Durante as minhas férias, Luís Filipe Thomaz publicou um artigo sobre a questão dos Descobrimentos. Como escrevera que era a sua visão do problema a que me interessava, deixo aqui o registo.
Historiador, e não um sócio-coiso em estudos pós-coloniais -- não devo errar se disser tratar-se do maior historiador português vivo daquele período. Aliás, basta comparar o seu texto com a indigência pateta do abaixo-assinado, ou lá o que é, para ver a desproporção da qualidade e a diferente natureza de entre historiografia e activismo.
Repito que não me pronuncio sobre a pertinência de um museu (mas digo já que não sou a favor, e estou, neste particular, mais próximo da posição de João Paulo Oliveira e Costa), mas apenas sobre o acerto da palavra Descobrimentos, que remeto para aqui, verificando, com agrado, que temos posições semelhantes quanto ao fundo da questão, ressalvando as óbvias distâncias do cabedal de cada um no que respeita à História da Expansão e Descobrimentos Portugueses.
Mais do que o atrevimento da ignorância, irrita-me o sectarismo ideológico e pior, a glossolalia impostora, a vassalagem aos bonzos e o espírito de manada.
11 comentários:
É pena que as pessoas decidam fazer de conta que os outros são ignorantes e escrevam coisas que podem ser classificadas como argumentos do homem-da-palha.
Às descobertas na arte de marear de que se fala no artigo que cita acrescem por exemplo as de um Garcia da Orta na área da farmacologia e da botânica ou as de Pedro Nunes na área da matemática (notável a sua discussão das linhas de rumo e da sua diferença em relação aos círculos máximos, as geodésicas da esfera), o mapeamento geográfico do Brasil e isto só para citar de memória...
Nunes não exagerou quando disse, creio, que o principal feito dos navegadores tinha sido a descoberta de novo céu e novas estrelas.
Sucede que dizer apenas, em tão extenso artigo, 'acarretaram, é certo, sofrimentos para muita gente, através de efeitos laterais que vão da intensificação da escravatura à difusão da sífilis americana no Velho Mundo, passando pela da varíola no Novo [Mundo].', parece-me muito pouco.
A estimativa relativa ao número de mortos derivados da conquista (termo que se procurou encobrir com descoberta no tempo dos Filipes) das Américas cifra-se nos vários milhões. Acrescem as vítimas da transformação da escravatura numa atividade industrial (uma percentagem significativa dos cativos não sobreviveria à viagem entre a África e a América, desde logo, pelo que falar de 'intensificação' parece-me pouco).
O Progresso Científico e Tecnológico acarretou sempre (basta pensar nas pessoas vítimas das más condições de trabalho e de segurança, da poluição ou da simples exploração durante a Revolução Industrial, por exemplo) um cortejo de sacrificados.
O que se pretende antes de tudo com este movimento é o reconhecimento deste facto simples e o dever de memória para com as vítimas.
E, se calhar, que nos lembrássemos que tal é válido também para o Futuro e, se não queremos trocar a faca de metal pela de pedra lascada, talvez fosse uma boa ideia recorrer aos ensinamentos do Passado em termos da capacidade humana para o disparate para julgarmos os passos que deveremos dar daqui para a frente... No fundo, é isso que dizem os Ecologistas, que são os verdadeiros conservadores...
Se um museu das Descobertas ou dos Descobrimentos refletir tais verdades simples, sou o primeiro a assinar por baixo. Só que está mesmo a ver o que dirá o pessoal lá pelas bandas da Ti Cristas...
Pois é, meu caro. A melhor forma de desvirtuar uma discussão é misturar alhos com bugalhos, que é o que se faz quando se mistura conhecimento histórico com ideologia, seja ela qual for.
Ora, eu como quero fugir dela, o que é difícil, bem sei, não aceito ser limitado nem por visões patriotinheiras nem pelo activismo da última moda. Faz tanto sentido discutir a escravatura a propósito dos Descobrimentos como a prioridade deste ou daquele estado ou navegador na chegada a determinada zona do globo. Não é para mim o caso numa discussão destas, em que se debate (eu pelo menos foi o que quis debater) a adequação duma palavra a um determinado momento histórico.
É por isso que tendo algumas ideias gerais sobre a escravatura (e até uma sensibilidade especial), não caio nas emboscadas dos talibãs. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como diria o Fernão Lopes.
Ah! e 100% pelo dever de memória. Aliás ao longo dos 13 anos de existência deste blogue, não tenho pugnado por outra coisa.
Não o estou a acusar a si de ser contra o dever de memória, já que, como bem diz, não tem pugnado por outra coisa e eu sou testemunha disso pelo menos desde que acompanho este blogue há já uns anos. Só para que isto fique claro.
Sucede que eu estou a pôr em causa, isso sim, o artigo que cita, que é um artigo de opinião num jornal. Talvez, para ser verdadeiramente justo, deva esperar pelo artigo da Brotéria, mas se quando o ler verificar que fui injusto, saberei dar a mão à palmatória.
Se o autor, que é, como diz, um conceituado Historiador, queria trazer a questão das consequências negativas dos Descobrimentos à colação, então teria que fazer mais do que as despachar da maneira pobre como despachou (na minha modesta opinião, claro).
A discussão que ele fez sobre a marinharia e artes náuticas é muito interessante, em particular para alguém de formação matemática, como eu, mas o que procura, parece-me, é limitar o uso da palavra 'Descobrimentos' a um conjunto de descobertas científicas e tecnológicas notáveis (falo de científico no sentido lato, onde se inclui também a Geografia, Física e Humana e até as Letras, evidentemente), mas que de modo nenhum esgotam o sentido dessa palavra.
O que a mim me ensinaram, e tive a sorte de já ter sido educado em Democracia, foi que o momento a que o Ricardo se refere incorpora todas as facetas de que falamos aqui várias vezes, incluindo o projeto de Conquista que os Descobrimentos manifestamente foram e que ocupa o lugar central.
Parece-me óbvio que as ditas descobertas científicas foram colocadas ao serviço desse projeto de Expansão Marítima, um nome muito mais honesto para o museu, mas que não pode ser utilizado, não fora o pobre do Medina ser acusado de defender o neocolonialismo.
Por isso, acho que faz todo o sentido trazer a escravatura, ou o genocídio ameríndio nas Américas, ou a destruição dos templos budistas no atual Sri Lanka pelos Portugueses, para esta discussão.
Se quisermos ficar pela mera definição de uma palavra cujo significado não é neutro, como referi acima (o que tornaria isto mais uma discussão de Lexicografia do que de História), convenhamos que, mesmo assim, temos pano para mangas...
Sim, creio que o melhor será esperar pelo artigo na Brotéria. uma vez que este escrito é uma incursão na polémica em curso.
É evidente que a história completa faz-se a partir dos diversos prismas. O que ele pretende é justificar a validade da palavra -- que é o que a mim me interessa -- e fá-lo muito melhor do que eu -- melhor fora.
Quanto à "Expansão" creio que já abordei a questão no primeiro post. Trata-se de dois fenómenos -- expansão e descobrimentos -- que a partir de certa altura se confundem e interpenetram: os descobrimentos são uma decorrência da nossa própria situação geográfica que sempre nos impeliu para o mar; a expansão é um projecto político que se inicia em 1415, com a conquista de Ceuta, e que tem causas políticas, económicas e religiosas. Por isso defendo que a esse período a designação mais apropriada para esse período -- que, para mim, termina no século XVI -- é Descobrimentos e Expansão.
E mesmo com esta delimitação temporal, que é controversa, já temos massacres e crimes de monta para nos entretermos.
Sim, e já agora, dou a mão à palmatória noutra coisa, só depois li o artigo de Oliveira e Costa e sinto-me muito mais próximo da sua posição, embora ele diga coisas que creio estarem erradas, como a questão da comparação do genocídio dos Índios Norte-Americanos com aquilo que se passou nas colónias espanholas e no Brasil.
A referência que tenho é antiga, o prefácio de Hans Magnus Erzensberger á 'Breve Relação' de Las Casas, mas ele cita uma mortandade muito maior na América Latina do que depois nos EUA, devido, penso eu, ao facto de que estes eram muito mais fracamente povoados antes da chegada dos Europeus.
Aliás, a situação é algo diferente no Canadá, os Britânicos e depois os Canadianos respeitaram os tratados assinados com as Nações Índias aquando da Guerra de Independência dos EUA (ou da guerra de 1812, já não sei bem), em troca da sua fidelidade para com a Coroa... Há muito postei um artigo onde se defendia, de forma algo provocatória e com humor, que os EUA estariam melhor como domínio de sua Graciosa Majestade, a Rainha Isabel II, por muitas razões incluindo essa...
O que eu quero dizer é que, polémica sobre o uso desta palavra à parte, não se pode falar de Descobrimentos ou de Expansão (identifique-se uma coisa com a outra, ou não) sem evocar também as motivações de conquista.
Prefiro, como o Ricardo, que o dinheiro que se iria despender na construção de um museu (ou adaptação de um espaço) seja gasto a apoiar o que já existe, em particular o que está a cair.
Mas também quero que os Descobrimentos continuem a ser ensinados e estudados (e melhor do que são, se possível, embora não tenha grandes esperanças na penúria presente em que vivem as Universidades).
Só que, como Oliveira Costa lembra, só se pode discuti-los com os outros, se se reconhecer o seu papel, em particular o de vítimas quando for o caso, mas também o de agentes.
Não são os bons sentimentos, é simplesmente a verdade histórica que deve vir ao de cima.
E se isso por acaso nos ajuda na tarefa de construir um País mais inclusivo, pois tanto melhor...
Não, claro que não: não se pode falar nos Descobrimentos sem falar em todas as motivações, e creio que tal não se faz. Aliás, na comunidade historiográfica tudo isto tem barbas, embora existam visões diferentes, felizmente.
E não só: n'A Batalha, em 1925, o Ferreira de Castro escrevia, a propósito dos Gamas e dos Albuquerques, mas também de Cortez e Pizarro: «Dizer que Vasco da Gama foi um herói -- e não acrescentar que foi um herói do massacre, era mentir. [...] / O "heroísmo" que outrora os levou à glória, aos 'pantheons' e às estátuas das praças públicas, levá-los-ia hohe às celas da penitenciária.» O Castro escrevia ainda no tempo da I República que, neste aspecto, não diferia nem da Monarquia nem do Estado Novo.
O que é mais engraçado é que a 'conquista' era-nos ensinada como virtude da 'raça'. Ora, não era virtude nem defeito, era assim mesmo, e só temos de situar a coisa no tempo e no lugar, enquadrando-a no tempo.
N'«Os Lusíadas», de que ninguém fala a este respeito, os árabes e outros muçulmanos são tratados de "torpe ismaelita" para baixo. Era o Camões especialmente maligno ou perverso? Não era, era um homem como os outros, embora enormemente culto e genialmente talentoso; mas era também um homem do século XVI, que não hesitava em recorrer ao lugar-comum do tempo.
Claro, não é possível julgar os homens desse tempo pela bitola do nosso. Admiro a verbe e as contribuições de um Disraeli ou de um Churchill sem me esquecer que eram pessoas racistas, e viveram bem mais próximo de nós.
Mas cabe lembrar que a crítica da Conquista foi feita nesses tempos por pessoas como o já citado de Las Casas, Francisco de Vitoria ou o nosso Padre António Vieira, com base nos preceitos da ética cristã.
Uma das razões pelas quais eu, que tenho uma boa costela anti-clerical, admiro ainda assim a ICAR é que sei que sem as ideias de universalidade da moral e da igualdade dos Homens perante Deus não teria existido o Iluminismo, as Revoluções Americana e a Francesa ou a DUDH.
Depois, há outra questão que coloca, que é a questão da coragem. Esta é uma virtude moralmente neutra, e um herói não tem que ser um santo, longe disso (andamos todos iludidos com os códigos de cavalaria cristã, quando os ditos cavaleiros eram uns arruaceiros).
Discordo até do que diz Castro até certo ponto. Existem claro hoje leis de guerra que não existiam nos tempos do Gama, mas é muito mais difícil fazê-las cumprir do que durante o tempo de paz...
Tem toda a razão quanto ao substrato universalista do cristianismo. Claro que a as Luzes e as Revoluções tiveram de ser feitas contra a Igreja, potência terrena e muito pouco cristã, que deu nesta coisa repelente que vemos hoje, pese embora os homens sinceros que ainda existam lá pelo antro.
Sou bem mais otimista do que o Ricardo e nem preciso que a Igreja abra o sacerdócio às mulheres, a comunhão aos recasados e seja mais tolerante com os homossexuais do que já é (nem isso me diz respeito, já que deixei de ser católico há muito). Basta que cumpra os preceitos do Vaticano II (talvez seja preciso um III para isso acontecer) e sobretudo que não acolite pedófilos e ao invés os denuncie às autoridades civis enquanto é tempo...
Também não quero saber, por mim até podem voltar à missa em latim.
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