«Sim, mas a máquina a vapor é capaz de fazer isto?» Folheando uma revista de consultório -- um consultório especial, como desde logo somos informados --, o narrador depara-se com uma curiosidade que lhe mudaria a vida, uma revelação, no sentido místico da coisa: "A sanduíche foi inventada pelo Conde de Sanduíche." Essa invenção, com efeitos momentosos no quotidiano da história da humanidade, e o seu inventor, tornaram-se-lhe obsessivos. De tal modo que empreendeu uma biografia do aristocrata britânico, apresentando-nos uma cronologia sucinta, com particular enfoque no processo criativo do que viria a desembocar na prosaica sandes. Essa cronologia é hilariante, como se calcula, e revela não apenas o humor culto e irónico de Allen -- os tiques pretensiosos de determinados tipos sociais de classe média alta e cultivada são constantemente trazidos ao leitor, como de resto acontece em muitos dos seus filmes --, mas demonstram também a enorme cultura do autor, que dela faz uso desabusado, para nosso deleite quase perverso.
início: «Desfolhava eu uma revista enquanto esperava que o meu beagle Joseph K. saísse da sua sessão habitual de cinquenta minutos às terças-feiras com um analista de Park Avenue -- um veterinário junguiano que, a cinquenta dólares a sessão, trabalha corajosamente para o convencer que a papada não é uma desvantagem social -- quando topei com uma frase que captou a minha atenção como se fosse um aviso de um cheque sem cobertura.»
um parágrafo: «1750: Na Primavera exibe e demonstra três fatias consecutivas de presunto empilhadas umas sobre as outras; isto desperta algum interesse, sobretudo em círculos intelectuais, mas o público em geral permanece indiferente. Três fatias de pão umas por cima das outras aumentam-lhe a reputação e, apesar de a maturidade do estilo não ser ainda evidente, é convidado por Voltaire.»
Woody Allen, Para Acabar de Vez com a Cultura (ed. original, 1966), tradução de Jorge Leitão Ramos, 4.ª edição, Amadora, Livraria Bertrand, 1981, pp. 37-42.
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