quarta-feira, setembro 10, 2025

o que está a acontecer

«Um, por exemplo, tinha certo modo de cortar no ar (cerrando depois o punho sobre a mesa) que revelava todo o seu gosto de pôr, dispor, e possuir. Estas particularidades ferem-me sempre em certos momentos sonambúlicos. Incapaz de apanhar então o panorama ou a síntese das coisas, a minha atenção esfarrapada choca-se com detalhes inúteis. Só a minha memória, trabalhando depois sobre eles, pede à minha imaginação que lhes dê sentido.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934)

«O que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e, apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas no ano em que o chão é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho, em lugares, que é cor de barro ou sangue sangrado.» José Saramago, Levantado do Chão (1980) 

«Assim, afrontando o claro sol e gárrulo estridor das aves, a ceifeira incorruptível veio surpreender, no dobrar dos sessenta, aquele homem rígido cujo coração era um compêndio de expressões imperativas, e onde, com a idade, começavam a pungir alguns flácidos rebentos de amor.» José Dias Sancho, Bezerros de Ouro (póst., 1930)

1 comentário:

Manuel M Pinto disse...

«Em abono de Coimbra, como terra natal ou pelo menos a cidade em que Luís de Camões estudou, residiu e teve os primeiros amores, o que podia ser possível, oferece-se à consideração a letra duma poesia:
"Vão as serenas águas
Do Mondego descendo,
E mansamente até o mar não param"
... ... ... ... ... ... ...
"Nesta florida terra
Leda, fresca e serena,
Ledo e contente para mi vivia..."
Esquecem-se porém que, descerrando acto de presença, se pode referir a outro, escrita para outro, traduzindo os sentimentos e ansiedades doutro. Numa palavra, o poeta poderia investir-se em segundo figurante, já porque estava nos moldes petrarquistas, já porque versejasse a pedido, por encomenda, por sainete, por desenfado, como era costume e de que dão sobejas provas os 'Cancioneiros'.»
Aquilino Ribeiro, "Luís de Camões - Fabuloso*Verdadeiro". Ensaio (1950)