terça-feira, agosto 15, 2023

a arte de começar

 «Por um claro domingo de Julho, à hora da missa, um landau desembocava a trote no campo da Feira, em Guimarães, indo estacar em frente do palácio dos condes de Vila-Torre -- casarão envelhecido pelas chuvas e sóis de quase dois séculos, cuja frontaria de solar  e convento tomava todo um lado da praça, hasteando sobre um portal enorme, de coiçoeiras denegridas, as armas nobres dos senhorios.» Carlos Malheiro Dias, Os Teles de Albergaria (1901)

2 comentários:

Manuel M Pinto disse...


«(...) A Alemanha de 1914, ultrajantemente orgulhosa na sua pujança e armadura, tinha fundo bonacheirão. Em "raccourci" lembrava major da gendarmaria, praticante das letras e cultivador de rosas nas horas vagas, algum tanto maciço e susceptível, quando Deus quer com repentes de mau génio. Simplório, além disso. À mesa verde dos diplomatas, à parte os êxitos que promanavam das suas exibições de força, a Alemanha era invariavelmente batida. Os seus representantes, porque desprezassem o adversário ou porque lhes estivesse na massa do entendimento, tinham o verbo rude e leal. Acaso deu conta da conjura que, fio a fio, durante quarenta anos, a França urdiu contra ela? Não se encontrou na hora decisiva quase isolada?

Essa Alemanha, que nunca mais ressuscitará, adquirira hábitos magnificentes, gostando de se narcisar e saber que a viam cesareamente sumptuosa, próspera, temida e civilizadora às mãos fartas. (...)

A Alemanha que procede de Versalhes é dos tais vencidos a que deixaram os olhos para poder chorar. Retalharam-na, empobreceram-na, humilharam-na, quando a boa política seria apenas arrancarem-lhe unhas e dentes, que tão assanhadamente arranharam e morderam, para que cedo, um meio século, não ousasse recomeçar. (...)

(...) Em Versalhes não se pretendeu estabelecer a verdadeira concórdia entre as nações, mas sim dar satisfação aos ódios triunfantes. É explicável. Mas deixassem, ao menos, criar ossatura à nascente democracia alemã, chorona e paz de alma. Ao contrário, a mísera veio disforme à luz e morreu de consumpção chupada pelos vampiros francês e britânico com seus acólitos. Hitler desabrochou do nateiro de miséria, de opressão, de vexame, de rancor reprimido como flor onde menos se espera, miraculosamente, por conjura do vento, húmus e sol. Aí têm Átila II. Por agora está a forjar o gládio; quando o tiver forjado, brandi-lo-á com fúria sobre a Europa espavorida e nada saberá resistir-lhe. É fatal.

Espanta-se muita gente que a Alemanha, ensanguentada primeiro, exangue em seguida, não se tenha lançado no extremismo revolucionário como porta de salvação. (...) Ainda não bateu a hora, mas já ergue a cerviz que os negociadores de Versalhes nefastamenente para o mundo, supuseram dobrada à escravidão para todo o sempre.(...)

(...) Calaram-se os messias que repetiam às turbas conturbadas o sermão de Tiberíade. Onde pára o reino da justiça, da Igualdade, do Direito, pelo qual se batiam os aliados e que nos prometeram com tão munífica unção? Onde pára ao menos o belo cadáver da Liberdade para nós, os cépticos, o irmos amortalhado e dar à terra...?

Este registo vai, mal espanejado do pó dos anos e à parte leves variantes, como o lancei ao papel. Suprimi apenas aquelas páginas em que me arvorava em oráculo que lera no futuro com acerto, pois seria risível pospor a profecia aos próprios acontecimentos. Bandarra só para o dia seguinte. Outras, em que os factos me desmentiram, conservei-as porque um cálculo errado de meteorologia social não é menos instrutivo que um cálculo justo. (...)»

Cruz Quebrada, Maio de 1934.

Aquilino Ribeiro, [Dedicatória ao Dr. António Gomes Mota] - "É A GUERRA" (Diário) (Paris, 1914)
Publicado em 1934.

R. disse...

O Aquilino não era nenhum tapado; um ano após a chegada do Átila II ao poder, via muito bem as razoes porque, vinte anos após, a Europa entrava em nova guerra. Alimentaram o monstro, e ele aí estava, com uma porção de maldade que era impossível adivinhar -- refiro-me à chamada solução final. É por isso que nenhum regime, pelo menos no Ocidente, por muito brutal e tirânico, se lhe pode comparar, a não ser nas cabecinhas asnáticas de alguns palermas.