Mantendo a posição de princípio que aqui expus, gostaria de acrescentar o seguinte: A circunstância de ter uma bisavó brasileira mulata (logo, descendente de escravos), a avó Ida, sempre me divertiu e não perco ocasião para a propalar. Ainda ontem ao jantar, o meu pai, que já conta 87, me falava das suas bisavós, que ainda teve a sorte de conhecer, o que na sua geração não era comum. A uma, os bisnetos, todos miúdos, chamavam 'Avó Velha' (distinguindo-a, portanto da avó (mais) nova; quanto à outra bisavó, o meu pai, os irmãos e os primos recorriam dois nicks: ou 'Avó Pequenina', distinguindo-a da filha, que era muito alta, ou então 'Avó Preta' (viva a santa inocência das crianças!).
Este parágrafo memorialístico para significar que embora os traços genéticos dessas minhas boas antepassadas pouco se tenham manifestado visivelmente em mim, a não ser no cabelo encaracolado (o meu pai tem a pele claríssima e olhos azuis da mãe), e portanto nunca ter experimentado qualquer tipo de discriminação, sempre tive uma sensibilidade especial para essas questões, que, no entanto (convém esclarecer) não advém desse meu património histórico pessoal bastante acarinhado por mim, mas de uma consciência ética ao nível do mais básico senso-comum, em primeiro lugar, e depois pelo facto singelo da inexistência actual de raças humanas -- e digo actual, porque já existiu, de facto, uma outra raça de homem, morfologicamente diferente, o célebre Homem de Neanderthal, que, no entanto, permanece nos nossos genes (parece que em quantidades ínfimas, mas variáveis de indivíduo para indivíduo), por cruzamento com o Sapiens Sapiens, vingando estes e extinguindo-se os outros, menos adaptados aos desafios do meio envolvente. Além disso, sempre olhei para um racista no nosso tempo como um pobre diabo e atrasado mental, portanto sem categoria de cidade (já a xenofobia é um perigoso compósito de medo e pulhice egoísta).
Pondo-me na pele de um negro das Américas -- em princípio, menos difícil para mim do que para a loiríssima e parece que sacerdotiza J. K. Rowling, rapariga da minha idade --, concedo, compreendo e aceito que possa haver alguma amargura, atendendo aos terríveis antecedentes da escravatura. Mas também sei que qualquer homem ou mulher negros com discernimento e sem estarem gafados do tifo activista, estabelecem todas as diferenças entre um cartoon sobre uma protagonista global que se portou objectivamente mal e um propósito racista do cartoonista, embora também aceite que a forma como a oponente está representada, que na altura não valorizei, possa ser dúbia, e originar outra interpretação, embora, quanto a mim, já um pouco forçada
No entanto, trata-se sempre de questões -- quer a descriminação quer a liberdade --, demasiado importantes para que os tontinhos dos activismos vários fiquem sem contraditório.
(Ainda para o lado da Serena: no ténis, sou do Benfica, ou seja: não percebo nada da modalidade, nem quero perceber. Aliás, nunca pratiquei desporto, que é coisa que me aborrece. Mas se é verdade o que dizem sobre a existência de sexismo no ténis, então a fúria dela poderia ter razão de ser -- se o árbito não estivesse certo, como dizem que esteve --, o que não invalida, antes pelo contrário, a pertinência e o valor do cartoon do australiano Mark Knight.)
19 comentários:
Há uma altura em qualquer carreira que, perdendo-se as faculdades de a continuar, se deve acalmar ou abandonar ou, então, aprender a perder, que é o caso desta adulta, mãe de filha, que o grita a plenos pulmões. Para se ensinar bem, tem que se aprender de tudo, até a perder e, mais importante ainda, a rir de nós próprios, coisa que os seus apoiantes nas eternas redes sociais não o sabem fazer.
Bom dia
Ora bem!, sem tirar nem pôr...
Acho que faz mal em persistir em apreciar o cartoon por si, como se o racismo institucional que existe nos EUA e no resto do mundo (a Austrália pelos vistos não é exatamente um País com um Passado limpo neste matéria) e a carga histórica não tivessem uma palavra a dizer neste debate. São custos de contexto, para tomar emprestada uma expressão vinda da Economia.
A defesa da liberdade de expressão implica justamente a defesa do direito de sermos ofendidos. E com ela, a defesa do direito de nos sentirmos ofendidos e de o dizer. Chamar a uma coisa tão simples como isto 'correção política' é, na minha modesta opinião, uma tentativa de desvalorizar quem esse protesto.
Não me cabe a mim defender os negros nesta matéria, aliás o Gary Younge fê-lo com uma eloquência que eu não seria capaz de imitar, no Guardian: https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/sep/13/serena-williams-cartoon-racism-censorship-mark-knight-herald-sun.
Não tenho, contrariamente a si, ascendência africana, e devo confessar aliás que cresci num ambiente escolar francamente racista (onde não havia pessoas de cor) e que isso certamente teve consequências na minha maneira de pensar. Comecei a aperceber-me delas quando emigrei e travei amizade com pessoas de outros grupos étnicos...
Limito-me a chamar a atenção para um princípio que é válido nesta polémica como em tantas outras, ou seja, o exercício da liberdade de expressão tem consequências. O meu caro poderá argumentar que a censura moral de quem desenha este cartoon, ou os de Maomé, ou os do Charlie Hebdo pode ajudar a criar um ambiente que leve à violência.
Porventura, sucede que tal como eu fiz uma generalização injusta relativamente aos apreciadores da festa brava (mau grado as cenas de violência quando há protestos serem recorrentes, mas nem isso invalida o facto de que a maioria devem ser pessoas obedientes à Lei), estar-se-à sempre a fazer também uma generalização injusta em relação aos muçulmanos ou cristãos ou negros ou homossexuais ou às mulheres que se sentem ofendidos e exercem o seu mero direito a sentirem-se ofendidos.
Todos nós fazemos alguma forma de auto-censura quando nos dirigimos aos outros. Chama-se boa educação, de facto. A sátira permite transgredir esses limites, só que fazer pouco de um homem branco mal-educado (e abertamente racista) como Trump não é o mesmo que fazer pouco de Serena Williams, por muito mal-educada que ela tenha sido com o árbitro português (e foi, até o ameaçou).
Finalmente, espero que não tenha lido o que eu lhe disse como uma acusação de racismo porque nunca sugeri tal coisa. O que está aqui em causa é a mera apreciação de um desenho e de se ele deve ser olhado por si, ou se o contexto interessa. E eu entendo que interessa.
P.S. Tenciono ainda responder às questões ligadas ao aquecimento global, mas não tive ainda tempo para visionar o tal vídeo, pelo que o Manuel Rocha terá que esperar...
Meu caro, vou ler o texto logo que possa, mas rapidamente e por partes:
Você parte do princípio que o cartoon é racista, eu não. Até porque não é a mesma coisa ser-se australiano o norte-americano. E quanto a crimes várias sobre minorias, talvez só a Costa Rica ou o Butão e poucos mais estejam isentos desse historial.
Independentemente da questão da liberdade de expressão, que concordo que não deve ser absoluta quando se trate de um atentado à dignidade humana (por exemplo, representar um negro de uma forma simiesca), como ultrapassa você a possibilidade, que considero fundamental, de se satirizar o terrorismo islâmico ou o comportamento de determinada figura pertencente a uma minoria? Como vai você caricaturar a Serena Williams? Ou acha que ela não deve ser alvo de caricatura por ser negra? Não será isso um paternalismo ao invés?
Estava a responder-lhe a lembrar-me dos cartoons do velho Sam, da séria «Ai, Jesus!», impensáveis durante o Estado Novo, hoje poderiam ser alvo do fundamentalismo cristão, ou daqueles que acham que com deus não se brinca. https://homenagemasam.blogs.sapo.pt/1569.html
Sim, exatamente, entendo que o cartoon é racista e que ultrapassa tudo o que o bom gosto e a sensibilidade permitem, olhando para a História, para as representações dos negros no Passado e também para a posição deles na atual sociedade americana.
Estão pessoas provenientes de minorias para além da possibilidade de sátira? Certamente que não, mas há que fazê-lo com pinças, atendendo ao que disse acima.
Acho que este cartoon não obedece a esse teste. Como considero que representar o profeta com uma bomba na cabeça também não o faz.
Francamente, não sei responder a essa pergunta que me faz de modo genérico. Nem tenho que o fazer, felizmente. Falamos de casos particulares...
Entenda-me, sou a favor do direito à má educação. Mas quem é mal-educado não pode depois queixar-se de censura, só porque é criticado...
P.S. No comentário acima queria dizer 'quem faz esse protesto'.
Pois, não concordo consigo, nem sei como se satiriza com pinças -- desde que, reafirmo, não se trate duma incitação ao ódio e um atentado à dignidade humana (o que escrevi acima sobre os negros pode ser aplicado aos judeus, por exemplo, que neste aspecto também têm muito que contar).
Satirizar com pinças implica, desde logo, saber alguma coisa de História contrariamente ao que alegou Mark Knight (ou desculpou-se com isso o que, como você disse, revela falta de coragem se é de facto o caso, o que é pior ainda).
O cartoon não incita obviamente ao ódio, simplesmente recupera velhos estereótipos que deveriam estar permanentemente confinados ao caixote do lixo da infâmia...
Lá está, é a sua interpretação, que não perfilho. E se o autor disse que não houve essa intenção, para mim é quanto basta, sob pena de estar a fazer figura de juiz ou polícia. E acho que está a exigir demasiado aos cartoonistas. Se até historiadores fazem triste figura, como se viu a propósito da questão dos Descobrimentos... Que sejam argutos e tenham piada, chega-me.
Presumo que o estereótipo de que fala é o da representação que se fazia até há setenta anos dos negros como crianças grandes. Parece-me um fraco argumento e outra vez paternalista, que resulta num amesquinhamento insuportável dos negros, como se estes fossem umas flores de estufa sem discernimento ou poder de encaixe. Até porque a SW comportou-se como uma criança -- tal como sucedia com o McEnroe --; e portanto, desse ponto de vista, não pode ser satirizada porque em tempos o mainstream wasp os representava daquela maneira. Ora esse tipo de censura não pode ser tolerado.
Você considera que basta acreditar que a intenção do caricaturista não é recuperar velhos estereótipos, simplesmente satirizar, eu acho que ele tem obrigação de saber o suficiente para não os recuperar, mesmo que de forma não intencional.
Isto a acreditarmos nele, bem entendido, coisa em que eu sou agnóstico, já que não conheço o homem de lado nenhum. Pode tratar-se, como você disse antes, de mera cobardia (playing dumb).
Não vejo nenhuma argúcia ou sequer piada (mas isso é uma questão de gosto) neste cartoon. É absolutamente básico. Quer um cartoonista arguto? Veja o Martin Rowson no Guardian, por exemplo.
Quanto ao paternalismo, aconselho-lhe que leia Gary Younge. Não me parece que ele possa ser acusado de tal coisa.
Quanto a mim, vivo bem com essa acusação. Infelizmente, parece-me impossível participar num debate sobre estas questões sem que mais tarde ou mais cedo questionem as nossas motivações... Não vou estar a perder tempo a defender-me nessa matéria.
De certa forma, é também a motivação do cartoonista que é questionada, claro. Só que ele até pode ser o maior ingénuo do Mundo e terá ainda assim metido uma grande argolada...
Eu também não vejo particular argúcia, mas sim mero sentido de oportunidade, oportunista, se quiser. E depois? A questão não é a qualidade do cartoon, embora a caricatura isolada me pareça muito boa.
Equivoca-se, não o acusei de nada. Digo que a posição que defende menoriza os negros, em minha opinião, o que é diferente de acusá-lo do que quer que seja.
O artigo do Younge, fui vê-lo agora, é patético e sonso; sonso, porque diz que não defende a censura, mas não faz outra coisa, piamente, é claro; patético, logo a abrir com a imagem de Serena Williams em jeito de Nossa Senhora e porque verbera que o cartoonista tenha sublinhado os traços negróides, o que é uma idiotice. Talvez o tipo de "caricatura" legítima para ele seja isto --https://www.deviantart.com/marcustheartist/art/Serena-Serena-Williams-Cartoon-622574136 -- uma Serena tipo princesa Disney.
Não me acusa de nada, e diz que a minha posição é paternalista? Acusa-me de paternalismo, bem entendido. Ou chama-me paternalista, se quiser...
Younge defende o direito à indignação que é uma coisa que eu também defendo. Se não gosto de uma coisa e a acho racista, digo-o. E se os outros acham que eu quero com isso calar alguém, isso é um problema deles. Desde logo, pergunto-me como diabo poderia fazê-lo. Não defendo que se passe uma Lei que impeça as pessoas de serem mal-educadas. Ou será que o meu exercício da liberdade de expressão é intimidatório? Também não vejo bem como...
Parece-me é a mim que aqueles que não querem arcar com as consequências do seu exercício da liberdade de expressão é que querem calar os outros. Incomoda-os que não gostem daquilo que dizem.
Perguntei-lhe se não seria, não fui assim tão taxativo... Até porque, se bem se recorda, fiz esta adenda tentando colocar-me na pele do Outro.
Não é a sua opinião isolada, são os ditames grupais, ou você acha toda a gente diz de ânimo leve o que pensa? Não só não diz, como há uma percentagem que calculo seja elevada de gente que diz defender uma coisa e privadamente defende outra. Estes, em condições normais, são desprezíveis, e não merecem que nos preocupemos com eles.
Quanto ao que diz no último parágrafo, tal aplica-se a qualquer posição. Mas eu prefiro a veemência nas convicções, desde que potáveis e expressas de forma civilizada, inteligente e de boa-fé, às meias-tintas dos choninhas que não se comprometem.
Ele há perguntas e ele há perguntas retóricas, meu caro :-) . Bom, mas de acordo, não o conheço a si pessoalmente mas conheço suficientemente bem o seu modo de argumentar, julgo eu, para acreditar em si...
Eu também prefiro a veemência a quem não é sincero ou se fica pelas meias-tintas. Mas, justamente, dentro dos padrões da boa educação. Que acho que este cartoon ultrapassa. Nem mais, nem menos. E, depois das críticas, nem sequer sei se posso classificar Knight como alguém ignorante se como alguém que recua alegando ignorância, como você bem notou...
Quanto a ditames grupais, gosto de pensar que penso pela minha cabeça. Mas não sou contra-a-corrente só porque sim. Avalio os argumentos, mas como não tenho toda a informação (não teria tempo para fazer outra coisa), também avalio quem os diz...
E tem toda a razão, aquilo que eu disse pode aplicar-se a qualquer posição. Uma das grandes tristezas dos tempos atuais tem que ver com a perda de um grande número de pessoas conservadoras para o radicalismo da Extrema-Direita, em particular nos EUA, porque existe uma Esquerda bem-pensante que as quer mandar calar.
E isto nada tem que ver com a defesa de posições discriminatórias, note-se e sim que os secularistas não têm o monopólio sobre a República da Cultura...
Haverá alguma retórica, sim, mas sem anátema, mal seria, neste caso.
Isso que diz é sem dúvida e interessante, e até de alguma forma novo para mim, apesar de já o ter intuído. Eu próprio dou por mim, não diria a vigiar-me -- ainda não cheguei a esse ponto -- mas a reflectir sobre algumas posições que tomo e o gosto que tenho nisso,devido a um ecossistema que acho desagradável. E claro que aqui não entra a minha apreciação sobre o cartoon, que, com as ressalvas deste post, continuo a achar aceitável no contexto em que se produziu.
Todos nós nos policiámos um pouco, penso eu, de outro modo estaríamos reduzidos a ser o que os americanos chamam 'assholes'.
Quando me apetece ser anti-clerical, fico sempre a pensar no que um amigo jesuíta diria se lesse o que vou escrever e refreio-me de o fazer ou digo-o de outra forma.
Já tenho menos pena dos comunistas embora também tenha um outro bom amigo que o foi (e os antigos são gente corajosa que andava a apanhar porrada da PIDE), sobretudo os novos quando persistem em afirmar o valor da revolução de Outubro e da URSS e etc, etc... Eu vivi os anos 70 e 80 e lembro-me bem das imagens que nos chegavam e do que nos contavam aqueles que lá tinham ido...
Custa-me mais bater em quem está ou esteve em baixo. É mais fácil fazer pouco de Trump que de Williams, mesmo se o seu comportamento foi absolutamente indefensável (ameaçou Ramos que este nunca mais arbitraria uma final).
Aliás, talvez o cartoon tenha justamente servido para desviar as atenções. Não o tivesse Knight desenhado e ela teria ficado como caricatura de si própria...
A liberdade de expressão comporta justamente a liberdade de se ser um sádico arrogante e mesquinho. O que é também contrário a toda a boa educação.
A Maria Filomena Mónica disse um dia que o riso é, além de cruel, subversivo. Mas é mais fácil ser-se cruel. Certos cartoons do Charlie provocam imediatamente o riso justamente por serem tão profundamente ofensivos. Rio-me deles, mas não teria nem o génio nem sobretudo a crueldade de imaginar tais coisas... E se isso é ser-se choninhas :-), olhe, paciência...
O cartoon de Knight pelo contrário não chega sequer a esse patamar de crueldade, note-se... É simplesmente vulgar, justamente, um cliché...
Sim, caricatura de si própria, é possível; embora me tenham chegado mais ecos da questão do alegado sexismo (!) do árbitro do que do alegado racismo do cartunista.
Do Charlie, talvez a mais genial seja a do Maomé a chorar por ser amado por idiotas -- leia-se os fundamentalistas/terroristas.
https://photo.programme.tv/les-unes-emblematiques-de-charlie-hebdo-9158#charlie-hebdo-publie-12-caricatures-de-mahomet-en-soutien-aux-dessinateurs-menaces-de-mort-8-fevrier-2006-159817
Sim, mas essa não é ofensiva, é sim profundamente piedosa... Um Sufi não diria melhor...
Certo :|
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