Lisboa,
1925. Durante as semanas em que o Repórter X enviava as suas
reportagens de Moscovo, o interesse dos leitores era tal, que a
revista ABC publicava
uma segunda edição e acrescentava na capa: “Revista Portuguesa na
Rússia”. Não se sabe se Reinaldo Ferreira, o homem por detrás do
‘X’, esteve de facto na pátria dos sovietes, os historiadores
dividem-se; no entanto, pela verosimilhança do relato, o mais famoso
enviado do jornalismo português sabia do que falava.Também
o jovem Hergé (1907-1983) nunca pusera os pés na pátria de Lénine,
mas o relato do recém-criado Tintin foi um enorme êxito popular.
Surgido no Petit Vingtième,
suplemento infantil do jornal católico Le
Vingtième Siècle, de Bruxelas, a partir de
Janeiro de 1929, Tintin no País dos Sovietes
conheceu uma edição em álbum, logo se esgotando; no entanto, só
em 1973 a editora Casterman faz sair uma nova edição, com Tintin
no Congo e Tintin na
América, sob a designação de «Archives
Hergé». Por um lado, o pendor antibolchevique não caía bem na
intelligentsia ocidental
complacente com o regime, com a designação de anticomunista
a revestir-se de anátema incómodo; por outro, a circunstância de
Hergé, simpatizante do movimento rexista belga, ser detido após a
libertação sob a acusação de colaboracionismo, também não
facilitara as coisas. No início da década de 1970, porém, Hergé
já era consensual, e Tintin uma personagem reconhecidamente
humanista. Além disso, o prestígio que a União Soviética
exercera na década de trinta, vinha ruindo paulatinamente, também
por obra de escritores como Koestler, Orwell e Soljenítsin.
O que há do Tintin
que todos amamos neste trabalho de juventude é o que veremos na
próxima semana.
***
O que
faz de Tintin uma
série tão apreciada ao longo das gerações, perguntávamos na
semana passada?
Desde
logo, as características da personagem, herói moderno com virtudes
antigas: Tintin é corajoso, é leal, é intrépido, é justo, é
compassivo e é casto. E deve acrescentar-se a mestria de Hergé: um
engenho aprimorado da narrativa, misturando o apelo da actualidade
com uma visão humanista e um apurado sentido do gag.
Milu é a perfeita personagem adjuvante, função que mais tarde
repartirá com o Capitão Haddock.
Todas
essas qualidades aparecem em Tintin no País
dos Sovietes. Sim, é um trabalho dum jovem,
mas o talento já se manifesta, apesar das puerilidades e da
influência do catolicismo reaccionário. Se as pranchas são
vulgares quanto à disposição das vinhetas, estão bem conseguidas
no dinamismo da composição, contribuindo com eficácia para o ritmo
vertiginoso da narrativa, nas suas 137 folhas: na segunda prancha
deparamos com o primeiro vilão e a primeira explosão; na terceira,
a primeira detenção; na quinta, a primeira cena de pancadaria e o
primeiro disfarce; à sexta, a primeira perseguição automóvel…
Obra de
propaganda, é verdade, mas se pesquisarmos os delírios
propagandísticos que se seguiram, veremos que Tintin
no País dos Sovietes é mesmo aquilo que é:
uma brincadeira de crianças.
Tintin no País
dos Sovietes
Texto e desenhos:
Hergé
Difusão Verbo,
Lisboa, 1999
Agosto de 2019