terça-feira, maio 18, 2021

leitura contínua: A CATEDRAL (1920), cap. VI


Continuar: «Fora de angústia mortal aquela semana que acabava de passar.» 

Manuel Ribeiro, A Catedral (1920), início do cap. VI, pp. 117-132, da minha edição. 

* Os espíritos amam-se já intensamente, sem outra ousadia que não a da sublimação, Luciano pela estética, Maria Helena pela mística. A erecção de uma capela consagrada à Virgem, acarinhada pela condessinha, a exemplo de certa catedral medieval francesa mas à partida e intimamente rejeitada pelo arquitecto, é mediada pelo capelão cantor, o padre Anselmo, personagem «inocente e insexuada», segundo o narrador. 

*A forma arrebatada como fala com Maria Helena acerca das criptas dos edifícios religiosos é reveladora do como o mundo do capelão cantor é doutro Reino: «A cripta é o âmago inviolado, o santuário discreto, o recolhimento interior, onde se comunga plenamente Deus. Aí as formas apagam-se, a criatura desintegra-se e dá-se toda ao seu Senhor. Em cima Deus é de todos. Em baixo, na cripta, é o encontro face a face, o desabafo sem testemunhas, a intercessão directa, sempre escutada e atendida.»

* O idealismo de Luciano e a paixão que vive tornam-lhe a ideia aceitável: «Quantas vezes sonhara ele erguer uma Santa Capela de Paris, onde reflorisse em formas imortais a beleza espiritual da Idade média, como protesto contra o industrialismo moderno, utilitária, interesseiro.»

* Enquanto Luciano se deixa absorver pela planta da Sé, Maria Helena embrenha-se na leitura edificante da Legenda Aurea, de Tiago de Voragine, não sem angústia. E então, como sucedera já com a liturgia, o narrador esparrama algumas páginas embevecido, invocando uma série de mártires da fé cristã. E com o auxílio do narrador alcançamos a reflexão da condessinha: «Sofria-se por uma crença, mas o objectivo era uma ideia.» Uma ideia que Manuel Ribeiro andava a perseguir, e também a ser perseguido por outra que lhe seria incompatível, ou talvez não: do comunismo anarquista passara ao comunismo bolchevique e daqui ao catolicismo. São tortuosos os caminhos do Senhor...



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