quinta-feira, agosto 24, 2023

caderninho

 «Alexandre da Macedónia e seu almocreve, uma vez mortos, foram reduzidos ao mesmo: ou foram reabsorvidos nas mesmas razões geradoras do mundo ou se dispersaram semelhantemente no meio dos átomos.» 

Marco AurélioPensamentos para Mim Próprio 

2 comentários:

Manuel M Pinto disse...

SEGUNDA-FEIRA, 24 DE AGOSTO; TARDE (Paris, 1914)
«Chegaram de Portugal os jornais que mandei vir de 4 de Agosto em diante. Por eles foi-me azado avaliar do eco que encontrou no jardim à beira-mar plantado o conflito europeu. A impressão que me deixaram é que os poderes constituídos e as classes influentes têm da guerra uma consciência anacrónica, quixotesca, tais aprendizes de história pelo livro de Pinheiro Chagas. Uma grande rixa à espada e a mosquete, com algum sangue de mistura, que vai acabar na epopeia. O holocausto dos labregos a quem os interesses da França ou da Inglaterra são tão alheios como a mim as unhas da imperatriz da China, os sacrifícios da economia pública anémica e lazarenta, as possíveis serpentes que a reacção venha a colocar no ninho da gralha vaidosa, que é a democracia, não contam. Um alfobre de faquires e engole-sabres este delicioso Portugal!
Convocado o Congresso em sessão extraordinária, os senhores pais da pátria, depois de fazer a apologia da guerra, ergueram com vivas à França, à Rússia, à velha aliada, e abaixos à Alemanha. Onde se recomendava circunspecção, inalterável seriedade em respeito até pela magnitude do grande e trágico problema, uma reserva decidida, repetiram-se as guitarradas das vésperas de Alcácer Quibir. Um asno heróico, no dia seguinte, rompia a dizer na gazeta que a véspera ficaria, depois do 5 de Outubro, a data mais gloriosa da República. E certo jornalista, que vai ganhando a vida a cantar o choradinho liberal na coluna de fundo duma gazeta, pregava que a Alemanha a nenhum país deixa a faculdade de ser neutral. A sentença cheira a invencionice de João Chagas, disparada em missiva ou por meio de A. N. Se Portugal chegar a ter pé na guerra, é bom que se saiba quantos destes magnânimos pais da pátria e seus filhos, quantos jornalistas intervencionistas e seus filhos, deram o corpo ao manifesto. Essa estatística, a bem da quietude de todos no futuro, terá necessariamente de fazer-se.
Meu pobre e louco Portugal, se deres o teu assentimento à guerra, é porque imaginas que estamos ainda no tempo das partazanas. A tua noção objectiva do mundo estacou nessa época recuada. De facto, a essa altura da história, os homens mediam-se pela força do braço e a grandeza da alma. Hoje estas medidas não contam; os dirigentes do mundo têm alma de rato; são velhos sem orgasmo ou temporões caducos. Não vão à guerra; mandam, por via de regra, os filhos dos outros. E na guerra o que conta é a capacidade industrial e o nervo económico da nação. O entusiasmo generoso, a fúria cavalheiresca valem pouco ao lado daqueles factores que apenas na paz se formam e robustecem. Meu pobre Portugal, sem fábricas, sem dinheiro, com negação absoluta para o expediente, que triste figura não hás-de fazer se puseres essa cruz às costas! Mas se tiveres de a pôr, mercê duma fatalidade congénita, que ao menos esse esforço seja encarecido pelos teus representantes, que não andes a dar o espectáculo de "condottiere" que se oferece, que não menoscabes o valor de semelhante concurso entregando-o gratuitamente, antes sendo prático com John Bull e esperto, ao menos, como Scapin. É a praga que te rogo, meu querido e infortunado Portugal!»
Aquilino Ribeiro, "É A GUERRA-Diário", (Paris, 1914). Publicado em 1934.

R. disse...

Muito bom; e nem o facto de ele ser então casado com uma alemã retira o certeiríssimo acerto do que escreveu.