Enviado pela Gradiva.
quinta-feira, novembro 30, 2023
o homem que queria saber tudo
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«E lá fora, indiferente à música fosca que os altifalantes embaciavam, aos lamentos viúvos do boi-cavalo, à jovialidade de pandeiretas cansadas dos excursionistas e ao pasmo da minha admiração comovida, o professor preto continuava a deslizar imóvel no rinque de patinagem debaixo das árvores com a majestade maravilhosa e insólita de um andor às arrecuas.» António Lobo Antunes, Os Cus de Judas (1979) / «Fraco de sangue, embora até ali sobranceiro por causa dos seus interesses nos caminhos-de-ferro, e na finança, o genro viera morrer-lhe a casa, numa fuga espantada, quando os depositantes fizeram a primeira corrida à caixa do banco de que era director e accionista.» Alves Redol, Barranco de Cegos (1961) / «O tempo estava morno, impregnado dessa quietude de natureza exaurida que se encontra num baque ondulante de folha, ou na água que corre inutilmente pela terra eriçada de canas donde a bandeira do milho foi cortada.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954)
terça-feira, novembro 28, 2023
a arte de começar
«Estava ali havia um bom pedaço vindo da esquina até defronte do prédio onde ela servia, enervado de esperar tantos minutos, pois já lhe assobiara o sinal combinado e ela ainda não aparecera, nem sequer à janela, aquietando-lhe a dúvida que começava a preocupá-lo.»
Alves Redol, Os Reinegros (c. 1944; póst., 1972)
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«Senhoras idosas vestidas de azul, com tabuleiros de bolos na barriga, ofereciam travesseiros mais poeirentos do que as suas bochechas folhadas, perseguidas pelo fastio pegajoso das moscas.» António Lobo Antunes, Os Cus de Judas (1979) / «Um homem pode andar por cá a vida toda e nunca se achar, se nasceu perdido.» José Saramago, Levantado do Chão (1980) / «Uma voz canta ao longe, na dispersão do entardecer.» Vergílio Ferreira, Para Sempre (1983)
segunda-feira, novembro 27, 2023
domingo, novembro 26, 2023
sexta-feira, novembro 24, 2023
o amor é forte como a morte
O snobismo em arte, então, é exasperante -- pobres criaturas que se atabafam a esconder aquilo de que realmente gostam em troca do alarde do que os outros esperam que gostem, que infelizes devem ser nessa vida clandestina que se impõem, Tom Waits pr'aqui, Robert Wyatt (será?) pr'acolá, mas o que lhes faz soltar o pèzinho é o Tony Carreira, a até levam a mãe ao piquenicão do Continente.
Teresa Radice e Stefano Turconi são uma dupla nos fumetti italianos e também na vida real. O leitor português pôde lê-los nas revistinhas Disney -- as Comix, de boa memória e péssima administração. São orgulhsos autores de histórias do Mickey, do Pato Donald, do Tio Patinhas, etc.; mas são também autores de BD para um público adulto. Sim, com um muito agradável erotismo, mas não é disso que estou a falar. Um livro que li há pouco, Il Porto Proibito -- inédito em Portugal, mas não em Espanha, nem em França -- como és belo, meu Portugal, citando Luís Cília --, uma história de marinharia e amores para além da morte, passada em navios, numa casa de órfãs e num bordel, merecedor de uma exegese que aqui não cabe.
Teresa Radice & Stefano Turconi, Il Porto Proibito
Bao Publishing, Milao, 2015
quinta-feira, novembro 23, 2023
101 contos
«A família veio por aí acima, entregue ao passo conformado daqueles heróicos jericos de Monsanto, que galgam e se firmam nos pavorosos declives dos caminhos.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949) / «Aí estava o seu melodrama ou a sua farsa, porque inconscientemente estabeleci-me na ideia de que o "facto", o "caso" daquele homem, devera ser grotesco, e exalar escárnio.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst., 1902) / «Trazia os braços fechados sobre numerosos ex-votos -- barcos de cera e pequenos quadros, ingénuas pinturas feitas sobre madeira.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954)
um interessante problema posto por Woody Allen no seu último filme, a natureza dos gestores de fundos de investimento
quarta-feira, novembro 22, 2023
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«A alma do gafanhoto, naquele dia, aproximou-nos dele.» Jorge de Sena, Sinais de Fogo (póst., 1979) / «Se você procurar bem na sua infância, Austin, há-de encontrar nela um gato sarnento que lhe roçou o lombo nas pernas cinquenta ou sessenta vezes, e isto, segundo Molero, marcou a sua vida.» Dinis Machado, O que Diz Molero (1977) / «Só de nostalgias faremos uma irmandade e um convento, Soror Mariana das cinco cartas.» Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas (1972)
terça-feira, novembro 21, 2023
a pobre pólis ou o país que não presta
estas tricas sobre quem disse o quê a quem entre Marcelo e Costa -- já não estava habituado a estas figuras;
a luta pela conquista do poder no PS entre Carneiro e Santos (o outro já se sabe o que é; este, aposto que vai ser outro cordeiro da Nato -- muito me admiraria que viesse dali uma noção do peso político simbólico e de influência internacional que um velho estado pode ter). Quanto a lítios e aeroportos, PNSantos também já deu provas do que é capaz;
a incompetência deste país de aparências. em que é preciso que um descendente de um judeu português seja feito refém para que a puta da papelada ande; e que uns luso-palestinos sejam mortos (uma mãe e duas crianças) para que os sobreviventes sejam evacuados para o Egipto no dia a seguir;
oh, e as azémolas do Ministério Público, não só pelas sucessivas anedotas dos tropeços nos factos, como para aquele ter mais olhos que barriga, que até parece ser de propósito. O que tem a ver o lítio do Barroso com o centro de dados de Sines? por que razão juntam dois processos diferentes? Por tratar-se do mesmo ministro? É que enquanto cidadão comum que ainda não percebeu porque foram dentro o influencer (!) e o autarca, continuo também sem perceber como não há sangue na história do lítio, com a tal empresa a ser constituída uns dias antes, história manhosa a fazer lembrar a compra dumas máscaras antifogo a uma empresa com sede num parque de campismo.
101 contos
«A minha curiosidade começou à ceia, quando eu desfazia o peito de uma galinha afogada em arroz branco, com fatias escarlates de paio -- e a criada, uma gorda e cheia de sardas, fazia espumar o vinho verde no copo, fazendo-o cair de alto de uma caneca vidrada: o homem estava defronte de mim, comendo tranquilamente a sua geleia: perguntei-lhe, com a boca cheia, o meu guardanapo de linho de Guimarães suspenso nos dedos -- se ele era de Vila Real.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst., 1902) / «Até então, eu encontrara sempre ali o maior silêncio, um abandono total, com esse sabor poético, fino, voejante, que parece destilado pelo ar e é próprio das ermidas que padroam as montanhas» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954) / «E desde que a comadre confessara a inutilidade dos seus préstimos, justificando-se com a criança atravessada no ventre, nada havia ali a fazer salvo a ciência dum doutor.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949)
segunda-feira, novembro 20, 2023
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«Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastando uma outra, a da igreja.» José Cardoso Pires, O Delfim (1968) / «Era em Setembro, e a casa, temporariamente habitada expulsava o seu carácter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e de passos que amarrotam folhelhos amontoados em todos os sobrados.» Agustina Bessa Luís, A Sibila (1954) / «Matara-o uma égua de pêlo-rato, desenfreada, ao atirar com ele de encontro a uma oliveira, na fúria dum galope.» Alves Redol, Barranco de Cegos (1961)
domingo, novembro 19, 2023
sábado, novembro 18, 2023
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«Apertava-se o coração do pobre pai, ao lembrar-se que os sóis ardentes de Julho ou os tufões regelados de Dezembro haviam de encontrar sem abrigo aquela débil criança, que mais se dissera nascida e criada em berços almofadados e sob cortinados de cambraia, do que no leito de pinho e na grosseira enxerga aldeã.» Júlio Dinis, As Pupilas do Senhor Reitor (1867)
quinta-feira, novembro 16, 2023
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«Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito de tal modo transfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado dele, foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de ir enquanto assim estivesse febril.» Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição (1862)
quarta-feira, novembro 15, 2023
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«Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça.» Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares (póst. 1982)
antologia improvável #527 - José-Emílio Nelson
OBRAR, CARMINA
Quem vê o vate gabar nas vielas do Bairro
Que come, Bodas de Canaã, assim por alto, uma e outra e mais, à grosa,
Como naquela versalhada latina (Carmina)
E que ainda na retrete revê as dedicatórias,
Sabe que com a idade, saciado, o alarve, acabará
Por melhor obrar, obrar melhor.
A Festa do Asno (2005)
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«As crianças ouviam os pais comentarem a novidade e achavam-na tão extraordinária como a morte.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)
terça-feira, novembro 14, 2023
Hamas e governo de Israel: nenhum tem desculpa
101 contos
«A alguns quilómetros, para lá dos barrocais retalhados nas gargantas dos penedos, uma camponesa gemia há quatro dias as dores de parto.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949) / «Dir-se-ia que o tempo parara do lado onde se trabalhava rudemente ao sol, muitas vezes de colaboração com a morte, para se activar apenas naquele onde se descansava à sombra tranquila dos pinheiros.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954) / «Existe no fundo de cada um de nós, é certo -- tão friamente educados que sejamos -- um resto de misticismo; basta às vezes uma paisagem soturna, o velho muro de um cemitério, um ermo ascético, as emolientes brancuras de um luar -- para que esse fundo místico suba, se alargue como um nevoeiro, encha a alma, a sensação e a ideia, e fique assim o mais matemático, ou o mais crítico, tão triste, tão visionário, tão idealista -- como um velho monge poeta.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst., 1902)
antologia improvável #526 - Helder Macedo
Brilhavam três sóis
no fundo da noite
julguei que era o espelho
as luzes do carro
brilhando no gelo
mas estavam lá
suspensos da noite
até que um caiu
o outro apagou
ficou só um sol
ficou só a lua
ficaste só tu
luzindo suspensa
no gelo da noite.
Viagem de Inverno (1994)
segunda-feira, novembro 13, 2023
domingo, novembro 12, 2023
viver a vida imaginada
«Ali vivera muito, muito de vida vivida, outro tanto, ou muito mais, de vida imaginada: tão violentamente imaginada que valia por ter vivido muitas vidas. Ali, na Toca do Lobo, pois passava de cem anos que assim era o nome da casa: a Toca do Lobo.»
Tomaz de Figueiredo, A Toca do Lobo (1947)
antologia improvável #525 - Manuel Matos Nunes
ÀS QUINTAS-FEIRAS
Leio um poeta do Facebook:
A tua pele cor de canela
com sabor a gengibre e cardamomo.
Gosto de canela nos pastéis de nata,
de gengibre em certos pratos,
mas não conheço o sabor do cardamomo.
Talvez o poeta do Facebook
me possa dizer. Vou perguntar-lhe
pelo Messenger e fico à espera da resposta.
Quanto à tua pele, minha amiga,
podes vir mostrá-la às quintas-feiras
e se quiseres ser gentil ficar para jantar.
Tudo do melhor possível, assim espero,
mas escusas de trazer
canela. gengibre ou cardamomo.
Nada adiantava ao nosso caso,
além de que, se necessário,
há uma mercearia aqui mesmo ao pé da porta.
Insolúvel Flautim (2023)
sábado, novembro 11, 2023
a crónica de Viriato Soromenho Marques, sem tirar nem pôr
«Democracia minguante», no Diário de Notícias de hoje.
caderninho - La Bruyère
«Há em arte um ponto de perfeição, como o há de excelência ou maturidade na natureza. Aquele que o sente e ama tem o gosto perfeito; aquele que o não sente e quer outra cousa, tem o gosto defeituoso. Há portanto bom gosto e mau gosto, e é com muita razão que se discutem os gostos.»
Os Caracteres (1687)
sexta-feira, novembro 10, 2023
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«A mãe, -- sentada ao pé da voltaire do avô, embrulhada no cachiné das noites compridas, com uma irritação a que o seu feitio romântico dava uma poesia desafinada, das pessoas que choram e riem sem ter de quê.» Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal (1944) / «Da cara magra pendiam-lhe duas bochechinhas disformes, os olhos paravam-se, raiados de sangue.» Manuel da Fonseca, Cerromaior (1943) / «Galgou o parapeito para seguir com a vista os vultos da mulher e do amigo, já mirrados pela distância, e que ao longo da estrada macadamizada se afastavam e à medida que se afastavam o deixavam mais só.» Joaquim Paço d'Arcos, Ana Paula (1938)
quinta-feira, novembro 09, 2023
caderninho - Pascal
«Há medida que se tem mais espírito, descobre-se que há mais homens originais. As pessoas vulgares não acham diferenças entre os homens.»
Pensamentos (1669)
quarta-feira, novembro 08, 2023
caderninho - La Rochefoucauld
«Aqueles que se dedicam demasiadamente às coisas pequenas, tornam-se geralmente incapazes das grandes.»
Máximas (1664)
jornalistas a sério
terça-feira, novembro 07, 2023
felizmente, para o tpi , em Gaza não há "deportações" de crianças
A máscara que envergaram na Ucrânia tem caído a muitos na Palestina. Não é preciso escrever mais; eles estão aí, impávidos.
caderninho - Marco Aurélio
«Tal como te parece o banho que tomas: óleo, suor, gordura, uma água turva, todas as espécies de sujidade: tal é qualquer parte da vida, tal é qualquer objecto dado.»
Pensamentos para Mim Próprio
segunda-feira, novembro 06, 2023
caderninho - Epicteto
«Se [...] considerares teu apenas o que é teu de facto, e o que não te pertence tal qual é, jamais alguém te há-de subjugar, ninguém te fará impedimento, a ninguém culparás, com ninguém reclamarás, absolutamente nada farás contra a tua vontade, nenhum inimigo arranjarás, ninguém te molestará; nada, enfim, te fará dano.»
A Arte de Viver (trad. Carlos de Jesus)
mais um grande texto de Carlos Matos Gomes
[...] Israel justificou a resistência de todos os palestinianos e que a apreciação da prática política do estado de Israel não pode ser feita através do sofisma de escolher o menor de dois males [...]
domingo, novembro 05, 2023
101 contos
«À direita, rompendo de entre um pinhal e com o seu verde contrastando, espaireciam casitas modernas, todas faceiras e coloridas, ao passo que, da banda oposta, aglomeravam-se as barracas dos pescadores, em forma de ilha sobre a areia e tão velhas, negras e roídas pelos anos como se fossem as mesmas que deixaram ali os primeiros habitantes do litoral.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954)
«E ou fosse um certo adormecimento cerebral produzido pelo rolar monótono da diligência, ou fosse a debilidade nervosa da fadiga, ou a influência da paisagem escarpada e chata sobre o côncavo silêncio nocturno, ou a opressão da electricidade que enchia as alturas, o facto é que eu -- que sou naturalmente positivo e realista -- tinha vindo tiranizado pela imaginação e pelas quimeras.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874; Contos, póst. 1902)
«O curandeiro pode ser insultado na sua banca de barbeiro ou no instante aflito duma sangria de urgência; mas a comadre, a velha suja, talhada em pedra enrugada, sem sorrisos nem lágrimas, que espreita a nossa entrada no mundo, tem fama e pão certos até ao fim dos tempos.» Fernando Namora, «História de um parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949)
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«E, provàvelmente, achando-a núbil e com ar fragrante de acácia em flor, rindo-se proferiu: / -- Não vá a tua desgraça mais longe, que agrados não te faltam para caçar homem.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926) / «Libélula inquieta no meio invariável, preso à nora de uma vida sempre igual, a notícia voou de boca em boca e, traspassando a aldeia, foi espalhar-se nas freguesias vizinhas.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928) / «Sabia que ele descobrira a minha espionagem -- e que posava: o que só complicava de hostilidade irónica o meu interesse.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934)
se eu decidisse pelo Hamas...
Libertava todos os reféns civis, crianças, mulheres, velhos, estrangeiros e mantinha prisioneiros os militares, prisioneiros de guerra e os homens em idade de combater.
Depois, faria uma exigência simples: a abertura duma conferência internacional para a constituição de dois estados, de acordo com as resoluções da ONU, sob os auspícios da mesma ONU e países terceiros que agora me escuso de enumerar.
Claro que isto contaria com a oposição do Netanyahu; mas os cidadãos de Israel têm de saber o que querem: se continuam a votar num patife (que aliás se está nas tintas para os reféns) e toda aquela tralha religiosa a quem ele procura agradar, ou se o fazem engavetar e deitam fora a chave da cela.
Quanto maior a destruição que ele está a provocar na Palestina, mais estreito o futuro de Israel, o que será sempre uma pena.
sábado, novembro 04, 2023
antologia improvável #524 - Fernando Namora
EVIDÊNCIA
Poderão dizer que minto,
mas no dia em que a gente sabe
que peso era este
a pesar nos braços,
e se acorda a infância
que neles dormia,
nesse dia começa-se a morrer
mais depressa
e a assistir à morte
em cada instante recomeçada.
A infância foge dos braços
mas o peso continua:
é a vida que pergunta quando acaba.
Fernando Namora, Marketing (1969)
sexta-feira, novembro 03, 2023
"não deviam ter começado"
Marcelo é sempre tão rápido que fala primeiro e pensa depois: "não deviam ter começado", disse ele ao embaixador palestino. Estava a referir-se a 1948? Não, a 7 de Outubro de 2023 -- e aí não começou nada.
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«Esse povo anémico, com os ossos esticando uma pele morena, esperava ainda de mim a prova indiscutível que decidisse da minha reputação: um parto, por exemplo, com o seu assombroso mistério, as suas horas ansiosas.» Fernando Namora, «História dum parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949)
«Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito do Senhor dos Navegantes, demorei-me a contemplar o mar vasto que dali se descortinava, então muito sereno, com suas velas graciosas e fugidias.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954)
«Os céus estavam pesados e sujos.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874; Contos, póst., 1902)
quinta-feira, novembro 02, 2023
antologia improvável #523 - Fernando Jorge Fabião
Sou um humilde vedor:
procuro os veios de água
o ouro iluminado
Novembro é um mês alto
penso como a infância
é uma ilha absoluta
Abro um caminho e escrevo: o sol do teu olhar
é uma candeia acesa na minha vida
Uma rosa pensativa
Nascente da Sede (2000)
nem terroristas nem nazis, antes criminosos mastins de guerra
Deus me livre de ter simpatia pelo Hamas, sucursal palestina da Irmandade Muçulmana. Chamar-lhes terroristas e compará-los ao Daesh é uma patranha comunicacional da quadrilha do Nethanyahu, que vale zero: exactamente o mesmo quando se aplica a designação, por exemplo ao PKK curdo, ou, se quisermos ir à história, quando o regime do Salazar qualificava como tais o MPLA, o PAIGC e a Frelimo. Ou até, voltando à Terra Santa, o Haganah, durante o protectorado britânico. (Não esquecer que Menachem Begin, primeiro-ministro de Israel no final da década de 1970 pelo mesmo Likud, tivera a cabeça a prémio por parte dos ingleses.) Portanto, os locutores quando, repetindo a estratégia sionista-americana, violando o seu dever de isenção como alegados jornalistas, qualificam desta forma o Hamas, só mostram o quão analfabetos são. Tal não significa que o Hamas não tenha cometido um acto terrorista ao atacar e raptar civis, um acto sem perdão, que nenhuma malfeitoria de Israel justifica. Percebe-se por que o fez, mas não se perdoa. Todos os alvos militares e do estado são legítimo, todos os ataques a civis são um crime ignominioso -- e isto serve para uns como para outros.
De igual modo, qualificar com ligeireza a sanha veterotestamentária israelita como nazi, é duma estupidez inqualificável, exactamente simétrica à abusiva utilização da estrela de David que os nazis impuseram aos judeus por parte do embaixador de Israel no ONU, como, aliás, denunciou o director do Yad Vashem. Esta corja não recua diante de nada.
Eu fui sempre contra à equiparação dos crimes do estalinismo aos do nazismo, crimes de natureza diferente cuja comparação só um asno ou um desonesto pode sustentar. O mesmo se passa com o massacre que Israel está a levar a cabo em Gaza: é um crime contra a Humanidade, e só isso é suficientemente grave, Mais uma vez: não é preciso chamar os nazis para dizer que a acção de Israel é um crime monstruoso. Perpetrado, de resto, por um ocupante. É preciso ser-se muito palerma para dizer que Israel está a defender-se: não: Israel está a retaliar e a punir os insurgentes que combatem a ocupação de território da Palestina. O 7 de Outubro não é mais do que um episódio sangrento de um processo que há um século começou torto e no qual nem as entidades árabes nem as israelitas têm as mãos limpas.
quarta-feira, novembro 01, 2023
"a cela dum solitário em recantinho do Céu" e outros caracteres móveis
«Alguém me acompanhava, alguém ou uma sombra, um como espectro semelhante à presença antecipada dum amigo que se espera -- e ainda não chegou.» José Régio, Jogo da Cabra Cega (1934) / «Ao seu lado, de pé, alta e morena, o rosto enrugado e as arrecadas quase roçando-lhe as faces, Amélia cismava, com os olhos fitos na mesa.» Ferreira de Castro, Emigrantes (1928) / «Aquele corpo era luxurioso e fascinante, dos tais que se tornariam, com a bênção da Santa Madre Igreja, ou até sem a bênção, que diabo, a cela dum solitário em recantinho do Céu.» Aquilino Ribeiro, Andam Faunos pelos Bosques (1926)
"quando há agências de comunicação que ‘amam’ jornalistas, e listam duas dezenas, então é porque há 200 que, escondidos, chafurdam na promiscuidade"
A frase é tirada de um editorial de Pedro Almeida Vieira, sobre o jornalismo de merda para leitores de quarto mundo num país grotesco.
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«Algumas vezes, a morte estava ali entre mim e eles, troçando da minha humildade apavorada, e nem assim me davam um estímulo; duros, invioláveis, lá lhes parecia que um bom médico não precisa de ajudas.» Fernando Namora, «História dum parto», Retalhos da Vida de um Médico (1949)
«Eu tinha descido da diligência, fatigado, esfomeado, tiritando num cobrejão de listras escarlates.» Eça de Queirós, «Singularidades de uma rapariga loura» (1874), Contos (póst., 1902)
«Para subir às montanhas, um livro vale mais do que um bordão -- e, com um livro sobre o braço, punha-me a caminho.» Ferreira de Castro, O Senhor dos Navegantes (1954)