quarta-feira, junho 07, 2023

a arte de começar

 «Agora, a noite começa cedo, demasiado cedo, na minha vida diferente. Tempos houve em que a chegada da noite representava a maior alegria. Com o aproximar da noite sentia-me renascer. Como se a claridade anterior tivesse fenecido e não existisse um fio do tempo que a tudo e todos ligasse: homens, mulheres, o resto da natureza, coisas e deuses. Quando se aproximava a noite, preparava-me para renascer. Quase me atreveria a dizer que não era apenas renascer. Era muito mais do que renascimento: era nascimento. Era nascer outra vez... pela primeira vez. Creio que a força que em tempos me defendeu dos acontecimentos da vida -- a força que me defendeu da fraqueza das pessoas e do seu carácter, a força que me redobrava a fé em cada vinte e quatro horas -- foi a de poder voltar a sair do ventre materno, ungido com toda a fé e toda a esperança de quem, inesperadamente chegado, sente que tem direito a tudo o que for possível e a tudo o que for imaginável.» Mário Máximo, O Heterónimo de Camões (2016)

4 comentários:

Manuel M Pinto disse...

«Neste ano da graça em que a guerra lavra aqui e além, feroz e sem respeitar património ou coisa sagrada, como velho, mulher ou criança; que a Europa está, pode dizer-se, em vigília de armas; que a defesa de povo para povo se estriba na vontade de ser e no potencial militar que não no direito, virado pela metamorfose diplomática a versicolor ou descaradíssima burla; que em cada nação se assiste ao apelo desesperado das energias mais profundas – talvez não seja descabido rememorar a lição que nos dá um núcleo de gregos, nossos avoengos da latinidade, em que se encontraram reunidas as virtudes que são condição de independência e autonomia dos povos: robustez física e gosto de viver, razão clara, enraizamento no solo natal e amor à liberdade.»
AQUILINO RIBEIRO, Tradução e Prefácio de "A RETIRADA DOS DEZ MIL (ANÁBASE)" de XENOFONTE, (1938)

R. disse...

Era a guerra...

Manuel M Pinto disse...

QUARTA-FEIRA, 23 DE SETEMBRO
«Estou farto de ver rostos macilentos e olhos alucinados e de adivinhar pungentíssimas tragédias por debaixo de fisionomias graves e valorosas. Tenho também, pejo de viver, válido e moço, a meio duma população de velhos, mulheres e crianças, e de arrastar por esta pobre e grande terra, coberta de luto, lavada de sangue e de lágrimas, a insolência da minha neutralidade. Espreitam-me ao passar, com suspeitosa interrogação. O estanqueiro que padece do peito diz-me com voz humilde, receoso de escorregar o freguês:
" – Ah oui, ah oui, vous n’allez pas, vous êtes étranger…"
Sou estrangeiro, mas sinto a guerra como qualquer alma que esteja em espasmo, suspensa aos ruídos que chegam dos campos de batalha, interessado não pelo êxito deste ou daquele beligerante, mas dolorido sobre os infelizes que matam e morrem. Sinto-a e, ao mesmo tempo que tenho náuseas do mundo, toda se confrange em dor inútil e impotente a minha humanidade. Vou-me embora, vou fugir do adorado Paris, de tudo o que esta terra mimosa dava à farta ao gosto que tenho pela vida. Vou para a aldeia, antípoda da capital excelsa, vegetar, dormir, esquecer, pondo apenas a cabeça de fora a saber se já terminou o horrendo ataque de epilepsia universal.»
Aquilino Ribeiro, "É A GUERRA-Diário", (Paris, 1914). Publicado em 1934.

R. disse...

A lucidez de quem não embandeirava em arco com a catástrofe que ainda mal se adivinhava.