Continuar: «Ora aqui tem, senhor Luciano -- dizia padre Tiago no Capítulo, desdobrando diante do arquitecto uma larga folha de papel coberta de garatujas -- Aqui tem a minha colheitas de "siglas".» Início do cap. IX, pp. 159-180 da minha edição.
A propósito das tais siglas que o padre epigrafista trouxe a Luciano, discorre-se sobre o significado possível dessas marcas de canteiro e a condição dos operários medievais. Destes para os da actualidade vai um pulo. É quando se sabe que os homens que trabalham no restauro da Sé são sindicalistas. Os cabelos em pé da maioria dos padres circunstantes, E então é chamado João Coutinho, um dos mestres pedreiros, que entabula um diálogo, primeiro com o cónego Rocha, depois com o liberal ou progressista padre Tiago.
Deve dizer-se que Coutinho representa esses sindicalistas cultivados, como era seu apanágio. Recorde-se que o quase mítico Manuel Joaquim de Sousa (1883-1944), secretário-geral da CGT, era sapateiro de profissão; essa mesma CGT que fundou para os trabalhadores o diário A Batalha, com um importante suplemento cultural, bem como a revista Renovação. O seu discurso, sempre sereno, pauta-se pelos pressupostos ideológicos do anarco-sindicalismo: federação de trabalhadores dos vários sectores, com vista à eclosão de uma greve geral que irá desencadear a revolução social, demolindo a sociedade iníqua do presente. E para isso o Estado terá de ser desmantelado, e com ele todos os aparelhos coercivos, sem falar na Santa Madre Igreja, o grande anestésico moral ao serviço da classe dominante; como, aliás, se infere das palavras do cónego, um ultramontano. O mesmo, porém, não sucede com o padre Tiago, cuja dialéctica se desloca para o terreno do operário. «-- A Igreja perfilha em absoluto as suas doutrinas, senhor João Coutinho.» -- apresentando o Messias como um socialista e revolucionário, e que, na verdade, diga-se, fez sempre parte do apostalado inconformista laico. Portanto, não é de estranhar que a arenga apologética do padre Tiago, ao apresentar a ideia de Igreja Universal como precursora do federalismo; e o próprio Jesus Cristo como primeiro socialista, «que disse melhor nalgumas parábolas o que Karl Marx definiu mal em indigestos tratados.» Mas não deixa de afirmar que o materialismo é pobre para a dimensão humana: «E depois?, sim, e depois? Que é que encontram no termo da sua jornada? O estéril negativismo, a monotonia do nada, a tristeza do fim. É inegável que os senhores planam acima da terra-a-terra vulgar, acima dos outros homens que refocilam como vermes nos mais abjectos egoísmos; mas isso é nada, isso é ainda rastejar, comparado a esse frémito duma alma crente batendo as asas para Deus.» E, com estocada de mestre, desafia: «Porque não tenta, pois, o grande voo? Teme a vertigem? Ofereço-lhe o meu braço, o braço forte da Igreja que não recusa nem se recusou a ninguém, jamais!» Curiosa é a reacção de Coutinho, após a demonstração de eloquência do padre epigrafista. Percebe que esta é uma outra estratégia de adaptação e sobrevivência da Igreja, «sinuosa», «elástica», adaptando-se a todos os regimes. E pergunta-se, apreensivo: «A Igreja, que escapara ao liberalismo, que sobrevivera às repúblicas, ia ainda surgir, como escalracho, nas searas vermelhas da sociedade futura?» Se a contenda cortês, porém oposta, entre estas duas personagens secundárias do romance, o operário sindicalista e o padre progressista terão algum remate, é o que se verá. Para já, continuo assombrado com este processo de conversão de Manuel Ribeiro, aparentemente assim, à vista de todos. O que me levará à leitura do livro de Gabriel Rui Silva, Manuel Ribeiro -- O Romance da Fé, para melhor descortinar o modo.
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