Talvez a pior atitude, ou pelo menos a mais lamentável em relação ao Aborto Ortográfico seja a do não quero saber, em especial quando evidenciada por quem faz da língua profissão: estou a pensar em alguns plumitivos à esquerda, que parece terem medo que lhes chamem conservadores, retrógrados ou reaccionários se disserem o que parecem pensar sobre este pântano em que se tornou a ortografia, mas, prudentemente defendem ser uma maçada este barulho constante. É preciso dizer que vários deles foram compelidos a escrever com as novas regras nos meios de comunicação em que trabalham, daí o desinteresse que aparentam manifestar sobre o assunto. Mas não têm grande sorte no disfarce, porque vê-se-lhes bem a cautela.
O PCP, com a seriedade prática que se lhe reconhece, propõe a desvinculação. ; o PSD considera a posição do PCP extemporânea, talvez esperando regressar ao governo para voltar a não fazer nada; o CDS diz que não, mas que também; o BE diz zero à esquerda; o PS, pior do que as inanidades que um tipo qualquer para lá vocalizou, como partido no poder, não quer agitar as águas.
Com mais ou menos retórica, com mais ou menos convicções (ou falta delas), os quadros partidários ignoram olimpicamente os peticionários, como já haviam, a partir da sua pouca suficiência, ignorado Vitorino Magalhães Godinho, José Saramago, Vasco Graça Moura, para mencionar apenas pessoas que já morreram.
A actual situação da ortografia portuguesa encontra inúmeros paralelos na degradação do património histórico-cultural, ainda há pouco eloquentemente evidenciada por uma excelente reportagem da RTP (creio que no programa "Linha da Frente"). Essa peça jornalística mostra as fragilidades do país, com uma percentagem brutal de analfabetos (literais ou funcionais), que por sua vez é brutalizada por uma imprensa venal que serve à população o pasto que sabemos. Nesse aspecto, a Assembleia da República e os directórios partidários que lhe fornecem os quadros, são bem o espelho de um dos mais graves problemas estruturais que Portugal enfrenta: a falta de qualificações de grande parte da população, com evidentes reflexos na ausência de massa crítica nas chamadas elites, políticas e não só.
O Aborto Ortográfico não é politicamente mobilizador, não dá votos e está provavelmente capturado por interesses de algum sector editorial. Não é o AO, como não o é todo o património do país. Portanto, há que esperar por duas coisas: que os deputados do PS, PSD e CDS ganhem vergonha na cara e/ou mostrem que servem para alguma coisa para além deputismo de cu (levantar e sentar quando manda a direcção do grupo parlamentar); e, quanto ao BE, meter naquelas cabecinhas que cuidar da ortografia de uma língua não tem que ver com atitudes passadistas, conservadoras, reacionárias, mas antes com elementar bom senso. Aliás, a mítica lusofonia encobre, em muitos, casos, um neocolonialismo que certamente não subjaz à maioria dos que defendem a anulação do AO90, como é o meu caso.
em tempo: o artigo de Bagão Félix no Público deixa à mostra a mistela ortográfica que os parlamentares têm pejo em discutir
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