Início da apresentação do romance:
«Para as almas, não sei se diga demasiadamente positivas, se demasiadamente grosseiras, o celibato do sacerdócio não passa de uma condição, de uma fórmula social aplicada a certa classe de indivíduos cuja existência ela modifica vantajosamente por um lado e desfavoràvelmentepor outro.»
A questão do celibato dos padres interessa o Herculano (1810-1877) romancista, pelo drama que a Igreja, especialmente com o Concílio de Trento (1545-1563), impôs aos seus ministros: o sacrifício
«da irremediável solidão da alma» -- assim o escreve na apresentação de
Eurico, o Presbítero (1844).
No prefácio, o escritor deplora a misoginia subjacente àquele interdito, vendo a mulher como ideal salvífico e angelical de amor e bondade. A passagem seguinte dá bem a medida dessa idealidade romântica, em contraste com uma sordidez máscula que macula muito de "nós" (é seu o recurso à englobante primeira pessoa do plural):
«Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão apenas o prelúdio do tédio. Muitas vezes, na verdade, ela desce, arrastada por nós, ao charco imundo da extrema depravação moral; muitíssimas mais, porém, nos salva de nós mesmos e, pelo afecto e entusiasmo, nos impele a quanto há bom e generoso. Quem, ao menos uma vez, não creu na existência dos anjos revelados nos profundos vestígios dessa existência impressos num coração de mulher? E porque não seria ela na escala da criação um anel da cadeia dos entes, presa, de um lado, à humanidade pela fraqueza e pela morte e, do outro, aos espíritos puros pelo amor e pelo mistério? Porque não seria a mulher o intermédio entre o céu e a terra?»
Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero [1844], 40.ª ed., Lisboa, Livraria Bertrand, s.d., pp. III-VII.