A manga
japonesa era, até ao fim do século passado, uma excentricidade no
trabalho dos artistas de BD ocidentais. Hoje, pelo contrário, ganhou
o seu espaço, e muitos são os desenhadores da Europa e das Américas
que adoptaram esse estilo peculiar, a que os leitores mais
tradicionalistas vão torcendo o nariz: aquelas pupilas anormalmente
dilatadas ou ‘buracos’ no lugar das bocas são por vezes
desagradáveis. É verdade que grande parte da manga se publica no
âmbito da produção massificada, como, de resto, os comics
norte-americanos; nas mãos de grandes autores, porém, e com um
lastro secular remontando ao Japão medieval, a manga de qualidade
compara com o melhor que se faz em qualquer latitude.O
Cão que Guarda as Estrelas (2008), da
autoria de Takashi Murakami não participa da categoria da
obra-prima, mas bem merece uma leitura. Fala-nos de um homem
solitário e doente, um peso para a mulher, que entretanto pede o
divórcio; e conta-nos também do cão dessa família e narrador
desta história, chamado «Happy», prenda para a criança da casa,
que, uma vez chegada à adolescência, deixa de achar graça ao
bicho. Dono e cão, dois abandonados, empreendem então uma longa
viagem de automóvel pela costa japonesa, em busca de uma solução
para uma existência a partir de agora sem grandes saídas, salvo
talvez no país da infância, ou seja, a terra natal do dono – “sou
da infância como se é de um país”, escreveu Antoine de
Saint-Eupéry, já piloto de guerra, não muito antes de juntar-se
definitivamente ao Principezinho...
Só que o leitor é confrontado desde a primeira prancha com a
descoberta macabra pela polícia de um carro abandonado num campo de
girassóis, onde jazem os corpos de um homem e um cão. Esta
informação prévia não retira nenhum interesse à história, pelo
contrário: o aliciante é o confronto com o caminho realizado pelas
duas personagens, os encontros e as peripécias da viagem, até ao
seu desenlace.
”O cão que guarda
[olha] as estrelas” é uma expressão popular no Japão,
correspondente ao nosso “fazer castelos no ar”, significando a
aspiração utópica a algo irrealizável; expressão com que o
pessimista Takashi Murakami nos oferece esta crónica de uma
felicidade perdida e nunca reencontrada.
Uma
segunda narrativa, intitulada Girassóis,
com outras personagens (cão e dono), também elas solitárias,
acrescenta alguma poesia à situação inicial, correndo, porém, o
risco da redundância. Fica, no entanto, vincada a intenção do
autor, trabalhada em torno da importância dos animais de estimação
nas nossas vidas cada vez mais atomizadas, e de como eles acabam por
funcionar como um último vínculo na desesperança do abandono e da
solidão.
Uma nota final para
uma característica editorial, que se normaliza à medida que a
publicação de BD japonesa vai ganhando mercado: esta manga lê-se
de acordo com o padrão original, ou seja, da direita para a
esquerda, iniciando-se a leitura pelo que seria a contracapa nas
edições ocidentais, o mesmo sucedendo com a disposição das
vinhetas em cada página.
O
Cão que Guarda as Estrelas
texto
e desenho: Takashi Murakami
edição:
JBC Portugal, Lisboa, 2018
(Agosto de 2019)