«Ainda que devesses viver três vezes três mil anos e mesmo outro tanto dez mil vezes, lembra-te sempre que ninguém perde outra existência senão a que vive e que não vive a que perde.»
Marco Aurélio, Pensamentos para Mim Próprio
conservador-libertário, uns dias liberal, outros reaccionário. um blogue preguiçoso desde 25 de Março de 2005
Segue-se a norma adoptada em Angola e Moçambique, que é a da ortografia decente.
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QUINTA-FEIRA, 20 DE AGOSTO (Paris, 1914)
«Dia cheio de patético; morreu o papa, morreu o geral dos jesuítas. Tem-se a impressão de que o mundo está a desabar. E não; isto é máquina que trabalha em rubis, de confiança. Daqui por dez a vinte anos, fátua memória restará do dia de hoje; os homens e os povos serão tão parecidos com os do ano da graça de 1914 como ovos de serpente uns com os outros, pois que as variações na espécie humana não passam de meros e superficiais acidentes.
À parte o progresso que, sob o ponto de vista físico, há-de continuar a ser o progresso, o indivíduo estará mais perto do brutamontes do tempo do rei Dagoberto que da criatura despida de preconceitos, sonhada na República de Platão. Se lhe falarem na glória, exaltar-se-á; se lhe puserem uma espingarda ao ombro, denodadamente irá morrer numa trincheira, o Jocrisse. Aqui e ali terão surgido demiurgos que, para que só eles sejam vistos, hão-de pretender apagar os astros no céu. Os deuses andavam escassos de autoridade; os tais se arrogarão as suas funções divinas e por toda a parte D. Quixote será crucificado.
Do elenco pacifista dos últimos cinquenta anos, os contubernais da Haia, os roedores do Prémio Nobel da Paz, os arautos da fraternidade internacional em prosa e verso, a Social Operária que se dava as mãos de Buenos Aires a Moscovo, não partiu um só protesto contra o desbragamento da força. Que fazem? Perdem-se em emaranhada e retórica disputa quanto a saber se Edward Grey esteve ou não muito caladinho a chocar a guerra que convinha à Grã-Bretanha, se Poincaré é ou não homem de paz, se foi o kaiser quem atirou sobre os paióis da pólvora com o brandão inflamado. E, nesta sorte de grazina, escabuja o movimento que varria da casa do povo a palácio de rei, de Estocolmo a Viena, com uma plêiade, de que Léon Bourgeois e Magalhães Lima eram astros de primeira grandeza, soberana, empertigada, tilintante de cruzes, e heroicamente gastrónoma. Curioso é que esta guerra seja feita em nome dos belos lemas que os insignes comedores arvoravam nos programas. A França bate-se pela civilização e liberdade do mundo; a Rússia pelo exalçamento dos povos oprimidos; a Inglaterra pela salvaguarda dos tratados e honra do império; a Alemanha pela cultura e pela verdade; a Áustria contra a perfídia e pelo direito; todos mais inocentes uns que os outros; todos cordeiros pascais; todos endireitadores do torto e paladinos do fraco.
Bruxelas ocupada; os alemães encontram mesa farta e vão tributar a cidade em quinhentos milhões de francos, ao que se diz. O lobo traz apetite. Tal facto, soberano sob o aspecto moral e com grande significação militar, porquanto permite avaliar do esforço germânico, da debilidade belga e insuficiência francesa, é explicado nas gazetas de Paris com tão pronunciada e comprometedora penúria de entendimento que faz dó.»
Aquilino Ribeiro, "É A GUERRA-Diário", (Paris, 1914)
Espl»endido.
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