continuar: «Os trabalhos decorriam lentos.» Início do cap. XIII, p. 225 da minha edição.
Um outro diálogo se trava agora, entre Luciano e o cónego Fulgêncio, descrito como «um padre octogenário, alto, macilento, de uma magreza de asceta, que se arrastava penosamente encostado a uma bengala.» Colóquio bastante mais interessante do que o ocorrido entre monsenhor Santana e Maria Helena, eivado de preconceitos de casta e sentido das conveniências. Não, o cónego Fulgêncio é outra fruta, embora partilhe com o monsenhor a mesma reserva quanto à fé ou ausência dela relativamente a Luciano, indo até onde a este mais dói -- o fundamento do trabalho de restauro da Sé de Lisboa, a que se entregara. Personagem interessantíssima, o cónego Fulgêncio tem o atractivo de juntar a rezinguice e um entendimento apertado da religião a uma benevolência que acaba por tornar a reprimenda quase doce, mesmo que qualificando como sacrílego o trabalho desenvolvido pelo arquitecto:
«-- Mas a Arte / -- A Arte, o quê? / Pois não será a Arte capaz de restituir a vida à velha Sé, sr. cónego Fulgêncio? / -- Que vida queres tu dar-lhe, grande tonto? Fosses embora capaz -- que não és -- de repô-la na primitiva, de a consertares toda, pedra por pedra, do portal até à ábside, do pavimento até às torres, supões tu que lhe davas vida? Cuidas que a reanimavas? Bem sei que queres à catedral, bem sei que te comove esta ruína. [...] Tu és sincero, amas esta igreja; mas na realidade, o que te entristece não é a ruína do seu prestígio, é a lepra das suas paredes. O que te dói não é a alma que se extingue, é a necrose das pedras. O que te interessa, o que te preocupa é apenas a forma, o involucro estético duma alma que desconheces. [...] Ora com que alma queres tu trabalhar aqui? Sim, com que ideal te propões tu, mais os teus operários ímpios, reanimar a velha igreja que a fé doutrora ergueu ao céu?»
(continua)
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