à petite histoire e à lenda, pretexto para uma recriação lúdica dum tempo medieval conturbado; e fá-lo com a competência do histroriador.
O estilo é opulento, no bom sentido, português de lei. Mais do que uma historieta lendária, interessa-me e regala-me essa riqueza vocabular, incluindo os arcaísmos, que serve a narrativa.

O incipit: «Na açoteia da torre de menagem, Fernão Rodrigues Pacheco, debruçado sobre uma aberta das ameias, medita.»
Um parágrafo: «E, como a resposta se resuma a um gesto ríspido de impaciência, o agostinho prossegue. Em voz ungida de piedade, relembra as agonias daqueles meses de apertado cerco; o contínuo desfalque dos defensores, dizimados por ascumas e gorguzes, por virotões e pedregulhos, e mais ainda pela pestilência e pela fome. A custo se colhe um cafis de apodrecidos cereais nas húmidas matamorras. A chama dos fornos devora a lenha dos vigamentos, os sarrafos arrancados às mesas, aos escanos, às portadas. Dentro em pouco, toda a parte combustível da vila se reduzirá a cinzas para se transformar numa ilusão de pão as varreduras dos celeiros, a palha dos esteirões, a erva das ruas. À míngua de um mesquinho almanho, sequer, servem de repasto aos sitiados as alimárias mais imundas.»

H. Lopes de Mendonça, «A truta», 14 Novelas Histórias Portuguesas -- De D. Afonso Henriques à Batalha de Aljubarrota, selecção anónima (de José Saramago?), Lisboa, Estúdios Cor, 1965, pp. 125-132 


segunda-feira, maio 12, 2014

ou quando a vigília da Razão (com maiúscula, que é mesmo para chatear), engendra milagres

Se eu tivesse de escolher um único compositor para a ilha deserta, seria este -- o que mais me comove, o que mais admiro, tão tenso (veja-se como Peter Kuhar aborda o violino), tão patética, sublime e terrivelmente humano.
O 1.º andamento, Adagio sostenuto. Presto da Sonata #9 ("a Kreutzer"), é uma das muitas obras-primas que Beethoven, um milagre de humanidade, nos legou.
Peter Kuhar (violino) e Ivan Fercic (piano).


quinta-feira, maio 08, 2014

terça-feira, maio 06, 2014

desinfestação urgente

Conheço mal a situação da interna da Nigéria, quase só pelo que vou vendo pelos telejornais -- o que equivale a dizer, falando da indigência --,  que mais valera nada saber. (Basta aferir pelo que se passa na Ucrânia em relação à qual estou melhor inteirado: na maioria dos casos tenho a sensação de que aquelas vozes-off nem sequer percebem o que estão a papaguear).
Voltando à Nigéria: só se fala no rapto das meninas que cometeram o crime de estudar, gabarolado pelo excremento aí do lado, cujo nome nem escrevo para não me poluir o ficheiro. Um crime contra a humanidade, a ser perpetrado hoje e agora.
 Boko Haram, parece ser o nome desta trupe. Nunca me tinha dado a curiosidade para ver o que significava, e neste momento também não me apetece. Atendendo à incapacidade do governo do presidente Goodluck Jonathan e a eventuais constrangimentos diplomáticos e geo-políticos, espero bem que, seja de que modo for, inclusivamente recorrendo a mercenários tecnologicamente bem equipados e pagos a peso de ouro, dêem caça a este bicho e seus sicários, os julguem ou os abatam. Mas muito rápidamente. Depois, posso inteirar-me melhor sobre a situação deste país complexo.

segunda-feira, maio 05, 2014

criadores & criatura

 Philip Francis Nowlan

 Dick Calkins

Buck Rogers

sexta-feira, maio 02, 2014

A minha vida é ler os poetas que mais amo
Teixeira de Pascoais