domingo, novembro 01, 2020

"o rei dos bosques" - «Eurico o Presbítero» (18)

 continuar: «A hora de amanhecer aproximava-se: o crepúsculo matutino alumiava frouxamente as margens do rio mal-assombrado, que corria turvo e caudal com as torrentes do inverno.» Cap. XVI, «O castro romano», pp. 219-240 da minha edição.

Capítulo onde nada e tudo acontece nas extremidades de um grosso tronco, ponte e passagem únicos sobre um precipício, no meio do qual corre o rio Sália; em que, febril e à beira da exaustão, Hermengarda, sente a atracção do abismo, o suicídio, essa «espécie de encanto fatal». Muito boas as passagens a propósito. Capítulo, ainda, em que o Cavaleiro Negro se desvela, Eurico, para ainda mais forte comoção da irmã de Pelágio.

Uma nota para o modo como o autor põe o discurso directo mas personagens populares: os guerreiros ou o barqueiro, analfabetos e rudes, falam como Eurico, uma linguagem articulada como se fossem instruídos; e nós, leitores do século XXI, aceitamo-lo com bonomia... E, claro, o que conta é o estilo impecável e vigoroso do grande Herculano. Eis um tronco, que será passagem e salvação:

«A ponte romana, porém, se outrora aí existira, haviam-na consumido as injúrias das estações. Em lugar dela, os habitantes daqueles desvios tinham tombado através do Sália um roble gigante, que nos seus dias seculares fora enredando as raízes nos seios da pedra, até irem beber no leito do rio. A árvore monstruosa derrubada por cima da corrente, caíra sobre o alcantil fronteiro e vivia de uma vegetação moribunda, que mal podia conservar através do cepo, arrancado quase inteiramente do solo. Calva e musgosa, apenas alguma vergôntea, que lhe rompia da enrugada epiderme na primavera para morrer no estio, dava sinal de que o rei dos bosques ainda não era inteiramente cadáver. Mas essa pouca vida bastava para que a obra rude dos bárbaros montanheses durasse por mais anos que a edificação dos antigos metatores ou engenheiros das legiões romanas.  [...]»


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